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CAPÍTULO 3 – JOGO DE ESPELHO

3.1. Aonde os pés te levam quando você caminha para a liberdade?

A instituição para pessoas com necessidades especiais tem sido um lugar em que crianças violentadas e vitimizadas ganham o estereótipo de pessoas com dificuldades de aprendizagem ou pessoas portadoras de necessidades especiais.

Nesse espaço “o álbum de retratos desde muito cedo começa a existir na nossa vida. Sob cada foto, breves legendas não só nos situam espaço-temporalmente como também

costumam fazer algum comentário sobre nós” (PRECIOSA, 2010, p. 34).

Negão do Batuque, Calango, Peão de Rodeio, Lêlê da Andança, Flor de Jabuticabeira, Dama da Noite, Orquídea do Mato, Flor de Pequi, Egão, Flor de Pitanga, Flor de Mangueira, as cirandeiras da educação de jovens e adultos, Folguedo, os homens e mulheres negros, ciganos ou “pardos” que vem de uma raiz fincada na tradição cultural popular, todos eles vivenciam a educação em uma instituição apaeana. Neste lugar não obtive informações sobre diagnósticos que me informavam das suas “necessidades especiais”.

Essas inacessibilidades à documentação de registros institucionais permitiram-me

expô-los enquanto um “alguém produzindo-se, confabulando com o vivo, em permanente

conexão com as paisagem do fora. [...] Alguém aceso” (PRECIOSA, 2010, p. 36). Em conexão com a escrita poética artista que nos desvela.

Desvelando-me inicio meu texto, apresento-me, coloco a palavra que me inclui nesta pesquisa, palavra que surgiu de um ir e vir do espaço acadêmico para o institucional, da percepção criativa que desensobou na não máscara:

Nunca poucos fizeram tantos de pinico! (BARROS, 2013, p. 140).

Meu corporeomental estava couraçado para as questões do visível e invisível na condição de vida do negro, do índio, do congadeiro, do capoeirista, do deficiente, do louco, da criança vítima de violências, “esses sujeitos altamente criativos, predispostos, curiosos, vitimizados pela exclusão” (SGALHEIRA, 2012, p. 23).

Meu corpo estava couraçado na uniformidade, nos processos de conquista violenta, nas marcas simbólicas que negavam os tipos e as variedades de cor de pele, textura de cabelo, características físicas e corporais que convivem em mim.

Eu estava couraçada para a minha própria condição de artista, mulher, mãe solteira, pobre (cuja fome se satisfaz nas migalhas), educadora (cujo pesado da vida sobrecarrega o corpo). Essas couraças comprimiam a musculatura, o peito, os pulmões, as vísceras, a afetividade, a percepção, o imaginário. E necessitavam ser desamarradas para que o corpo expressasse o que a gente oculta nas humilhações, no estrangulamento de palavras e de sentimentos, na solidão, no feio, na imaginação exacerbada, ou quando negamos que nós somos “seres com ressonâncias energéticas de elementos vindouros de outro espaço/ tempo” (BRONDANI, 2014, p. 103).

A escuridão não tem sombra. Um homem estava anoitecido. Se sentia por dentro um trapo social. Igual se, por fora, usasse um casaco rasgado e sujo.

Tentou sair da angústia Isto ser:

Ele queria jogar o casado rasgado e sujo no lixo.

Ele queria amanhecer. (BARROS, 2013, p. 412-3).

Naquele começo de vida Telúrica, a formiga não sabia que possuia ligações com o mundo subterrâneo. Não sabia que “desde o começo do mundo água e chão se amam/ e se encontram amorosamente/ e se fecundam” (BARROS, 2013, p. 423).

Não me lembrei do movimento da água. No exercício anterior a água não existia como parte da minha pesquisa. A formiga se batia perdida pela sala indo e vindo. E toda vez que esbarrava em um obstáculo mudava o seu curso. A sua palavra na pesquisa era o estranhamento. Estranha procura ou procurando pelo estranhamento foi ação que mais caracterizou o inseto. (MÁRCIA OLIVEIRA, Caderno de Registro Artístico, 2013, p. 6).

Encurvada, a formiga, carregava para o fundo da terra e trazia para a superfície algo que se assemelhava a elementos de energia. Porém era-lhe, aquela energia, desconhecida.

Eu estava de olhos fechados me debatendo quando senti as mãos de Joice Brondani

me oferecendo a segurança para caminhar em outra direção. Na construção da máscara32,

enquanto a formiga se debatia, o animal cobra serpenteava com um caxixi em cada mão. Na dança do animal cobra, o elemento fogo e ar predominava sobre o elemento terra e

32 Refiro-me ao processo de construção da máscara, na disciplina Corpo Máscara e Cultura Popular, no PPGArtes/UFU/2013.

água. A água trazia o estranhamento e o desconhecido cercava-me de certo temor. A terra era sertaneja e o corpo disforme como as árvores do cerrado.

