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Capítulo III. O papel narrativo do Antropomorfismo

3.1 Um Gênero Antropomórfico

3.1.1 O Antropomorfismo e a Literatura

Neste primeiro momento, abordaremos a questão do gênero seguindo o escopo de Tzvetan Todorov em sua obra Introdução à Literatura Fantástica. Em seu texto, o autor trabalha com um conceito bastante amplo de gênero, inspirado na obra de Northrop Frye, Anatomy of criticism. Frye apresenta o seu conceito a partir da relação entre três variáveis, o leitor, o herói (protagonista) e as leis da natureza. Se, por exemplo, o herói é superior ao meio ambiente e ao leitor, trata-se então de um mito; se, por outro lado, o herói for inferior ao leitor e às leis da natureza, então o gênero seria o da ironia. Esse sistema não está livre de críticas, algumas das quais apontadas pelo próprio Tzvetan Todorov, como, por exemplo, a apresentação de apenas cinco

combinações possíveis para ilustrar gêneros históricos. Gêneros históricos são aqueles que estão bem definidos dentro da história literária ocidental, como a tragédia, por exemplo. Assim, o autor de Introdução à Literatura Fantástica determina para o seu estudo três elementos essenciais para determinar sua teoria de gêneros, o aspecto verbal (estilo), o aspecto sintático (composição) e o semântico (temas). Este último é o que mais interessa a nossa pesquisa, já que, de certa forma, ele se estende para além da literatura:

Para este campo, não estabelecemos, de início, nenhuma hipótese global; não sabemos como se articulam os temas literários. Todavia pode-se supor, sem correr qualquer risco que existam alguns universais semânticos da literatura, temas que se encontram por toda parte e a toda hora e que são pouco numerosos; suas transformações e combinações produzem a aparente multidão dos temas literários. (TODOROV, 1975, p. 24)

A partir desses conceitos, Todorov inicia o seu estudo sobre literatura fantástica e seus gêneros irmãos como o maravilhoso e o estranho. Seguimos de perto o trabalho desse pesquisador, porque, como veremos, esses gêneros estão diretamente ligados à questão do antropomorfismo.

Em seu livro, Todorov ressalta a importância de se definir um gênero em contraposição aos demais. Assim, ele apresenta o fantástico como um gênero que tem em sua essência a dúvida e hesitação do protagonista quanto à realidade dos eventos que se passam a sua volta ou com ele. Essa perturbação é levada ao leitor e, para se manter dentro do Fantástico, ela não deve ser resolvida ao final da obra. A não explicação é determinante para o gênero, que, como podemos constatar, é extremamente frágil.

Assim que é dada uma explicação ao evento central da trama, cai-se em um outro gênero. Se a resolução for racional e não envolver o sobrenatural ou conhecimentos ainda não adquiridos pelo homem, trata-se então do Estranho. Decorre desse gênero, por exemplo, o romance policial. Nele, muitas vezes, o enredo é construído para nos levar a crer em manifestações do sobrenatural, mas ao final da obra o detetive geralmente esclarece essas manifestações com deduções, lógica e ciência.

Por outro lado, se a obra aceita como resposta o sobrenatural, ou ainda faz uso de conhecimentos ainda não reais para sua época, trata-se então do maravilhoso:

No caso do maravilhoso, os elementos sobrenaturais não provocam qualquer reação particular nem nas personagens, nem no leitor implícito. Não é uma atitude para com os acontecimentos narrados que caracteriza o maravilhoso, mas a própria natureza desses acontecimentos. (TODOROV, 1975, p. 59)

Deste gênero derivam muitos outros, como a ficção científica ou ainda os Contos de Fadas:

Relaciona-se geralmente o gênero maravilhoso ao do conto de fadas; de fato, o conto de fadas não é senão uma das variedades do maravilhoso e os acontecimentos sobrenaturais aí não provocam qualquer surpresa: nem o sono de cem anos, nem o lobo que fala, nem os dons mágicos das fadas (para citar apenas alguns elementos dos contos de Perrault). O que o distingue o conto de fadas é uma certa escritura, não o estatuto do sobrenatural. (TODOROV, 1975, p. 60)

Como indicam as citações de Todorov, é no maravilhoso que se encontra mais bem representado o antropomorfismo. No antropomorfismo como o concebemos, raramente há um questionamento do protagonista sobre o aspecto sobrenatural de se ter animais agindo e comportando-se como homens. Mesmo quando se trata de uma metamorfose, como é o caso de lobisomens ou outras transformações em que o tema central da obra é justamente a transmutação, aceita-se muita vezes uma explicação sobrenatural ou ainda maravilhosa-científica, como é o caso no romance de H.G. Wells, A ilha do Dr. Moreau, obra do final do século XIX que narra a insanidade de um cientista que busca transformar animais em seres humanos, alcançando apenas aberrações incontroláveis.

Embora muitas obras expliquem o antropomorfismo com os elementos mencionados anteriormente, outras optam por ele sem dar qualquer explicação ao leitor para este fenômeno. Por exemplo, o universo antropomórfico criado por Reed Waller e Kate Worley em Omaha a stripper (2006) não tem a sua origem esclarecida ao leitor.

Não podemos deixar de mencionar a alegoria como figura retórica que se encontra perfeitamente inserida dentro de gêneros que tratam do maravilhoso, como as Fábulas:

A Fábula é o gênero que mais se aproxima da alegoria pura, onde o sentido primeiro das palavras tende a desaparecer completamente. Os contos de fadas, que comportam habitualmente elementos sobrenaturais, aproximam-se das fábulas; assim são alguns contos de Perrault. Neles o sentido alegórico encontra-se explicitado no mais alto grau: nós o encontramos resumido, sob a forma de alguns versos, no fim de cada conto. (TODOROV, 1975, p. 71)

É importante ressaltar que Todorov frisa em sua obra que uma alegoria precisa ser muito explícita para ser definida como tal. Assim, não é possível dizer que toda vez que um autor opta por escolher animais antropomorfizados ele necessariamente está fazendo alguma alegoria a um comportamento humano. No entanto, obras como a Revolução dos bichos de George Orwell trabalham uma alegoria que se torna cada vez mais explícita à medida que o texto avança. Em seu romance, os animais de uma fazenda tomam controle da propriedade e se organizam nos moldes do comunismo. Porém, pouco a pouco, os seus líderes se desvirtuam e se aproximam cada vez mais dos comportamentos humanos. A obra é uma clara alegoria à União Soviética e ao Stalinismo, e nela é possível reconhecer figuras políticas como Leon Trotsky (Bola de neve) e Stalin (Napoleão).

Como vemos na literatura, o antropomorfismo não constitui um gênero em si próprio, a sua presença está mais para uma marca do gênero maravilhoso do que para um elemento determinante. Porém, a popularidade desta forma de representação se manifesta muito mais claramente nas histórias em quadrinhos, graças, em parte, a sua presença nos produtos culturais de grandes empresas de entretenimento; assim, é importante debruçar-se sobre a questão se o antropomorfismo constituiria um gênero nas histórias em quadrinhos, da mesma forma como os Super-heróis (DUNCAN, SMITH, 2009).