• Nenhum resultado encontrado

Capítulo II. Panorama histórico do antropomorfismo nas artes gráficas e narrativas

2.4 Idade Moderna

A Idade Moderna, período que se inicia por volta de 1500 e termina em torno de 1800, caracteriza-se por mudanças profundas nas relações entre os homens e os animais. O antropocentrismo, pensamento essencial da era Moderna, é sem dúvida uma das razões que modificam as percepções do homem em relação à natureza.

O antropocentrismo, que coloca o homem no centro do conhecimento e da natureza, conheceu, a partir da Renascença, uma importância crescente entre artistas e cientistas. No entanto, é importante ressaltar que a religião cristã, que por volta de 1500 já se tinha tornado hegemônica em todo continente europeu, ofereceu a base para esse pensamento. Afastando as populações das religiões consideradas pagãs, que adoravam elementos da natureza, e instaurando uma fé centrada na figura humana de Jesus Cristo, a Igreja semeou e fortificou, por meio da arte, a dominação do homem sobre a natureza. Outro fator, destacado por Keith Thomas em O homem e o mundo natural: mudanças de atitudes em relação às plantas e animais (1500-1800), é o forte crescimento econômico e tecnológico que caracterizou o período, não só com as descobertas do novo mundo e da possibilidade de se atravessar oceanos graças aos avanços náuticos que se traduziam em deflorestações massivas para a construção de navios, mas também pelos avanços tecnológicos nas lavouras e na criação de animais. Esses elementos deram a visão de que o homem se superara e se sobrepunha ao

mundo natural e a subjugação do mesmo fazia parte do plano divino.

Os cientistas e planejadores econômicos do século XVII anteviam triunfos ainda maiores sobre as espécies inferiores. Para Bacon, o fim da ciência era devolver ao homem o domínio sobre a criação que ele perdera em parte com o pecado original, ao passo que Robert Boyle era instado por seu correspondente John Beale a estabelecer o que este chamava “o império da espécie humana”. (THOMAS, 2010, p. 35)

Essa visão da dominância humana sobre o restante do planeta, respaldada tanto por argumentos científicos como religiosos, consolidou o menosprezo pelos animais. Afastar-se do comportamento considerado bestial era essencial para o homem do início da era Moderna. Não por acaso, o diabo era descrito com características bestiais (pernas de bode, chifres etc.). A distinção entre o que pertencia aos comportamentos animais era essencial para definir a humanidade. René Descartes, por exemplo, considerava animais máquinas biológicas que seguiam um comportamento predeterminado e que, por consequência, não possuíam almas por não poderem pensar. Essa afirmação justificou por muitos séculos experimentos cruéis com animais, assim como justificava a aceitação do maltrato dos animais em todas as esferas das sociedades ocidentais:

Onde quer que olhemos, na Inglaterra do início do período moderno, encontramos ansiedade, latente ou explícita, quanto a qualquer forma de comportamento ameaçando transgredir os frágeis limites entre o homem e a criação animal. A higiene física era necessária, conforme afirmaria John Stuart Mill, porque sua falta, “mais do que qualquer outra coisa, torna o homem bestial.” (THOMAS, 2010, p. 51)

Sob essa ótica é que se desenvolvem os panfletos e as críticas que, para ridicularizar, reprimir e desqualificar, atribuem qualidades animais grotescas a personagens públicos e religiosos. Associados a esse imaginário negativo em relação ao mundo animal estão os adventos tecnológicos de gravura e impressão, que permitiram a propagação dessa iconografia como propaganda religiosa e política a partir do século XVI (GUÉDRON, 2011). No exemplo a seguir (Figura 7) vemos a família real francesa sendo transferida do palácio para a prisão. O Rei Luís XVI é representado como um peru, e sua esposa Maria Antonieta e seus filhos, como lobos, enquanto o revolucionário que os conduz não sofre nenhuma transformação em sua

representação. A zoomorfização da família real francesa tem o claro caráter de menosprezo de seus membros, tanto apelando para um lado mais cômico e ridículo ao retratar o rei sob a forma de um peru, como para ressaltar o perigo que a família representava aos olhos da revolução, representando a rainha Maria Antonieta e sua descendência como lobos.

