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A escola mura: entre concepções políticas e práticas interculturais e o contexto educacional da aldeia São Félix

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

RONY MARTINS SILVA

A ESCOLA MURA: ENTRE CONCEPÇÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS INTERCULTURAIS E O CONTEXTO EDUCACIONAL

DA ALDEIA SÃO FÉLIX

IJUÍ, RS 2012

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RONY MARTINS SILVA

A ESCOLA MURA: ENTRE CONCEPÇÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS INTERCULTURAIS E O CONTEXTO EDUCACIONAL

DA ALDEIA SÃO FÉLIX

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em

Educação nas Ciências como requisito parcial para obtenção do título de mestre em Educação pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí).

Orientadora: Professora doutora Noeli Valentina Weschenfelder

IJUÍ, RS 2012

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S586e Silva, Rony Martins.

A escola Mura : entre concepções políticas e práticas interculturais e o contexto educacional da aldeia São Félix. – Ijuí, 2012.

119 f. : il. ; 30 cm.

Dissertação (mestrado) – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Campus Ijuí e Santa Rosa). Educação nas Ciências.

Catalogação na Publicação

Frederico Cutty Teixeira CRB10 / 2098

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Dissertação submetida como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação nas Ciências, do Programa de Pós- Graduação em Educação nas

Ciências.

Banca examinadora

_____________________________ Dra. Noeli Valentina Weschenfelder, Unijuí

Orientadora

_______________________________ Dra. Maria Aparecida Bergamaschi, Ufrgs

_______________________________ Dra. Anna Rosa Fontella Santiago, Unijuí

_______________________________ Dr. Walter Frantz, Unijuí

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AGRADECIMENTOS

Agradeço especialmente à Jerson, Alcilei, Matilde, Francisco, Marcílio e todos os demais Mura que colaboraram com a sua atenção e acolhimento da pesquisa realizada na aldeia São Félix. Logo, gostaria de agradecer à minha esposa Carla e meu filho Lorenzo pela compreensão e carinho durante os momentos difíceis desta trajetória. À minha mãe dona Vera pela força que não faltou em nenhuma circunstância, como também á minha avó Alvina e ao meu irmão Junior. Não posso deixar de agradecer a SEDUC e a SEMED, além da licença remunerada para estudar contei com a agilidade e colaboração de várias pessoas destes órgãos. Aos professores Paulo Afonso Zarth e Noeli Valentina Weschenfelder que estiveram ao meu lado desde o ingresso no mestrado. Ao meu amigo Allan Jones que editou fotos, resolveu problemas no meu computador e nunca deixou de ouvir meus desabafos. Para finalizar agradeço aos colegas do Mestrado em Educação nas Ciências que em algum momento quando precisei foram solícitos e colaboradores, e, ainda às pessoas da Secretaria e do Colegiado. À Denise Andrigheto. Meu sincero muito obrigado a todos.

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RESUMO

O presente estudo consiste em uma descrição do contexto escolar de uma Aldeia indígena Mura. Partindo do presente, o enfoque abrange a situação política e sociocultural da etnia, bem como volta ao passado a fim de situar sua presença na história regional, destacando, também, as potencialidades da educação escolar indígena em relação às perspectivas de revitalização da cultura e fortalecimento da identidade diante do cenário de conquistas e desafios protagonizados pelos Mura. A natureza da pesquisa corresponde a um estudo de caso com viés etnográfico, cujo processo de construção centrou-se na observação da realidade de apenas uma das Aldeias. Mediante o trabalho de campo e a utilização da metodologia de observação participante, fez-se a abordagem aos participantes em seu próprio meio sociocultural, realizando-se assim uma significativa etnografia da escola e comunidade durante o período de dois anos. São Félix é uma das Aldeias Mura situada próxima à estrada e ao centro urbano do município de Autazes – AM –; caracteriza-se por estar cercada de fazendas e ter o rio como uma importante via de deslocamento e subsistência. A escolarização a partir do pressuposto da autodeterminação dos povos indígenas é recente nas Aldeias Mura e sua introdução é acompanhada pelo processo de formação dos professores da etnia. O protagonismo indígena e o contexto escolar expressam uma relação bastante próxima, na medida em que a educação indígena perpassa escola e comunidade por meio do caráter específico defendido por professores e lideranças. Enfim, no que tange ao processo educacional Mura e às questões suscitadas, esta dissertação aspira problematizar os aspectos pertinentes que a com-vivência entre pesquisador e participantes permitiu observar.

Palavras-chave: Mura. Educação escolar indígena. Protagonismo indígena. Aldeia São Félix. Observação participante.

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ABSTRACT

The present study consists of a description of the school context of an Indian village Mura. From this, the approach covers the political and socio-cultural ethnicity and return to the past in order to locate its presence in regional history, highlighting also the potential of indigenous education in relation to the prospects for strengthening and revitalization of culture identity against a backdrop of achievements and challenges taken up by the Mura. The nature of research corresponds to a case study with ethnographic bias, whose construction process focused on the observation of reality on a village. Through field work and the use of the methodology of participant observation, made the approach to participants in their own socio-cultural environment, thus making a significant ethnography of school and community during the period of two years. St. Felix is one of the Mura village situated near the road and the urban center of the city of Autazes – AM –, characterized by being surrounded by farms and have the river as an important route of travel and subsistence. Schooling on the assumption of self-determination of indigenous peoples in the villages Mura is recent and its introduction is accompanied by the process of training teachers of ethnicity. The Indian leadership and the school context express a close relationship to the extent that indigenous education permeates the school and community through the specific nature defended by teachers and leaders. Finally, with regard to the educational process and the issues raised Mura, this thesis aims to discuss relevant issues to the experience between researcher and participants allowed to observe.

Keywords: Mura. Indigenous education. Indian role. Village St. Felix. Participant observation.

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LISTA DE SIGLAS

AM – Estado do Amazonas

CEDEAM – Comissão de Documentação e Estudos da Amazônia CIM – Conselho Indígena Mura

CONEP – Comissão Nacional de Ética em Pesquisa FUNAI – Fundação Nacional do Índio

FUNASA – Fundação Nacional de Saúde

OPIM – Organização dos Professores Indígenas Mura

PPPEIM – Projeto Político Pedagógico das Escolas Indígenas Mura RCNEI – Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas SEDUC – AM – Secretaria de Educação do Estado do Amazonas SEEM – Setor de Educação Escolar Mura

SEMEC - Autazes – Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Autazes SPI – Serviço de Proteção do Índio

TI – Terra Indígena

UFAM – Universidade Federal do Amazonas UNI – União das Nações Indígenas

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – A Escola Municipal Indígena Dr. Jacobina ... 27

Figura 2 – Vista aérea da região da Aldeia São Félix ... 30

Figura 3 – Terminal hidroviário de Autazes (“Boca da estrada”) ... 31

Figura 4 – O gentio Mura inalando o paricá ... 36

Figura 5 – Protagonistas: professores e líderes ... 43

Figura 6 – Reunião da Opim ... 46

Figura 7 – Desenho de aluno representando o Mura ... 48

Figura 8 – Em companhia de Chico e o peara Raimundo Marques ... 49

Figura 9 – Antigo prédio da escola ... 51

Figura 10 – Mãe e filho indo para casa de rabeta ... 54

Figura 11 – Entrevista com morador antigo da Aldeia (trabalho de campo) ... 57

Figura 12 – Alunos das Aldeias Natal e Pirapitinga chegando na Escola Dr. Jacobina ... 58

Figura 13 – Ajuri: momento que antecede o plantio ... 61

Figura 14 – Ajuri: início do plantio da maniva ... 62

Figura 15 – Plantadoras caçoando no ajuri ... 63

Figura 16 – Alunas do 6º Ano da Escola Dr. Jacobina moradoras da Aldeia Natal .. 69

Figura 17 – Especificidade e as práticas pedagógicas ... 70

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Figura 19 – Cotidiano na escola Mura ... 74

Figura 20 – Liberdade e aprendizagem ... 79

Figura 21 – Curumins descascando castanha ... 80

Figura 22 – Curumim colhendo goiaba-araçá nas terras de uma fazenda próxima a Aldeia ... 81