O inseto enformigou no meu imaginário. Metamorfoseou-se no corporal. Ela não tinha uma voz, uma clareza de movimento. Era simplesmente um inseto que transitava rapidamente, como que perdido, como que buscando-se em algum ponto no laboratório. Se fosse caracterizá-la por uma palavra diria: estranhamento.

Na formiga não havia uma intensidade grotesca, não havia ligação clara com o mundo animal. Seu corpo não sentia a liquidez do imaginário, nem os abrasamentos dos instintos. Ela era um inseto de energia apagada. Nela sequer brilhava o forte elo com a ritualidade xamânica dos elementos fogo, terra, ar e água. Presa de si mesma, a formiga se batia perdida, indo e vindo, e sempre que esbarrava em um obstáculo mudava seu curso. Se fosse caracterizá-la pela ação seria: procurando com estranhamento sua identidade.

Filha do nada: uma condição de pertencimento.

“Alguém, que se diz „si mesma‟, aparece” (PRECIOSA, 2010, p. 36). Crio texto para dar vazão às percepções de invisibilidade da máscara do malafincado corpo brasileiro, seja ele negro, ou índio. Abro o coração para o pertencimento também da artista, da mulher, da educadora que arde em desejos de revelar-se.

Oh! Quando alembro do vovô, aruê Me dá pancada no coração, aruê Ele contava o sofrimento, aruê Como foi a escravidão, aruê Ele comia no cocho, aruê Era angu e feijão, aruê O vovô mudou pra longe, aruê Pra aquele centro de sertão, aruê33

Minha mãe foi bela sereia gbàjê, meu pai um bacuara filho de carayba, meu avô foi homem cambá, minha avó uma cariboca.

Eu nasci nos braços de tupã, no tronco de meus ancestrais, aruê. Hoje no centro do sertão sou bangalafumenga, aruê.

Arisca, desatinada, boboca, riso solto, palerma de boca aberta, andar desconjuntado, voz endurecida pela estupidez, aruê.

33 Verso cantado pelo Moçambique do Oriente, capitã Dagmar Maria Coelho, faixa 14 do CD Memória do

Hoje sou filha do nada, aruê.

A invisível que ficou aprisionada na monstruosidade, aruê.

Jogo de luz e sombras

“Eu sou muitas pessoas destroçadas”. (BARROS, 2013, p. 289).

A distribuição da luz e das sombras sobre objetos, ambientes e corpos, não é coisa que deveríamos tomar meramente como coisa física, o corriqueiro espetáculo de como o sol ou a lâmpada faz figurar certos lados, deixando outros sob penumbra, arquitetando o que vai brilhar e o que ficará escuro. A iluminação é coisa também social. O que vemos e o que deixamos de ver, o regime de nossa atenção, é decidido segundo o modo como fomos colocados em compahia dos outros, segundo o modo como tambem nos colocamos e como eventualmente nos recolocamos em companhia.

[...] Invisibilidade pública é expressão que resume diversas manifestações de um sofrimento político: a humilhação social, um sofrimento longamente aturado e ruminado por gente das classes pobres. Um sofrimento que, no caso brasileiro, e várias gerações atrás, começou por golpes de espoliação e servidão que caíram pesados sobre nativos e africanos, depois sobre migrantes baixo assalariados: a violação da terra, a perda de bens, a ofensa contra crenças, ritos e festas, o trabalho forçado, a dominação nos engenhos ou depois nas fazendas e nas fábricas.

[...] A humilhação social é sofrimento ancestral e repetido. [...] Índios expostos à espoliação agrária. Negros expostos ao racismo. Roceiros sem-terra, expostos a trabalhar para só comer. Cidadãos pobres expostos ao emprego proletário, ao desemprego e à indigência. Velhos expostos a ficarem para trás no trabalho acelerado. Mulheres detidas por seus pais, irmãos e maridos, por seus professores e chefes. Amantes expostos à vigilância e à proibição, quando o amor aconteceu fora da ordem erótica oficial. Loucos desmoralizados pelas ciências, cassados pelos tribunais, invalidados pelos manicômios. Tantos expostos à desonra e ao desrespeito cultural. (FERNANDO DA COSTA, 2010, p. 18-25).

“Minha luta não é por frontispícios” (BARROS, 2013, p. 286).

E sim revelação pela dança, devaneios, sensibilizações, liberdade do soma, risos. Movimentos lentos, não movimento contrapondo-se a sonoridades fluidas, sonoridades de estalidos labiais, som de respiração, pontuação de quadril e torções desfiguradas.