Figura 7 Les Animaux rares ou la Translation de la Ménagerie Royale au Temple le 20 août 1792, Paris Bibliothèque Nacional de France.

No entanto, a era Moderna não produziu apenas uma tentativa de se separar o humano do animal. Apesar de muitos cientistas enfatizarem essa diferenciação e justificarem os seus experimentos a partir dela, é nessa época que se desenvolvem estudos científicos sobre o mundo natural de maneira mais séria, dando início às ciências biológicas, dentre as quais a Zoologia e a Botânica. Esse movimento se repetiu no mundo das artes e, mesmo tendo perdido o protagonismo da Idade Média, o tema do animal ganhou força, principalmente com a retomada da hoje desacreditada ciência da Fisiognomonia.

2.4.1 Fisiognomonia

Segundo Maria Izilda Santos de Matos (2012), a Fisiognomia é a área do conhecimento que estuda os traços e expressões do rosto, buscando neles compreender, apreender e reproduzir as sensibilidades, decifrando desejos e paixões, revelando defeitos e qualidades, forças e fraquezas.

Como a própria definição indica, a Fisiognomonia é uma área do conhecimento que mescla o científico com o místico e o religioso, tendo portanto pouco valor científico para os padrões atuais. No entanto, a sua origem e o percurso desse conhecimento através do tempo revelam-se fundamentais para entender a questão identitária do homem ocidental em relação à natureza e principalmente aos animais.

Na sua trajetória histórica, as análises do rosto foram formuladas em tratados filosóficos, médicos e anatômicos, manuais artísticos, místicos e de civilidade, alvo de observações detalhadas e pormenorizadas que visaram revelar o que seria autêntico ou imposto, o que exprimia ou ocultava, a espontaneidade e o silêncio das emoções, sempre procurando desvendar os segredos da alma. (MATOS, 2012, p. 17)

A origem da Fisiognomonia encontra-se na Antiguidade, por exemplo, escritos de pseudo-Aristóteles, de Polémon, de Adamantios e de pseudo-Apuleio que já se debruçavam sobre a questão de se decifrar a alma através de elementos faciais. Os autores desses textos buscavam legitimar os seus escritos, então atribuíam sua autoria a nomes consagrados como Aristóteles e Apuleio. Porém, sabe-se hoje que esses textos não pertenciam a esses pensadores e portanto deu-se o cognome “pseudo” para diferenciá-los.

Não tardou para que se fizessem associações entre o comportamento de animais a traços físicos que poderiam ser reencontrados na fisionomia dos rostos humanos. Por exemplo, um escritor pseudoaristotélico afirmava: “Os leões são magnânimos e têm a ponta do nariz arredondada e achatada, os olhos relativamente fundos: são magnânimos aqueles que tiverem as mesmas particularidades no rosto” (BALTRUSAITIS, 1999, p. 14).

Essa visão perdurou ao longo da Idade Média graças não somente aos bestiários que associavam o comportamento humano ao comportamento de certos

animais, mas também a práticas como metoposcopia, forma de adivinhação que se baseava na leitura dos traços da face. Os avanços artísticos e anatômicos, que caracterizaram a Renascença, revigoraram a Fisiognomia. Artistas como Leonardo da Vinci aprofundaram-se nesses estudos e aperfeiçoaram técnicas de pintura e caricatura reforçando os princípios da Fisiognomonia. Por outro lado, obras como De Humana Physiognomia, do italiano Giambattista della Porta, retomavam a crença aristotélica de que havia um elo entre as feições animalescas e o comportamento humano (MATOS, 2012). Apesar de no século XVII filósofos importantes como Francis Bacon rechaçarem essa afirmação, a Fisiognomonia manteve-se uma área importante do conhecimento científico e artístico no ocidente.

A Fisiognomonia ainda conheceria muitos adeptos ao longo dos séculos seguinte e seria essencial para cientistas como Charles Darwin estabelecerem a ligação entre o mundo natural e os seres humanos. A Frenologia, estudo das faculdades mentais a partir da morfologia dos crânios, seria um dos desdobramentos da Fisiognomonia, no entanto ambas caíram em descrédito não só por não serem cientificamente comprováveis, mas pelos radicalismos, como o racismo, que se justificaram a partir delas.