Figura 23 – Curumins brincando na várzea alagada em frente à Aldeia ... 82

Figura 24 – Curumins posando para a foto com gias na mão ... 83

Figura 25 – Curumins fazendo exposição de insetos (Louva-a-Deus) ... 84

Figura 26 – Curumins brincam no rio em frente à várzea da Aldeia Natal ... 85

Figura 27 – Crianças brincando em volta de um flutuante na Aldeia Murutinga ... 86

Figura 28 – Rapazes adolescentes saindo para pescar com a canoa ... 87

Figura 29 – Adolescente acompanhada de irmã, cuidando da panela no fogo (ramal da Aldeia Cuia) ... 88

Figura 30 – Curumins brincando com boi ... 89

Figura 31 – Crianças brincando ao final da tarde ... 90

Figura 32 – Curumins no murinzal em frente à escola Dr. Jacobina ... 91

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 11

1 PROTAGONISMO INDÍGENA E ESCOLARIZAÇÃO NO CONTEXTO DA ETNIA MURA ... 18

1.1 O MOVIMENTO INDÍGENA E OS PROFESSORES MURA ... 19

1.2 PIRAYAWARA, MURA-PEARA E A LICENCIATURA INDÍGENA: BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A FORMAÇÃO DOS PROFESSORES MURA ... 22

1.3 PROTAGONISMO, ESCOLA E O ESPAÇO SOCIAL MURA ... 24

2 OS MURA ATRAVÉS DA HISTÓRIA, ANTROPOLOGIA, LITERATURA E ESCOLA ... 32

2.1 A PRESENÇA MURA: ENTRE A HISTÓRIA REGIONAL E A LITERATURA DOS VIAJANTES ... 32

2.2 A ANTROPOLOGIA E OS MURA ... 36

2.3 OS MURA E A LITERATURA ... 40

2.4 A ESCOLA MURA: HISTÓRIA, PROTAGONISMO E EDUCAÇÃO ... 42

3 ETNOGRAFIA ENTRE OS MURA: ESCOLA E EDUCAÇÃO INDÍGENA NO CONTEXTO DO ESPAÇO E TEMPO DA ALDEIA SÃO FÉLIX ... 49

3.1 UM BREVE HISTÓRICO SOBRE A ESCOLA MUNICIPAL INDÍGENA DR. JACOBINA ... 50

3.2 O CONTEXTO SOCIOCULTURAL DA ALDEIA SÃO FÉLIX ... 53

3.3 ESCOLARIZAÇÃO E AS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS DE CARÁTER ESPECÍFICO E INTERCULTURAL ... 65

3.4 ESCOLA E EDUCAÇÃO INDÍGENA PARA O MURA ... 75

3.5 COM-VIVER E “IR SE FAZENDO” NO CONTEXTO DO ESPAÇO E TEMPO DA EDUCAÇÃO MURA ... 91

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 96

REFERÊNCIAS ... 99

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INTRODUÇÃO

O presente estudo refere-se essencialmente à descrição da experiência de escolarização da etnia Mura. Tentou-se, com o mesmo, lançar luz aos aspectos importantes e intrinsecamente relacionados à questão, entre estes a ligação entre a educação escolar e o movimento indígena. A luta das organizações indígenas passou para o cenário educacional com a exigência de uma escola voltada à

autodeterminação dos povos indígenas. Sendo assim, entre os objetivos1

pretendeu-se desde o primeiro momento da pesquisa enfatizar o protagonismo indígena, ou seja, identificar no contexto da política educacional Mura os atores cuja atuação vem destacando-se no propósito de estruturar firmemente a educação escolar indígena.

O Capítulo “Protagonismo Indígena e a Escolarização no Contexto da Etnia Mura” resgata historicamente o processo de mobilização por parte das lideranças e organizações indígenas, no qual se inclui os Mura. A narrativa das etapas da formação dos professores e a contextualização das conquistas políticas e desafios destes no movimento indígena em prol da escola, marcam significativamente este

1 O objetivo geral pretendido pelo estudo consistiu em descrever e analisar o processo de construção das práticas de escolarização da etnia Mura no contexto de uma escola de ensino fundamental. Enquanto que em específico tratou-se de elaborar um diário de campo para registro do percurso da investigação, impressões e informações importantes; Caracterizar geograficamente o espaço onde situa-se a Aldeia São Félix e a Escola Municipal Indígena Dr. Jacobina; Relacionar os recursos e materiais didáticos utilizados pelos professores Mura; Descrever a Escola Municipal Indígena Dr. Jacobina e o meio sociocultural no qual está inserida; Participar e descrever as reuniões pedagógicas, aulas e eventos relacionados aos professores; Entrevistar professores, gestor, pais, alunos, lideranças, coordenadores e comunidade escolar em geral; Investigar os pressupostos teóricos que norteiam a prática pedagógica dos professores da Escola Municipal Indígena Dr. Jacobina; Verificar os temas, conteúdos pedagógicos e o currículo da escola bem como a sua relação com o contexto sociocultural Mura; Descrever práticas de escolarização consideradas interculturais pelos professores; Fotografar os diversos sujeitos da pesquisa e locais importantes afim de ilustrar a investigação e enriquecer as descrições e caracterização dos mesmos.

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momento da pesquisa pelo estabelecimento de uma interlocução inicial com os participantes e conhecimento da situação social e geográfica da região.

Em “Os Mura Através da História, Antropologia, Literatura e Escola” é realizada uma diversificada incursão por tais domínios. Trata-se, em síntese, da história Mura abordada sob diferentes perspectivas. Primeiramente refere-se ao campo histórico propriamente dito, onde se pretendeu retomar a revisão das fontes historiográficas sobre os Mura, todavia a busca por informações que se reportem ao Mura do período colonial da Amazônia encontra-se em curso até que se obtenha o acesso direto àquelas mencionadas pelos autores aqui apresentados.

A antropologia ocupou um significativo espaço no estudo. Enquanto no capítulo em questão ela se expressa na abordagem desenvolvida pelos autores da respectiva área, na pesquisa como um todo ela sintetiza a autoridade etnográfica

daquele que se fez presente no local e junto aos participantes.2 Constitui, por sua

vez, o embasamento metodológico conferido à prática do trabalho de campo realizado, o que será retomado adiante.

O aporte sobre a questão da literatura objetivou destacar a presença Mura nesta dimensão. Enquanto os versos selecionados a partir do poema Muhuraida realçam o processo de pacificação Mura, neste caso ligado aos fatos históricos, os trechos destacados em A jangada remetem a historiografia Mura ao campo da ficção.

O Capítulo finaliza com uma breve história da escola nas Aldeias Mura, sintetizada a partir das informações coletadas pelos professores entre 1999 e 2003, como atividade de pesquisa para o Programa de Formação de Professores Indígenas Mura, o que culminou na publicação do livro Aldeias indígenas Mura. Destarte, a proposta, além de valorizar a riquíssima fonte de informações da etnia, também foi de acrescentar “uma página” recente ao contexto da reconstrução histórica realizada.

“Etnografia Entre os Mura: Escola e Educação Indígena no Contexto do Espaço e Tempo na Aldeia São Félix”, representa o momento máximo de

2 Compartilho com os professores Mura o exercício profissional da docência á nível do ensino fundamental na rede publica da cidade de Manaus. Por sugestão do Setor de Educação Indígena da SEDUC – AM optei pelos Mura para a realização do presente estudo. Entretanto, acredito que no universo dos vários povos que vivem na Amazônia o encontro com os Mura representou bem mais que mera casualidade mas a oportunidade de descrever o contexto da educação escolar indígena a partir dos êxitos protagonizado pelos mesmos. Antes disso, eles eram para mim apenas um povo entre outros que fazem parte da história regional, mencionados ao estudar o contexto colonial amazônico.

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aproximação da realidade escolar e social da etnia. Refere-se a um período de estadia prolongada na Aldeia. Durante este tempo foram coletadas as informações por intermédio de questionários na escola e nas casas, e também as observações foram mais longas diante da convivência com professores, alunos e pessoas da comunidade.

