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Capítulo IV. Estudos de Caso: Blacksad – Arctic Nation e Zé Gatão – Memento Mor

4.3 Antropomorfismo e Narrativa

A partir da apresentação dos personagens e da exposição de como eles interagem com os diferentes atributos animalescos é possível afirmar que o antropomorfismo exerce um papel Indicial muito forte em Blacksad – Arctic Nation. Estudaremos agora a existência de um aspecto Funcional no antropomorfismo de Blacksad.

Desde as primeiras páginas da obra, o racismo é exposto como elemento essencial a toda narrativa. Baseando-se muito na segregação racial que ocorreu nos Estados Unidos até a segunda metade do século XX, os autores da obra apresentam uma sociedade totalmente dividida entre animais brancos (Árticos) e negros. No entanto, percebe-se logo que os critérios utilizados são totalmente baseados nos aspectos humanos para definir esse racismo. Apesar de existir em The Line uma variedade imensa de animais, não é a raça ou a espécie às quais pertencem os diferentes personagens que definem as suas etnias. Apenas a cor da pelagem branca ou negra define a qual grupo pertence o personagem. Essa aproximação se baseia exclusivamente na perspectiva humana de racismo, em que a cor de pele seria o fator determinante. Essa escolha dentro de um mundo antropomórfico levanta algumas dúvidas quanto aos animais que não possuem pelos brancos ou negros, como muitos são retratados, a começar por Weekly. Em nenhum momento da narrativa esses

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TH: You play a lot with the stereotypes of different kinds of animals. How do you decide which animal to use for a certain character? Is that something you develop consciously, or does it happen by chance? Diaz Canales: It is very important, and we invest a lot of time in finding the right animal. You could easily call it casting a role. Sometimes you know immediately that you need a particular kind of animal for a certain character, but at other times it’s far less clear. If that’s the case, you could for example take a less obvious animal, like an ostrich, and have it play an important part. Things like that keep it interesting for us as well. You can also play on the expectations of the reader. In Artic Nation we used a polar bear, who turned out to be a paedophile – far less innocent as you’d think. Sometimes we start from the archetypal meanings of a certain kind of animal, as you’d find it in fairy tales, for example, or rather make a purely symbolic choice. Like the communist in the third book : that had to be a bear (laughs). And sometimes we just joke around. The hippopotamus in the fourth book is inspired by Orson Welles in Touch Of Evil. So there’s a thousand an one reasons why you select a certain animal for a particular part.

personagens de outras cores têm a sua etnia contestada ou segregada, o que sugere que eles são alheios ao racismo em The Line, não se posicionando em favor ou contra determinado grupo.

Outro fator decorrente da representação do racismo sob um prisma humano é a situação de Blacksad dentro desse contexto racial, ao ser um gato preto com um focinho branco. Durante a narrativa, ele é questionado duas vezes sobre a sua pelagem. Primeiro, por um membro da Arctic Nation, que o questiona por entrar em um bar reservado a brancos. Em resposta, Blacksad aponta para o seu focinho e pergunta ironicamente se aquilo não basta (Figura 25). Em um segundo momento, ele é abordado por membros da Black Claws, que perguntam ao detetive o que aconteceu com o seu focinho, ameaçando pintá-lo com tinta preta. Esses trechos apontam que houve um questionamento por parte dos autores de como contornar os limites impostos pelo antropomorfismo ao disponibilizar uma imensa diversidade de cores e espécies dentro de um conceito de racismo humano e binário (branco e negro).

Figura 25: Vinhetas de Blacksad Arctic Nation.

A resolução foi de reconhecer esse limite com esses dois trechos e ao mesmo tempo tirar uma vantagem narrativa, já que os dois momentos são de extrema tensão. A primeira por anteceder uma briga dentro do bar e a segunda quase resulta em um tiroteio. O fato de Blacksad ter as duas cores em sua pelagem também reforça a sua independência, distanciando-o das duas gangues, caracterizando ainda mais o personagem como um “lobo solitário”.