2.4.2 A corte de Luís XIV

O reinado de Luís XIV sobre a França se caracterizou por um forte desenvolvimento artístico em diversos campos. No teatro, por exemplo, nomes como Molière e Racine se destacaram; na música e na dança, Lully e Beauchamps; na literatura, La Fontaine, Perrault e, na pintura, Le Brun (BURKE, 1994).

Esses três últimos em particular retomaram o tema do antropomorfismo e devolveram a ele um lugar de destaque nas artes clássicas. O primeiro, como mencionado anteriormente, retomou com muito sucesso as fábulas esópicas e indianas, colocando-as em versos e aproveitando a versatilidade do gênero para criticar os vícios e as extravagâncias da corte. O trabalho de La Fontaine, apesar de ser implicitamente direcionado a um público adulto, acabou sendo muito popular na educação, em parte pelo prefácio do primeiro volume das fábulas, que dedicava a obra à instrução do príncipe herdeiro. As fábulas de La Fontaine eram, desde o início, acompanhadas de ilustrações de François Chauveau; futuramente elas seriam

retomadas por Gustave Doré e Jean Ignace Isidore Gérard Grandville (conhecido como J.J. Grandville). La Fontaine devolveu às fabulas o protagonismo como gênero literário e foi a partir de seus trabalhos que elas voltaram a se popularizar em todos os níveis da sociedade (DEZOTTI, 2003).

Outro autor que alcançou um efeito similar em trazer um gênero essencialmente popular aos meios sociais e artísticos mais elevados foi o escritor Charles Perrault, responsável por resgatar os contos de fadas que eram transmitidos até então oralmente entre as camadas mais populares. Os contos de fadas eram e são recheados de personagens antropomórficos. Por exemplo, o lobo da história da Chapeuzinho Vermelho, ou ainda toda a história dos Três Porquinhos (FANO, 1987). Ao passar esses contos populares para a escrita, Charles Perrault não só assegurou a sobrevivência dos mesmos através dos séculos, como também deu a eles uma relevância literária, que seria retomada e reforçada pelos Irmãos Grimm no século XIX. Os Trabalhos de La Fontaine e Perrault estabeleceram as bases para que se desenvolvesse, ao longo dos séculos seguintes, a literatura infantil. Nota-se, assim, que o antropomorfismo presente na obra de ambos é um fator crucial na construção do universo da literatura infantil (FANO, 1987).

No campo das Artes Visuais, além do já mencionado Chauveau, que ilustrou as fábulas de La Fontaine, o primeiro pintor do rei Luís XIV, Charles le Brun, dedicou muitos estudos ao antropomorfismo. Adepto da Fisiognomonia e influenciado pela obra de della Porta, entre outros, Le Brun consagrou boa parte de sua obra em buscar nas expressões faciais e nos traços dos rostos a essência da alma. No início do século XIX foram encontrados nos arquivos da Academia Real pranchas relacionadas ao Traité du Rapport de la Figure Humaine avec celle des Animaux. Apesar de o texto original ter se perdido, estas pranchas estão conservadas no museu do Louvre e nela figuram estudos gráficos de Le Brun que relacionam o rosto humano a diversos animais, indicando a busca de traços animalescos na fisionomia dos rostos que poderiam indicar padrões de comportamento (Figura 8) (MATOS, 2010).

Figura 8: Traité du Rapport de la Figure Humaine avec celle des Animaux, Charles Le Brun 1671 – Museu do Louvre.

Se, por um lado, a ciência e a religião reforçavam o antropocentrismo no início da era Moderna, o interesse pela Fisiognomonia e o resgate das fábulas e dos contos populares devolveram aos animais um papel importante na vida cultural. À medida que o conhecimento científico avançava e o Ocidente se aproximava da revolução industrial, essa reaproximação sugerida implicitamente por esses artistas da corte do rei Luís XIV retomou um papel central no conhecimento humano. Avanços como a descoberta do mundo microbiológico, graças à invenção do microscópio, e o interesse cada vez mais científico pela vasta fauna e flora do planeta abalaram um dos fundamentos do antropocentrismo. A ideia de que a natureza estava à disposição do homem perdeu forças frente ao pensamento contrário, que afirmava que o mundo natural é alheio aos desejos humanos (THOMAS, 2010).