O Capítulo descreve o trabalho etnográfico realizado na escola, das aulas

assistidas às interações com professores e alunos.3 Além disso, são

problematizados os pressupostos da educação escolar indígena em contraste com a situação observada.

As narrativas sobre o cotidiano da Aldeia são relatadas a partir das caminhadas, conversas e visitas a outras Aldeias e aos moradores de São Félix, enquanto as considerações acerca da educação indígena foram fruto do acompanhamento de um grupo de curumins durante suas atividades e das entrevistas concedidas por professores e lideranças Mura.

O Capítulo é finalizado com a reflexão sobre o processo da educação indígena na escola e Aldeia Mura, cujo objetivo consistiu em circunscrever as possibilidades observadas a partir do contexto de espaço e tempo no decurso da experiência etnográfica.

A pesquisa é de âmbito da educação escolar indígena e, uma vez que estudos desta natureza são relativamente recentes e baseados em experiências de escolarização indígena, abordagens interdisciplinares e perspectivas indigenistas, a delimitação temática torna-se, até certo ponto, complexa.

Neste sentido, diante das questões pertinentes a serem abordadas, muitos dos autores que contribuíram à fundamentação teórica dos temas que compõem a pesquisa em sua totalidade, compartilham comigo não apenas a visão antropológica sobre o universo social e suas determinações culturais, mas sobretudo a questão indígena e, em específico, a educação escolar indígena.

Na atenção que o tema vem encontrando no campo da pesquisa e no contexto indigenista, são de grande importância os estudos coordenados por Lopes da Silva e Ferreira (2001a). Há mais de uma década as autoras destacaram que a

3 O período descrito equivaleu há dois anos, desde as visitas iniciais para viabilizar a realização da pesquisa ate a permanência em uma das aldeias durante a fase de entrevistas aos moradores e acompanhamento das atividades na escola. O último mês compreendido pela etnografia correspondeu as observações participantes, convivências, aplicação de questionários, visitas, entrevistas e registros no Diário de campo a partir do parecer favorável do CONEP (Ver Anexos). Objetivamente o período transcorreu de agosto de 2009 a junho de 2011.

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emergência da educação diferenciada tanto no plano teórico quanto no prático é intensa e acirrada, baseadas em experiências concretas. As pesquisas que sucederam até então procuravam articular prática e teoria antropológica nos estudos sobre a educação escolar indígena. Em seu conjunto, consistiram em importantíssimas fontes de referência durante o seu transcurso.

A pesquisa procurou situar a escolarização no contexto das reivindicações do movimento e organizações indígenas. Sendo assim, no tocante ao marcante protagonismo exercido neste campo nas últimas décadas, Carneiro da Cunha escreveu que o futuro da questão indígena assistiria a uma intensa reivindicação da identidade étnica como instrumento político na luta por direitos e homologação de terras indígenas principalmente na Amazônia. A partir da década de 80, o aumento demográfico das populações indígenas é acompanhado pela preocupação com a exploração das riquezas naturais em territórios indígenas. Esta autora apontou ainda a importância que a sociodiversidade representaria ao patrimônio cultural da

humanidade (apud LOPES DA SILVA; GRUPIONI, 1995).4

A escola como instrumento de luta e articulação política no contexto do movimento ganhou força entre as reivindicações indígenas. Tal constatação contempla a história recente dos Mura, conforme exposto por Ferreira da Silva e Azevedo:

O Movimento dos Professores Indígenas do Amazonas, Roraima e Acre é, a cada ano que passa, mais forte e expressivo, e desempenha um discutível papel de vanguarda. Um dos efeitos mais notáveis destes eventos é, sem dúvida, a irradiação da reflexão e da discussão sobre escola indígena em diversas populações locais de professores, como a dos Sateré-Mawé e a dos Mura, e organizações regionais como a dos professores indígenas do Roraima (apud LOPES DA SILVA; GRUPIONI, 1995, p. 157).5 Diante da referida conjuntura é que se articulou a política educacional Mura. O horizonte alcançado pela etnia configura o atual cenário da organização indígena e escolar da região onde vivem.

A possibilidade de conhecer os protagonistas e a atuação que vêm exercendo ante o movimento indígena e a educação escolar, pretende estabelecer um diálogo

4 CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. O futuro da questão indígena. In: LOPES DA SILVA; GRUPIONI, 1995, p. 129.

5 FERREIRA DA SILVA, Marcio; AZEVEDO, Marta Maria. Pensando as escolas dos povos indígenas no Brasil: o movimento dos professores indígenas do Amazonas, Roraima e Acre. In: LOPES DA SILVA; GRUPIONI, 1995.

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intercultural promissor no que diz respeito ao estudo e divulgação do trabalho dos mesmos.

Os professores indígenas Mura buscam atuar nos diferentes âmbitos da educação formal, e neste processo encontram-se já nos períodos finais da licenciatura indígena. A partir daí a pesquisa objetiva descrever a trajetória da formação percorrida pelos membros da etnia.

Rosa Helena Dias da Silva (2006)6 contextualiza a importância da formação

de nível superior para o indígena, destacando os avanços advindos desta conquista. A autora avalia a questão sob a perspectiva de um de um processo que, segundo ela, é

permeado de inúmeros desafios e contradições/tensões, a busca pela Universidade, para os povos indígenas, é visualizada como mais um instrumental de resistência e construção de novas relações com a sociedade envolvente, através da perspectiva do diálogo intercultural. A formação de quadros – sejam eles lideranças e/ou professores indígenas, dentre outros – figura no cenário da luta indígena como uma das questões de destaque frente à concretização da autonomia e respeito à diferença. Em outro patamar está a escolarização nas Aldeias, onde o modelo de escola e uma prática docente, calcada na regulamentação prevista para a modalidade de ensino que defendem, são objetos de reflexão por parte dos professores. Assim, consideram que

a educação escolar indígena diferenciada é muito importante [...] e deve ser respeitada por todos. É uma educação de qualidade intercultural que veio para revitalizar a cultura, os costumes e as tradições do povo Mura que estão quase esquecidas (SILVA ET AL., 2008, p. 293).

A partir das referências expostas anteriormente pode-se definir como central o estudo da escola Mura, perpassada pelas concepções políticas e práticas interculturais de seus protagonistas, a qual tende a assumir tanto as contingências estabelecidas por sua regulamentação institucional quanto às motivações planejadas no contexto do movimento indígena.

Após a delimitação temática, portanto, cabe apresentar os pressupostos metodológicos capazes de permitir a aproximação da problemática exposta.

6 Professora e coordenadora do curso de Licenciatura Indígena, Rosa Helena Dias da Silva acumula longa experiência em Educação Escolar Indígena.

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A pesquisa, conforme mencionado anteriormente, vincula-se diretamente à antropologia, cujo viés etnográfico caracterizado pela metodologia da observação participante, enquanto perspectiva empírica, possibilita que a apreensão da realidade pesquisada torne-se inteligível ao conhecimento do pesquisador. Neste sentido, ao aludir a Geertz (1989), Viégas descreve que

Etnografia é um método de pesquisa oriundo da antropologia social, cujo significado etimológico pode ser “descrição cultural”. Assim, ela representa a tentativa de estudar a sociedade e a cultura, seus valores e práticas, a partir de sua “descrição densa”, entendida como mais do que a mera compilação de fatos externos ao pesquisador.(...) Dessas características decorre a necessidade de um trabalho de campo que possibilite maior aproximação entre pesquisador e pesquisado – pessoas, situações, lugares (2007, p. 105).

Pode-se considerar também que, devido ao fato de a investigação restringir-se ao processo educacional da escola da Aldeia São Félix, trata-restringir-se de um estudo de caso. De acordo com a autora supracitada,

Estudo de caso é o estudo exaustivo de um caso em particular (uma unidade), a fim de compreendê-lo enquanto instância singular, que, ao mesmo tempo em que possui dinamismo próprio, está inserida em uma realidade situada. O interesse do pesquisador deve ser estudar a unidade em suas especificidades, o que não impede que ele atente ao contexto e às inter-relações com o todo (2007, p. 105).