O antropomorfismo como elemento funcional não encontra ao longo da narrativa outros desdobramentos; portanto, pode-se afirmar que em Blacksad – Arctic Nation o papel da ferramenta é quase que unicamente Indicial, tendo uma participação

quase nula no desenrolar da ação. Como vimos, o conflito racial que é o pano de fundo da história é construído a partir dos parâmetros humanos de cor de pele e não tanto pelas diferentes espécies e cores dos animais. A escolha dos autores de se afastar da animalidade para tratar do conflito racial é, sem dúvida, uma maneira de trazer mais realismo à narrativa que já se baseia, sob circunstâncias reais, no caso do racismo entre os anos de 1940 e 1970, nos Estados-Unidos, inclusive, fazendo referência a dois grupos violentos envolvidos no conflito racial, a Klu Klux Klan, famoso grupo supremacista branco, sob a figura dos Arctic Nation e o Partido dos Panteras Negras, organização marxista norte-americana que defendia entre outras coisas o nacionalismo negro, representados pelos Black Claws. No entanto, os traços animalescos como elementos secundários na definição do racismo para a narrativa podem ser interpretados como uma crítica a essa ideologia que tende a polarizar e dividir, não enxergando a pluralidade da raça humana. Sob essa interpretação, a variedade de cores e animais representados sugere justamente que a ideologia do racismo é cega e, embora presente, não representa a raça humana. A escolha de Guarnido e Canales por apresentar o racismo desta maneira é, de certa forma, muito peculiar dentro do universo dos quadrinhos antropomórficos. Em Maus, Fritz the Cat e Bicho do Mato (1997), entre outros, as diferenças étnicas e sociais humanas são representadas pelas diferentes espécies que compõem essas narrativas, acentuando em todas elas as diferenças que existem e existiam entre os diferentes povos retratados. Seja pela intensidade da caça aos judeus perpetrada pelos nazistas, que se assemelha à voracidade de um gato atrás de um rato, ou ainda as diferenças culturais e sociais entre os negros dos anos 1960 e os brancos que fez Robert Crumb optar por retratar os afrodescendentes como corvos e os caucasianos como mamíferos de diferentes espécies, os autores realçam e reforçam a tragédia dessa ideologia. Em Blacksad – Arctic Nation, no entanto, talvez seja a irracionalidade dessa mesma ideologia que seja constantemente levantada por toda a variedade de animais antropomórficos ali representados.

A fim de concluir o nosso estudo sobre esta obra, pode-se dizer que o antropomorfismo é, neste caso, uma ferramenta totalmente voltada para a narrativa. Os autores espanhóis moldam os traços animalescos e humanos de seus personagens de acordo com as demandas do enredo, enfatizando personalidades, momentos de tensão, de violência ou ainda de humor com a animalidade e, por outro lado, aprofundando sentimentos complexos, emoções e sensibilidades com traços humanos.

O constante contraste entre essas duas medidas auxilia a narração, na medida em que ele ativa no leitor uma imensa quantidade de informações que já estão presentes em seu imaginário, o que por sua vez oferece mais dinamismo e concisão à história. A série Blacksad, apesar de ser uma obra antropomórfica, se quer extremamente realista, não só no nível gráfico, que trabalha tanto os detalhes humanos como animais de cada personagem, mas também no nível da narração. Em Arctic Nation, não é só o conflito racial norte-americano e as organizações históricas como a Klu Klux Klan (Arctic Nation) e os Black Panthers (Black Claws) que estão presentes no enredo, mas também a guerra de Secessão e a Segunda Guerra Mundial são constantemente lembradas para reforçar o realismo. Assim, a trama de Blacksad é totalmente humana, mas o uso dos animais antropomorfizados traz consigo uma forte carga simbólica aos personagens, reforçando paradoxalmente as qualidades e os defeitos humanos de cada um deles.