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CAPÍTULO 1 – FINCANDO O MASTRO

1.2. APAE Prata

Todos eram iguais perante a lua

Menos só Sabastião, mas era diz-que louco daí para fora (BARROS, 2013, p. 25).

Figura 8 – A máscara na visibilidade.

Cacuriá na APAE/Prata e nas Danças Brasileiras/UFU.

Meu trabalho de Arte Educação na APAE Prata iniciava em agosto de 2008. Aquele parecia, a princípio, ser um lugar difícil de descobrir o contexto e extrair dele os caminhos

a percorrer. Porém sabiamente percebi que, na ação de ensinar, “nossa linguagem não tinha

função explicativa, mas só brincativa” (BARROS, 2013, p. 437).

Em novembro do mesmo ano acompanhei alunos apaeanos a Belo Horizonte num

evento artístico que congregava APAE‟s mineiras (dentre elas Uberlândia e Prata). A pauta

No palco, a mostra artística trazia a dança, a música e o teatro, revelando o trabalho de artistas profissionais na dança. Ana Botafogo com meninas deficientes na dança clássica

e Fábio Vladimir Silva11 (professor de dança de salão, carnavalesco e congadeiro)

coreografando o paraplégico uberlandense Eduardo Alves da Silva (Dudu).

No saguão do Palácio das Artes, a mostra de fotografia recordava a violência dos hospitais psiquiátricos na história da deficiência mental no Brasil. As imagens recortavam “esse abandono de um ser” (BARROS, 2013, p. 443). Meu olhar condoeu-se com essa visão que trazia um sotaque, meio que inconsciente, meio que desencostado de minhas origens, mas que ao mesmo tempo cuspia para dentro de mim o amargo.

Cenário de luar. Segundo Ato.

Papagaio louro de bico dourado estava com fome. (BARROS, 2013, p. 26).

Ela queria dançar na APAE os baiados do Baiadô.

Desejei balançar as escápulas, fincar as raízes, escutar o toque do tambor, olhar a educação institucionalizada com a sabedoria da educação difusa e somar a elas a educação

familiar de tradição popular brasileira12, para criar uma dança de jogo singular, integrado à

representação, permitindo que a cena fique brincante para o dançador e para o público. Esse desejo intuitivo, de anseios pela experiência já vivenciada, interessava-se pelo jogo de aprendizagens que fazia parte do processo de criação do Grupo Baiadô: a ciranda na voz de Lia do Itamaracá e Baracho (H. OLIVEIRA, 2007) e o cacuriá (jabuti, jacaré e

caranguejinho) cantado pela voz do Tião Carvalho, que “aprendeu vários desses temas com

a mestra do Cacuriá” dona Teté, de São Luiz no Maranhão (MAWACA, 2000, faixa 16).

11 Foi no movimento de buscar diálogos com pessoas que trabalhavam com portadores de necessidades especiais que, posteriormente, iniciei contatos com Fábio Vladimir na cidade de Uberlândia, na Oficina Cultural, desenvolvendo o Projeto Dançando com a Vida. Pessoa de percepção ampla e sensivelmente inteligente. Sua experiência na educação de pessoas portadoras de necessidades especiais acontece pela prática e começou com experimentações na dança de salão, para a qual criou códigos de comunicação, num “linguajar” muito próprio para ensinar a seus alunos surdos-mudos os movimentos da dança.

12 Para Pierre Bordieu (MEIRA, 2007, p. 110), no que diz respeito aos aspectos populares da educação: “educação difusa, educação familiar e educação institucional são ações pedagógicas que se desenvolvem em âmbitos diferentes e com estrutura diferenciada. Educação difusa é „exercida por todos os membros educados de uma formação social ou de um grupo‟. A educação familiar [...] é toda a ação pedagógica exercida „pelos membros do grupo familiar aos quais a cultura de um grupo ou de uma classe confere essa tarefa‟. A educação institucionalizada [...] é toda a ação pedagógica exercida „pelo sistema de agentes explicitamente convocados para esse fim por uma instituição com função direta ou indiretamente, exclusiva ou parcialmente educativa”.

Busquei dialogar com a problemática da exclusão social e cultural que gera invisibilidades para criar junto, pela arte, espaços “onde em uma direção, a criança esteja integrada em sua cultura e, na outra, a cultura seja pensada desde o ponto de vista de seus

efeitos de produção e reprodução das condições de criatividade da e sobre a criança”

(BRANDÃO, 1985, p. 129).

Figura 9 – Exposição de fotos da carnavalesca e congadeira Elite Preta. Projeto cultural de Márcia Oliveira na APAE Prata, 2011.

Gestei, no meu íntimo, devaneios de abrir trancas e inundar de luz os sonhos noturnos para entender os motivos de tantos corpos crescerem encarcerados nas

invisibilidades públicas. Eu intuia, pelo contato com a pele daquelas meninas apaeanas, que aquele pequeno corpo estava enrijecendo-se pela vitimização, medo, insegurança que

criava bloqueios na fala, no movimento, facilitando a “incapacidade” de apredizagem.

Atingindo também aquela adolescente de sexualidade aflorada, que era apenas mais uma

menina vivenciando no familiar o “mundo da prostituição”. Eu percebia naquele

adolescente negro, que nasceu com “transtornos congênitos”, grande predisposição para expressar-se pela música.

E acordei, para uma experiência de um baiado, no intuito de ver os corpos embrutecidos das mulheres, cuja feminilidade estava apagada, cirandar e falar de seus ciclos menstruais, expressar em breves sorrisos seus desejos, descobrir-se uma mulher de chita. Gestei no mais recôndito espaço de minha alma, uma imagem, um desejo de quebrar cabaça e plantar sementes.

Regurgitei nessa gestação meus estados de alma, as histórias inscritas em meu corpo. Estados alterados pelos sonhos fantasmagóricos das repressões, aprisionamentos que se congelaram em dores, tensões e nódulos. Existem tensões e nódulos superficiais que se desfazem apenas com movimentos vigorosos, mas existem os nódulos profundos que precisam ser observados antes de se iniciar qualquer movimento.

Meu corpo latejava a dor dos nódulos abusivos e nele se aninhavam inconformidades, pontos de tensão internos, profundamente implantados pela política sanitarista e de educação corretiva que trazia cabisbaixos a população nativa, as massas marginalizadas. Libertei um corpo marcado pelas inculpações, magoado em suas sensibilidades. Corporeomental sujeito a torturas, prisões, espancamentos.

Vomitei uma origem indeterminada e fragilizada, uma infância de violências intrafamiliares, uma feminilidade penhorada numa educação vitoriana. Recuperei-me das ansiedades de um amor materno doentio sadomasoquista, abusivo, esquizofrênico. Distanciei-me da autoridade paterna, perfeccionista, sádica e indiferente. Liberei uma inteligência artista invizibilizada, uma rebeldia silenciada.

E comecei a entender que não era loucura “ouvir as vozes do chão [...] a fala das águas [...] o silêncio das pedras [...] o crescimento das árvores [...] o perfume das cores [...] o formato dos cantos” (BARROS, 2013, p. 383).

Figura 10 – A máscara dos abismos femininos.

Um dia alguém me sugeriu que adotasse um alter ego respeitável - tipo um príncipe, um almirante, um senador.

Eu perguntei:

Mas quem ficará com os meus abismos se os pobres-diabos não ficarem?