Viégas desenvolve pressupostos ainda sobre a questão da abordagem do público-alvo, e para o presente estudo, quer trate-se de professores, alunos, lideranças e ou pessoas da comunidade escolar Mura, considerar-se-ão como participantes da pesquisa, posto que, por um lado, tal postura teórica a priori não carrega consigo qualquer conotação de sujeição à pesquisa por parte dos hipotéticos “sujeitos”, e, por outro, há mudança de foco, ou seja, de um olhar coisificador e uma postura autoritária do pesquisador, por uma “relação de confiança fundamental para a realização de uma pesquisa etnográfica”, defende a autora (2007, p. 110).

Bergamaschi (2005) apresenta referência teórica semelhante. Com-viver para ela equivale à possibilidade do “estar-juntos”. Esta noção do trabalho de campo parece humanizar o processo ao mesmo tempo em que remete o pesquisador a um plano mais harmonioso e dialógico junto aos participantes.

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Tendo, então, a partir dos referenciais expostos um modelo de abordagem capaz de permitir o desempenho do trabalho etnográfico com desenvoltura e participação ativa, é que se entende o objetivo intrínseco do polo metodológico que trata, conforme Gomes, de “compreender a cultura pela vivência concreta nela, ou seja, morar com os ‘nativos’, participar de seus cotidianos, comer suas comidas, se alegrar em suas festas e sentir o drama de ser de outra cultura” (2008, p. 56).

Aprofundando ainda mais, torna-se imprescindível a definição da noção ou conceito de cultura capaz de sustentar a perspectiva temática da pesquisa. Sendo assim, ao descrever as situações perpassadas pelo contexto da Aldeia Mura e pensar nas implicações relacionadas à cultura, estar-se-á de acordo com Geertz, que a define como

sistemas entrelaçados de signos interpretáveis (o que eu chamaria símbolos, ignorando as utilizações provinciais), a cultura não é um poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos; ela é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligível – isto é, descritos com densidade (1989, p. 24).

Neste sentido, a noção de cultura que o estudo busca compreender situa-se entre as experiências resgatadas na história Mura, as narrativas dos anciãos de fenômenos contemporâneos a partir de representações de outras épocas, e sobretudo, nas práticas de revitalização e valorização da identidade protagonizado por professores e lideranças.

A abordagem sobre os referidos aspectos diz respeito à realidade de apenas uma das Aldeias, cuja situação geográfica é apontada como peculiar pelos próprios Mura. Sendo assim, a descrição deste processo não deve ser concebida de maneira generalizante com o risco de que algo não corresponda nem seja compartilhado pela maioria.

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1 PROTAGONISMO INDÍGENA E ESCOLARIZAÇÃO NO CONTEXTO DA ETNIA MURA

A questão central que será tratada no presente Capítulo refere-se ao protagonismo exercido pelas lideranças e professores indígenas Mura – o que vem ocorrendo no contexto político e educacional. A pesquisa, que tem como foco a escola indígena e seu processo de construção por meio da ampla legislação e práticas condizentes com a modalidade de ensino diferenciado, encontrou no contexto da escolarização da etnia Mura a forte relação entre a atuação de seus protagonistas e o processo estruturante da educação escolar nas Aldeias Mura.

A educação escolar indígena é concebida na contemporaneidade a partir de uma educação formal e institucional, cujo caráter apresente-se como ensino diferenciado, específico, comunitário, bilíngue e intercultural (MEC, 2002, p. 24-25).

Neste sentido, a etnia Mura vem obtendo êxito e intensificando a atuação no

contexto educacional. Defende a escola à luz da legislação7 como também a partir

de objetivo que salvaguarde seus interesses. Conforme estabelecido em sua documentação,

A escola indígena tem que ser parte do sistema de educação de cada povo, no qual, ao mesmo tempo em que se assegura e fortalece a tradição e o modo de ser indígena, fornecem-se os elementos para uma relação positiva com outras sociedades, a qual pressupõe por parte das sociedades indígenas o pleno domínio da sua realidade: a compreensão do processo histórico em que estão envolvidas, a percepção crítica dos valores e contravalores da sociedade envolvente e a prática da autodeterminação (SEMEC, 2003, p. 27).

Diante do plano formal ou legal, como se queira considerar, a escola Mura demonstra estar bem-amparada, resultado de uma articulação que visa pela escolarização reivindicar possibilidades relevantes à etnia a partir de uma relação

7 Preceitos legais para a organização e funcionamento da escola indígena, compilados a partir do Projeto Político Pedagógico das Escolas Indígenas Mura: Constituição Federal/88 – Art. 210; Art. 215; Art. 231; Constituição Estadual/89 – Art. 198; Art. 199; Portaria Interministerial nº 559/91; Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar Indígena/MEC/SEF/DPEF/93; Declaração de Princípios/94 da COPIAR; LDB 9394/96 – Art. 78 e 79; Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas/98; Resolução CNE no 02/98, Resolução CEB no 03/98; Plano Nacional de Educação – Lei no 10.172/01; Parecer 14/99; Resolução nº 03/99-CNE; nº 11/2001-CEE/AM; Plano Nacional de Educação – Lei nº 10.172/2001; Decreto nº 5.051/04; Lei nº 11.178/05.

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intercultural com a sociedade envolvente, porém defendendo sua especificidade como fator de identidade.

O momento seguinte propõe-se, antes de apresentar alguns dos líderes e professores Mura, os quais foram sendo conhecidos e prestando significativa colaboração à pesquisa, a situar a atuação destes no contexto do movimento indígena.

1.1 O MOVIMENTO INDÍGENA E OS PROFESSORES MURA

Lopes da Silva e Ferreira destacam o papel que a escola poderia desempenhar no contexto da articulação das organizações indígenas. Para as autoras,

No seio da mobilização popular dos anos finais da ditadura militar, nas então nascentes organizações indígenas e de apoio aos índios, ao lado das reivindicações por regularização fundiária e atenção à saúde, firmava-se a ideia de que a escola poderia firmava-ser algo “a favor” dos índios: instrumento de acesso a informações e conhecimentos vitais para sua sobrevivência e autodeterminação. O desafio aqui era de ordem pragmática e política: como efetivar essa transformação da escola indígena? (2001a, p. 31).

Enquanto o RCNEI (MEC, 2002, p. 28) descreve que o movimento dos professores indígenas tem como precedente a estruturação de diferentes organizações a partir da década de 70, cujos objetivos centravam-se na luta pela defesa de territórios e outros direitos, a formação da União das Nações Indígenas (UNI) foi de fundamental importância às organizações e associações de professores e de agentes de saúde indígenas que passaram a ocorrer com grande representatividade regional e étnica. Os “Encontros de Professores Indígenas” ou “Encontros de Educação Indígena” intensificaram-se a partir do debate sobre os princípios de uma educação escolar indígena que atenda tanto a diversidade de povos indígenas do país quanto as especificidades étnicas e regionais.

Após a contextualização em linhas gerais da aproximação que o movimento indígena intensificou em direção à educação escolar, acredita-se na pertinência de expor a narrativa da inserção Mura em específico neste processo, a partir do seu próprio relato:

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Há muito incentivado pelas lideranças, nós, professores Mura, a partir do ano de 1991, passamos a participar dos encontros realizados pela Comissão dos Professores Indígenas do Amazonas, Acre e Roraima (COPIAR), atualmente Conselho dos Professores Indígenas da Amazônia Brasileira (COPIAM), participando das discussões e levantando expectativas de mudanças na educação escolar nas terras indígenas Mura, com o objetivo de construir uma educação escolar indígena diferenciada, específica, intercultural, bilíngüe e de qualidade que atendesse aos anseios e interesses de nosso povo. Desses encontros foi criada a Declaração de Princípios da Educação dos Povos Indígenas do Amazonas, Acre e Roraima que passou a nortear toda política educacional voltada para os povos indígenas desses estados, estando o povo indígena Mura inserido neste contexto. Em decorrência da criação desses princípios e, dos movimentos indígenas que passaram tomar corpo, realizou-se o I Seminário de Educação Escolar Indígena no Estado do Amazonas, no período de 11 a 14 de maio de 1998, onde lideranças indígenas das regiões do Alto, Médio e Baixo Rio Negro/Solimões/Madeira/Purus e Baixo Amazonas manifestaram interesse na construção de currículos próprios e específicos para suas escolas e diretrizes para a formação de seus professores. Na oportunidade as lideranças Mura solicitaram ao órgão responsável pela política de educação escolar indígena no estado do Amazonas, representado na época pelo IER-AM (Instituto de Educação Rural do Amazonas), a formação de seus professores. E como resultado de várias reuniões junto a esse órgão e com o apoio de outras instituições à causa indígena, foi assinado um termo de acordo entre o estado e o município de Autazes para realização, no período de 05 de outubro a 04 de novembro de 1998, do Mapeamento da Realidade Lingüística e Antropológica do Povo Mura dos municípios de Autazes e Borba, que, por meio de levantamento de dados e informações sobre a realidade antropológica e lingüística do povo Mura nas Aldeias, subsidiaria, posteriormente, a formação de seus professores. Assumindo ainda no ano de 1998 a responsabilidade pela condução da política de educação escolar indígena no Estado do Amazonas e, em respeito ao acordo firmado anteriormente, a SEDUC realizou no período de 5 a 7 de julho de 1999, um Seminário de Educação Escolar Indígena no município de Autazes com o objetivo de apresentar às lideranças, professores, organizações e comunidade indígena Mura em geral o Projeto PIRAYAWARA, bem como o resultado do Mapeamento da Realidade Lingüística e Antropológica nos municípios de Autazes e Borba (SEMEC, 2003, p. 11-12).

Atualmente, os professores Mura fazem parte da Opim, criada em 1992, e cursam a Licenciatura Indígena. Além da atuação política, o protagonismo da etnia adquire vulto ainda maior pelas produções realizadas, tais como o CD/DVD Yandé Anama Mura e o livro Aldeias Indígenas Mura.

Destarte, a investigação etnográfica parte do contexto apresentado, e os relatos, descrições e narrativas que seguem são fruto das visitas e estadias no município de Autazes e na Aldeia São Félix, onde a prática da observação participante junto as inúmeras pessoas da etnia possibilitou conhecer a escola, a comunidade e, sobretudo, aspectos da vida política e social Mura.

Por intermédio dos registros em um Diário de campo procurou-se demarcar pouco a pouco os momentos da com-vivência com os participantes do estudo,

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enquanto as imagens fotográficas procuram traduzir muitos dos significados que escapam às palavras.

As visitas iniciais aos Mura caracterizaram-se pelo estabelecimento de laços de amizade com professores e lideranças. Neste sentido, a receptividade em relação à pesquisa foi satisfatória na medida em que a interlocução entre pesquisador, professores e lideranças aumentou.

As impressões obtidas acerca do espaço sociocultural representado pelo centro urbano do município de Autazes foram satisfatórias bem como das aldeias que viria a conhecer ou seja, acessíveis em termos logísticos e relativamente próximas de Manaus. Também sobre os supostos participantes pois a língua falada

entre eles é o português.8 (Diário de campo, 13/8/2009).

Na ocasião da primeira visita à região conheci Jerson,9 que há 11 anos

trabalha como professor e coordenador pedagógico no Setor de Educação Escolar Mura (SEEM) da Secretaria Municipal de Educação do município de Autazes. Entre as atribuições do exercício da função que realiza estão programação, acompanhamento, fiscalização, realização e monitoramento da educação formal Mura, além de ser um importante elo da Opim junto a Secretaria de Educação e o governo municipal (Diário de campo, 13/8/2009).

Após explicitar as questões relacionadas ao projeto de pesquisa, a conversa com Jerson continuou com os questionamentos sobre a escolarização nas Aldeias e a formação dos professores. Relatou-me que os professores Mura vêm alternando as atividades docentes nas escolas de Ensino Fundamental com os períodos intensivos de formação e que também regularmente participam das reuniões da Opim.

Na época, cursando o 6º período do curso de Licenciatura Indígena, ministrado pela Faculdade de Educação da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Jerson enfatizou que a trajetória da formação dos professores Mura foi muito marcante para todos, e também que durante este processo foi realizado o

8 A língua materna Mura é o nhengatu, o seu resgate constitui um dos esforços que desejam alcançar através do seu estudo na licenciatura e o uso de expressões entre alguns professores. 9 Com Jerson foi estabelecido o primeiro contato por telefone para saber sobre a possibilidade de realizar a pesquisa com sua etnia, o que ocorreu no início de agosto de 2009. Sempre muito solícito, o professor Jerson demonstrou ser um grande colaborador com a pesquisa como também um líder atuante e preocupado com o futuro da sua etnia. Iniciou seu trabalho como professor em 1999, na escola da Aldeia Cuia; no ano seguinte transferiu-se para a Aldeia São Félix onde permaneceu durante 2 anos; em seguida foi para a Aldeia Trincheira por 5 anos e meio e, depois deste período, trabalhou menos de 2 anos na escola da Aldeia Gapenu.

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trabalho de pesquisa e publicação do livro Aldeias Indígenas Mura, no qual estão registrados histórias, memórias, tradições e o referido processo inclusive. Mencionou ainda que as pesquisas ocorreram entre 1999 e 2003 e que a obra representa uma importante fonte de registros da história recente e da cultura; apresenta ilustrações feitas pelos professores e narrativas sobre os mais variados aspectos da vida de dez Aldeias, cuja proposta inicial não objetivava esse resultado. Após a realização dos trabalhos de campo, entretanto, é que houve a intenção de não deixar as pesquisas engavetadas; por isso, transformaram-nas em livro que, atualmente, é utilizado como material de apoio nas aulas consistindo numa espécie de “revisão das transformações de épocas passadas até a atualidade” (Diário de campo, 13/8/2009).

O processo de formação dos professores indígenas Mura é narrado a seguir a partir da síntese dos relatos de Jerson, das etapas descritas pelos professores no livro Aldeias Indígenas Mura, complementadas pelo Projeto Político Pedagógico das Escolas Indígenas Mura.

1.2 PIRAYAWARA, MURA-PEARA E A LICENCIATURA INDÍGENA: BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A FORMAÇÃO DOS PROFESSORES MURA

Pirayawara refere-se ao projeto de âmbito nacional cujo objetivo foi atender a formação de professores indígenas. Sob tal denominação realizaram-se duas etapas do magistério indígena na Aldeia São Félix (julho a setembro e outubro a dezembro de 1999), posteriormente batizado de Mura peara, que ocorreu na Aldeia Murutinga

a partir da terceira etapa (março a maio de 2000).10

Jerson fala com orgulho sobre as conquistas de sua etnia em relação à formação, quando cada etapa, segundo ele, exigiu esforço, determinação e muita luta política. Neste sentido, no PPPEIM encontra-se registrado que

no dia 28 de julho de 1999, na Aldeia São Félix, Autazes, foi dado início o Curso de Formação de Professores Indígenas Mura que, a princípio, contou com a participação de 53 professores do município de Autazes e 10 do município de Manicoré. Após três etapas de realização do Projeto, anteriormente denominado Pirayawara, este passou a ser denominado Projeto Mura-Peara, elaborado por representantes dos professores indígenas Mura com o apoio dos técnicos da secretaria municipal de educação de Autazes (SEMEC, 2003, p. 12).

10 As demais etapas foram realizadas na sede do município: Creche Laura Siqueira (novembro a janeiro de 2001); Centro Social Multiuso (janeiro a março de 2001); sexta a nona etapa no Conselho Indígena Mura (CIM, 2001 a 2003) (SILVA ET AL., 2008, p. 293).

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Assim, a formação específica dos professores Mura em magistério indígena iniciada no ano de 1999, contabiliza em 2002 a formatura de 39 professores (SILVA ET AL., 2008). Tamanha importância teve a formação, que conquistas seguiram-se, advindas do curso de Formação dos Professores Indígenas Mura, o qual os mesmos assim avaliam:

conseguimos avanços significativos no processo de construção de nossa educação escolar oferecida às escolas da Aldeia, pois passamos a valorizar e a respeitar a realidade e a situação de cada Aldeia, olhando a economia, os bens, os modos de troca e produção como concepções pedagógicas fundamentais para o processo que se implantava, bem como o território como conjunto de recursos naturais e tecnológicos que formam a base material da reprodução cultural do povo, segundo os princípios do Projeto (SEMEC, 2003, p. 12).

Pode-se concluir que em termos pragmáticos a formação vem contribuindo satisfatoriamente para que os professores e lideranças realizem a leitura da realidade na qual esta está inserida, procurando estruturar firmemente a educação escolar indígena nas Aldeias. Neste sentido, a etnia vê como positivo o processo de formação, partindo da conclusão de que

Com a execução do Curso de formação dos professores indígenas Mura suscitou-se fóruns de debates, discussões e questionamentos sobre a situação atual e histórica do povo Mura no município de Autazes, utilizando-se de processos de pesquisa que contribuíram fundamentalmente para a formulação da proposta de construção curricular para as Escolas Mura, pois era interesse dos professores ocuparem o espaço que lhes é garantido na legislação indigenista vigente. Nesse contexto, a disciplina Metodologia de Pesquisa foi de fundamental importância para a organização do diagnóstico e análise de nossa realidade atual (SEMEC, 2003, p. 12).

Antes de encerrar o retrospecto sobre o tema, é necessário mencionar que está ainda em andamento a etapa de formação em Ensino Superior sob a coordenação da UFAM, iniciada em 2008, e que certamente comparecerei à formatura para prestigiar e parabenizar todos os amigos e colaboradores que foram os professores Mura.

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1.3 PROTAGONISMO, ESCOLA E O ESPAÇO SOCIAL MURA

As dimensões sugeridas pelo subtítulo supracitado correspondem aos eixos que estruturam a pesquisa, em que cada uma se refere a um nível de apreensão da realidade investigada.

Ao abordar o protagonismo indígena faz-se necessário a exposição de alguns aspectos relacionados a historia da escolarização indígena no Brasil a fim de

demonstrar um pouco sobre a evolução deste processo.11

11 No RCNEI – importante referencia didática e pedagógica para a educação escolar indígena -, está expresso que “as relações entre o Estado brasileiro e os povos indígenas no Brasil tem uma historia na qual se podem reconhecer duas tendências: a de dominação, por meio da integração e homogeneização cultural, e a do pluralismo cultural” (MEC, 2002, p. 26). Neste sentido o referido processo remonta á época dos missionários onde pode-se considerar segundo Gomes que “a elaboração intelectual sobre o índio não foi abundante no Brasil colonial. Os jesuítas não se interessaram em desenvolver qualquer argumentação mais aprofundada a esse respeito, nada mais além do que a discussão sobre a capacidade ou não do índio de converter-se à fé cristã, tanto porque a sua base intelectual era a escolástica, quanto porque o seu interesse era puramente utilitarista e religioso. Nesse mister logo descobriram que a conversão não viria simplesmente pela palavra, mas só depois da subjugação física e cultural. Só pelo jugo da espada e da vara de ferro no dizer de Anchieta é que a catequese poderia ser efetuada. Com isso foi abandonada inclusive aquela curiosidade pelas formas culturais específicas dos índios. (...) Os jesuítas logo descobriram que o melhor veículo da catequese seriam as crianças indígenas, após a dominação politica dos seus pais. E investiram todo o seu esforço em alfabetiza-las, ensinar-lhes canções sacras, pecas teatrais, artes e ofícios em ferraria, alvenaria e marcenaria, e aprimora-las em aritmética e latim. Obviamente os índios aprenderam, não deixando dúvidas sobre a sua capacidade intelectual. Se no início era árdua a tarefa, ela foi ficando cada vez mais fácil na medida em que a vida cultural indígena, agora duramente combatida, perdia rapidamente a sua razão sociológica de ser” (1988, pp.111-12). Os momentos seguintes são expostos a partir da descrição de Lopes da Silva e Ferreira (2001a), onde a segunda fase da história da educação para índios no Brasil é marcada pela criação do SPI em 1910, entre as características que este período compreende estão a formulação de uma politica indigenista menos desumana por parte d o Estado, baseada nos ideais positivistas do começo do século cuja alegação residia na preocupação com a diversidade linguística e cultural dos povos indígenas e cujo objetivo consistia na integração dos índios á sociedade nacional através da sua incorporação ao mercado regional como produtores de bens de interesse comercial; o crescente desinteresse destes pela escolarização faz o SPI elaborar, a partir de 1953, o Programa Educacional Indígena, o qual também não contribuiu para um aumento da demanda não justificando às autoridades o investimento na alfabetização bilíngue; em 1957 é extinto o SPI e criada a FUNAI trazendo significativas mudanças tais como o Estatuto do Índio (Lei 6.001) que previa a obrigatoriedade do ensino de línguas nativas nas escolas indígenas a partir de 1973; as experiências educativas desenvolvidas por missões religiosas católicas e protestantes objetivavam a evangelização e a capacitação técnico-profissional ao mesmo tempo instrumentalizam os povos com o domínio da língua escrita subtraem suas crenças impondo-lhes a religião. A fase seguinte, que tem início em fins dos anos 70, conta com a participação de organizações não-governamentais e a articulação do movimento indígena em prol da defesa dos territórios indígenas, assistência á saúde e a educação escolar; a União da Nações Indígenas (UNI) é criada em 1980, a promulgação da Constituição Federal de 1988, garante vários direitos ás sociedades indígenas também inúmeros encontros de professores e de educação indígena realizam-se desde então; formação de professores e experiências de escolarização indígena ampliam-se em diversas regiões do país bem como a criação de Núcleos de Educação (e/ou Estudos) Indígenas marcam a terceira fase da história da educação indígena brasileira. N fase seguinte observa-se uma articulação cada vez maior, a Declaração de Princípios, de 1994 marca uma importante conquista dos povos indígenas, “o movimento indígena, por meio das organizações e lideranças, tem reivindicado, em última análise, o direito à autodeterminação também em relação á educação escolar. Isso significa que as populações indígenas exigem que as práticas educativas

(26)

O protagonismo indígena consiste na abordagem inicial da pesquisa, e antes de tecer considerações sobre as demais dar-se-á continuidade no desenvolvimento da mesma, relatando sobre as concepções políticas dos professores Mura.

Ainda na ocasião da apresentação aos participantes, em companhia de Jerson, levanto a questão sobre a importância da escola para a etnia Mura. Ele responde que um dos motivos mais fortes para o indígena reivindicar a escolarização é exercitar o convívio com o não índio, tanto “para não ser enganado” quanto também para ser um “meio de defesa, de ficar em igualdade com os não indígenas” e como possibilidade de reafirmar constantemente a identidade Mura (Diário de campo, 13/8/2009).

Nesta oportunidade conheci ainda o professor Gilberto,12 tio de Jerson. Na

época professor na Aldeia Jauari, protagonista antigo e um dos fundadores da Opim. A conversa prosseguiu mais interessante com a sua chegada. Gilberto mencionou que o RCNEI representa um excelente instrumento de orientação e fundamentação teórica para os planos de aula e práticas pedagógicas dos professores, e que entre

as maiores conquistas do movimento indígena está a Declaração de Princípios13 de

1994, pois foi a partir dela que se instituiu a escolarização de caráter diferenciado. Enquanto compartilhávamos experiências, a noite chegou e lá permanecemos sentados à penumbra durante algum tempo. Horas mais tarde voltamos a nos reunir, desta vez mais familiarizados. Depois de passar por alguns bares em torno da praça da cidade e finalmente concentrar-se em outro com mesa de sinuca, a descontração das conversas e o princípio de uma promissora animou todos madrugada adentro. Antes de amanhecer retirei-me e fui dormir na pensão, localizada em frente à casa de Jerson.

O segundo dia da primeira visita aos Mura em Autazes tinha iniciado antes mesmo das poucas horas de sono. Após encontrar Jerson e tomar café na feira, acompanhei-o pelo restante da manhã em seu trabalho. Em um tom franco e cordial continuamos a conversar e estreitar os laços de confiança no almoço, enquanto esperávamos a oportunidade para que eu fosse apresentado a Alcilei, o qual se

formais desenvolvidas em áreas indígenas sejam definidas por elas e que as concepções de educação, processo de socialização e estratégias de ação sejam as bases dos processos educativos (p.109, 2001a)”.

12 À primeira vista, Gilberto pareceu meio desconfiado, mas aos poucos foi ficando mais comunicativo, conforme fui relatando os objetivos da pesquisa que pretendia realizar. Passada tal impressão, formamos uma boa amizade, tanto que em nossas conversas descobrimos uma afinidade: o interesse pela antropologia.

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encontrava em reunião. Jerson ressaltou que seria ele quem efetivamente faria os encaminhamentos à escola de uma das Aldeias Mura se aprovasse a pesquisa (Diário de campo, 14/8/2009).

Por volta do meio dia, então, fui apresentado a Alcilei, e entre os assuntos na breve conversa, a autorização para realizar a pesquisa foi o primeiro deles. Em seguida falou um pouco sobre a concepção de educação indígena que é desenvolvida nas Aldeias Mura. Também, segundo ele, a formação é essencial, uma possibilidade que contribui à preservação da identidade do índio diante do contato cada vez mais intenso com a sociedade envolvente; considera importante a formação dos professores indígenas nas instituições de ensino do não índio e ressalta a necessidade de os mesmos tornarem-se bons especialistas a fim de atuar nas comunidades onde vivem. Falou ainda, criticamente, sobre a modalidade de ensino a distância que privilegia a mediação tecnológica em detrimento da presença

física do educador. Para Alcilei, a sabedoria empírica dos pajés, parteiras e pearas14

fazem parte da cultura imaterial Mura e devem, por sua vez, ser conhecidos e preservados por todos da etnia.

Quanto aos encaminhamentos relativos à pesquisa, Alcilei sugeriu a escola da Aldeia São Félix, por estar mais próxima do centro urbano do município e também por ser uma comunidade onde o contato é mais intenso com não índios. Por questões logísticas, a escola nesta Aldeia seria a ideal. Enquanto as despesas com transporte e uma colaboração com as despesas de alimentação seriam de minha responsabilidade, a hospedagem seria providenciada por alguém da comunidade. Firmamos o compromisso de que a posterior produção científica a partir da pesquisa teria o retorno esperado pela etnia. Assim, o encaminhamento seguinte foi a obtenção de uma carta de apresentação encaminhada à Escola Municipal Indígena

Dr. Jacobina,15 situada na Aldeia São Félix. Lá, logo conheceria a gestora Matilde,

outra professora e protagonista Mura.

14 Pearas: (peara) anciões, pessoas mais antigas de uma aldeia, os mais velhos e sábios, metáfora do “peara” das matilhas e bandos de algumas espécies de animais silvestres, o líder e guia que sempre viaja na frente, pois o mapa mental das antigas rotas migratórias e territórios sazonais In DVD Yandé Anama Mura, 2007.

15 A escola Dr. Jacobina, conforme Jerson e Alcilei, já foi um lugar bastante polêmico durante o processo de introdução da educação indígena de caráter específico em meados do ano 2000. Segundo eles, a comunidade envergonhava-se em assumir a identidade indígena devido ao fato de morar próximo da estrada. Quando os professores indígenas começaram assumir a docência na escola sofreram com a rejeição e o descrédito.

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A partir da escola sugerida para a realização do trabalho de campo, a problemática do estudo avançou a outro nível de complexidade, pois de antemão os professores expuseram como relevante a questão da proximidade entre o centro urbano de Autazes e a Aldeia São Félix enquanto fator influente na realidade social da comunidade e no cotidiano escolar.

Passava pouco mais das 13 horas quando do terminal hidroviário no centro

urbano de Autazes embarquei com Jerson, e de voadeira16 nos deslocamos até o

nosso destino. Encontrava-me um tanto apreensivo desde o início da manhã devido

ao horário.17 Em menos de 30 minutos depois estávamos na escola. A aula do turno

vespertino já havia começado e alguns alunos ainda chegavam. A gestora não se encontrava, mas era possível avistá-la a uns 400 metros de distância vindo para a escola protegida por uma sombrinha sob o forte calor do sol daquele horário (Diário de campo, 14/8/2009).

Figura 1 – A Escola Municipal Indígena Dr. Jacobina Foto: Rony Martins

16 Voadeira: embarcação de porte médio bastante utilizada nos deslocamentos pelos rios da Amazônia.

17 O retorno a Manaus preocupava. As conduções para o Careiro da Várzea ficam escassas após as 15 horas devido ao reduzido número de passageiros. Chegando lá precisa ainda esperar a lotação da lancha para a travessia Careiro-Manaus.

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Após breve conversa, fomos até as salas de aula. Nesta ocasião conheci as professoras Luzia e Raimunda e alunos do 5º e 6º Ano. Entre apresentações, falas e fotografias aumentavam cada vez mais as expectativas, curiosidades e indagações sobre o cotidiano escolar e comunitário da Aldeia São Félix.

A gestora da escola, Matilde18 foi bastante acolhedora e simpática. E, diante

dos objetivos apresentados pelo projeto a mesma autorizou visitas futuras à escola e a realização do trabalho de campo na escola. Não imaginei nesta ocasião a enorme colaboração que posteriormente teria da sua parte. Acompanhar o seu trabalho na escola, ser sempre bem recebido em sua casa e conhecer sobre os Mura através dos seus diálogos e narrativas representou uma imensa contribuição para com a pesquisa.

Ao retornar19 da primeira visita realizada ao local da pesquisa, as

observações foram transformando-se em descrições e relatos sobre as pessoas e os lugares que conheci. Todas foram importantes do ponto de vista da prática etnográfica que acabara de iniciar. Para mim, ver, ouvir, com-viver com os participantes e tentar compreender sua especificidade passaria ser um exercício constante e que deveria ser aprimorado a cada nova oportunidade de estar entre os Mura.20

Os locais da pesquisa são elementos importantes ao entendimento da mesma de modo geral. As descrições que seguem procuram situar e delimitar o espaço sociocultural Mura no contexto geográfico da região.

18 Ver Anexos: “Minha nada mole vida escolar e profissional” (breve autobiografia de Matilde, grande colaboradora e amiga), escrita como atividade do Curso de Licenciatura Indígena, cedido pela autora. 19 A fim de agilizar meu retorno, Matilde providenciou uma carona de carro até a “boca da estrada” (Figura 3). Com a balsa em movimento no terminal hidroviário, a caminho do centro urbano de Autazes despedi-me apressadamente de Jerson, que embarcou logo em seguida. De balsa o tempo da travessia é maior, mas é de graça. Providenciei meu retorno: nenhum ônibus no local, demonstrando que tardava a volta. Voltei num táxi-lotação mas foi quase uma carona pelo valor que paguei viajando sozinho. Devido ao pouco movimento na estrada, os 190 quilômetros de distância até o Careiro foram percorridos em aproximadamente uma hora e meia. Ao chegar não demorou a lotar a lancha. A atração durante a travessia foi apreciar o encontro das águas, e entre 20 e 30 minutos depois, desembarquei no Porto da Ceasa em Manaus (Diário de campo 14/08/2009).

20 Para um não egresso da antropologia propriamente dita, seria um desafio significativo. Quem sabe este seria o meu rito de passagem, já que a docência nos diferentes níveis do ensino foram as atividades as quais dediquei-me desde a graduação em História a quase uma década e meia atrás. Desse modo, como professor teria a oportunidade de conhecer e refletir sobre o trabalho de colegas de profissão, também de acompanhar a situação ou patamar da educação formal praticada por um determinado povo indígena, e ainda estar em espaços socioculturais diferentes, cuja geografia por si só remete á incursões diversas, aguçadas pelo fascínio que a natureza exerce sobre o indivíduo. Assim sendo, o trabalho etnográfico foi realizado com as habilidades docentes e o interesse pela abordagem antropológica sobre os fenômenos culturais.

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Assim, partindo da cidade de Manaus para chegar à Aldeia São Félix ou ao centro urbano de Autazes faz-se a travessia cruzando de barco pelo encontro das águas; navega-se uns 20 minutos em média atravessando as águas do Rio Negro e as do Solimões, o qual banha uma das vias de acesso ao nosso destino: o município de Careiro da Várzea, de onde percorre-se de ônibus ou táxi-lotação aproximadamente 20 quilômetros pela BR 319 – rodovia que liga o Amazonas a Porto Velho – até o acesso à AM 254 (Figura 2), lado esquerdo da pista. Depois de 94 quilômetros, passando por imensas áreas desmatadas, que viraram campos para a criação bovina, entre longas retas e as curvas que começam a surgir a partir do km 30, já próximas do destino final da rodovia no km 82, localiza-se a comunidade de Novo Céu, via de acesso para a Aldeia Murutinga, maior e mais numerosa Aldeia Mura, e finalmente chega-se à Aldeia São Félix. Outras Aldeias Mura e pequenas comunidades estão distribuídas dentro dos ramais às margens da rodovia que segue até o terminal hidroviário de acesso a Autazes. Também é possível chegar ao município apenas pelo rio, mudando, por sua vez, as paisagens, as distâncias e o tempo, dependendo do porte da embarcação utilizada (Diário de campo, 28/12/2009).

Algumas das referências sobre os participantes foram investigadas em fontes secundárias as quais tratam da história regional e reportam-se ao período colonial, outras fontes referem-se ao século 20, apresentam abordagens etnográficas e são mais escassas por sua vez. Deste modo, visando obter um conhecimento mais amplo sobre os mesmos foi que iniciou o estudo.

Neste sentido, destacamos a situação populacional do povo pesquisado fazendo um paralelo entre os referidos períodos. Segundo dados recentes levantados pela FUNASA (2010) a população Mura até aquele ano era de 15.713 indivíduos (Instituto Socioambiental, 2011, p.13). Nimuendaju com base em Spix e Martius aponta para meados do século 18, entre 30 e 60 mil índios Mura (In: CARNEIRO DA CUNHA, 1992, p. 298), e nas primeiras décadas do século 20 o mesmo contabiliza aproximadamente 1.500 índios Mura em 1926 Posteriormente, na década de 1980, Viveiros de Castro descreve que “os Mura são hoje 1.300 indivíduos que habitam cinco aldeias nos municípios de Manicoré, Auxiliadora e Autazes no Estado do Amazonas” (In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, p.108, 1986).

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Figura 2 – Vista aérea da região da Aldeia São Félix Fonte: Google Earth. Acesso em: 20 nov. 2011.

Antes de encerrar o presente Capítulo é importante ressaltar que a relação entre o protagonismo indígena, a escola e o espaço social Mura estabelecida como título para este tópico constitui a espinha dorsal da pesquisa. Buscou-se atender às indagações que permeavam o meu interesse pela questão indígena. De antemão pode-se considerar que no primeiro momento as incipientes leituras realizadas acerca de diversos aspectos referentes à etnia (a história contada pelos livros, a escolarização e o processo de formação dos professores e a atuação no movimento indígena), revelaram apenas uma face da questão: a do preconceito originado no contexto historiográfico e que minha pesquisa procura problematizar. Entretanto, ao iniciar a interlocução com os professores e lideranças e ouvir a respeito das concepções políticas defendidas pelo movimento e mirar o horizonte da escola Mura percebi a complexidade que enfrentaria no decorrer da pesquisa. Em nenhum momento pensei em desistir, pois criei uma grande admiração por este povo. O estudo portanto, procura demonstrar os caminhos teóricos que tomei como também os lugares, situações e pessoas que conheci.

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Enfim, apresento o Capítulo seguinte o qual sintetiza as referências do conjunto de fontes bibliográficas que contribuíram para a exposição das informações ora apresentadas.

Figura 3 – Terminal hidroviário de Autazes (“Boca da estrada”) Foto: Rony Martins.

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2 OS MURA ATRAVÉS DA HISTÓRIA, ANTROPOLOGIA, LITERATURA E ESCOLA

Os Mura são identificados a partir de meados do século 18. A etnia é mencionada sob a ótica das representações colonialistas que partiam dos olhares impressionados daqueles que acompanhavam direta ou indiretamente o processo de expansão e conquista da Amazônia.

A tendência que se desenvolveu na historiografia tornou-se marcante até os dias atuais por intermédio dos relatos históricos que apontam a presença Mura na região durante aquele contexto. O retrospecto referente a esta questão constitui um dos aspectos apresentados pelo Capítulo que segue.

Outra perspectiva parte de referências desenvolvidas no campo antropológico, quando a descrição que permeia a narrativa etnográfica torna possível a reconstrução do passado embasada nos aspectos culturais, o que, por sua vez, contribui ao resgate histórico, cuja importância faz-se presente ao estudo da etnia. Sendo assim, os significativos aportes desta natureza compõem a abordagem seguinte deste Capítulo.

A revisão historiográfica proposta na pesquisa, todavia, apresenta um breve panorama da presença Mura na literatura propriamente dita, a partir da contextualização das obras que se referem aos mesmos.

Enfim, o Capítulo chega à narrativa do histórico da escolarização Mura, no qual situa-se o processo que levou a retomada da educação escolar da etnia ao patamar alcançado na atualidade.

2.1 A PRESENÇA MURA: ENTRE A HISTÓRIA REGIONAL E A LITERATURA DOS VIAJANTES

Ao localizar a presença Mura no contexto historiográfico regional ou na história do índio, foram encontradas diversas descrições e narrativas referentes aos Mura e que serão contextualizadas a partir de agora.

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Entre as primeiras referências que obtive sobre os Mura destaca-se o

conteúdo do livro didático História do Amazonas21 publicado em 2007. Neste livro,

percebe-se em seu texto algumas ambiguidades, dentre elas o próprio título: Os “abomináveis índios Muras” (sic) (SANTOS, 2007, p. 126). A expressão utilizada refere-se ao passado colonial, mas apresenta um sentido capaz de gerar preconceito e discriminação contra a etnia na atualidade. O que pensam os Mura sobre isto?

Em outra fonte muito difundida nas bibliotecas escolares, um renomado especialista em estudos amazônicos descreve a etnia da seguinte maneira:

Muras (sic), índios ladrões e nômades que se encontram, desde os primeiros tempos da exploração. Em Silves, em todo o percurso do Madeira, em Manacapuru, no Purus, onde aniquilaram várias tribos nos lagos Anamã e Codajás, de onde partiam para fazer incursões Unini; mesmo no fim do século XVIII infestavam ainda os arredores de Manaus. Suas incursões retardaram certamente o povoamento de uma parte do Amazonas (BENCHIMOL, 1999, p. 56).

Os Mura também são mencionados em um livro do já falecido historiador amazonense Mário Ypiranga Monteiro. Neste livro consta uma data duvidosa e informações que, segundo o autor, baseiam-se nos relatos do padre João Daniel.

Bastas vezes os cronistas fizeram alusão à presença de gente branca na região, e tornou-se necessário convir que estamos em 1542, portanto cinqüenta anos depois do descobrimento da América! Em quarenta e nove anos muita coisa poderá ter acontecido: Os Mura, por exemplo, navegavam do baixo rio Madeira ao rio Negro e ao Rio Japurá, guerreando, roubando, comendo gente, escravizando, trocando produtos (MONTEIRO, 1977, p. 119).

Entretanto, na obra do padre João Daniel, missionário pertencente a ordem de Companhia de Jesus, conheceu e realizou atividades na região em meados do século 18, cuja fonte apresenta grande densidade e riqueza etnográficas devido aos inúmeros relatos, não verifica-se a constatação do referido canibalismo. Monteiro, que aproximadamente dois séculos depois faz referência a esta fonte, pode ter interpretado equivocamente este fato. No Tesouro descoberto no máximo Rio Amazonas, escrito por Daniel é mencionado que,

21 O conteúdo do livro é de grande difusão entre o público, pois a distribuição deste também é relativamente ampla devido ao fato de ser adotado pelas escolas públicas estaduais para as aulas de História do Ensino Médio.

Referências

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