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CAPÍTULO 1 – FINCANDO O MASTRO

1.6. E no início não havia o verbo, tudo era yby, fogo e caxixi

Um coração cotim palpitando feito tambor descompassado, malafincamentos e delírios.

A mulher era tal e qual terra ressecada. O homem tal qual deserto no sertão. “–Eta jeito de gente sem cultura, desconectado do mundo, uai!”

Povo de corpo disforme, de estranhamentos. “–Uns loucos, uns pobres de uns loucos!”

Loucura que ora traz consigo um sertanejar diferente, ora expõe as proibições e privações do povo. Outras vezes lembra uma igualdade que não se justifica, pois sua beleza está na sua estranheza: no pisar, no olhar, em seu modo de falar e discernir o mundo.

Para que eu dialogasse os devaneios de um povo corisco, cabeças de vento, de voz endurecida pela estupidez e marginalizada pela invisibilidade no pelourinho da insanidade, foram necessários hibridismos (BURKE, 2003).

A diversidade cultural facilitou apreciar Paulo Freire (1987, p. 66) quando faz uso tanto da “antropologia, como da psicologia social, interessadas na questão do cambio

cultural, na mudança de atitudes, nos valores”, numa resistência à homogeneização.

Considero hibridismo nesta proposta de pesquisa o diálogo com a poesia do

angolano Ondjaki15, que veio de uma formação acadêmica em Portugal, onde se dedicou à

sociologia e ao cinema. No Brasil ele se inspira em Manoel de Barros para compor.

Foi um exercício de leitura e diálogo, no meu espaço pessoal, num trabalho corporal que me alertou para uma escrita sensível, de comungar com a poética de Ondjaki (2010) meus pés em pisares miudinhos e carícias gramíneas, ou com fincares profundos. Explorei nos movimentos circulares do quadril a feminilidade presente em uma moradora de rua, mulher de contusão mental, marginalizada. Desvelei meus pontos de imobilidade diante das minhas próprias vitimizações, fazendo do conto Madrugada (p. 107) o provocativo intelectual que facilitou minhas revelações e as sensibilizações do meu corporeomental.

Posteriormente utilizando outros textos de Ondjaki nas aulas com os apaeanos descobri que a textualidade deste escritor conduz ao mergulho na liberdade, no intuitivo, na expressão do orgânico em cores e num jogo que faz com que sejamos respingados de vários tons de ensolaradus. A palavra ensolaradus foi um nome criado pelo apaeano em roda de conversa.

E, portanto, no princípio da pesquisa não havia o verbo. Tudo era yby, fogo e caxixi. Não havia relógio, não havia pressa, bastando sair mais cedo de casa. E sem pressa, num tempo mineiro de chegar, comecei a escutar minha brasilidade. O corpo desenhando no espaço o “rumor das palavras”, num pertencimento que me fez “culpado de mim” (BARROS, 2010, p. 309).

15 Conheci Ondjaki pelas redes sociais e livros: Bom dia camaradas (2006), Os de minha rua (2007), E se

amanhã o medo (2010a), Ynari, a menina das cinco tranças (2010 b), Há prendisagens com o xão (2011), O

Figura 14 – Máscara em Olhos de Flor.

Admito cultivar respeito pela realidade quando ela me leva a pensar sobre a diversidade. No cultivo à diversidade eu prefiro vivenciar a realidade quando a poesia é feita pelo homem e pela mulher cujo cotidiano é aquele pintado pelos dramas da vida.

Acredito que o acontecimento real ou artístico é exercício de expressão do cidadão comum, que age na cultura da sua comunidade, e com isso ninguém foge de ser quem é. Como por exemplo, o Antonio Baracho da Silva, que foi

operário de construção, trabalhou também na cana-de-açúcar e durante sua vida exerceu vários ofícios foi acostumado ao trabalho pesado. Baracho deixava toda a sua poesia jorrar, com voz forte e segura. [...] Compositor de dezenas de clássicos do repertório da ciranda, ele nunca se preocupou com o lado legal da composição e suas cirandas foram gravadas, ou adaptadas, por vários artistas: Martinho da Vila, Edu Lobo, Quinteto Violado, Maria Betânia, muitos achando que eram de domínio público, pois grande parte das composições de Baracho não foi registrada em seu nome, ele sabia escrever, mas não colocava as músicas no papel, decorava e cantava nas rodas de ciranda. (H. OLIVEIRA, 2007, p. 23).

A realidade eu sempre vejo como rebordada com gente de trejeitos das matas: “nordestinos triangulares, maranhenses lusos, baianos cafusos, paulistas mamelucos, mineiros bisonhos, gaúchos castelhanos, todos brasileiros da plebe” (BASTOS apud BASTOS, 1979, p. 170).

E tenho um olho que simpatiza com a arte modernista, de movimentos antropofágicos ou folcloristas, heranças de Ilo Kruli. Arte de distorção pictórica proposital e brutal como forma de dar volume estranho e perturbador ao drama social, ao marginal incubado. E o outro olho está na “figura monstruosa, pés imensos, sentada numa planície verde, o braço dobrado, repousando num joelho, a mão sustentando o peso-pena da cabeça

minúscula” (AMARAL apud BASTOS, 1979, p. 165)16. Confesso que me assumo

picassiana de revolução corporal permanente com aterrissagens em zonas de paradoxos e quebras de fronteiras e paradigmas. E por isso concordo com o Manoel de Barros (2010, p. 7): “é nos loucos que grassam luarais”.

Estou empática com a contemporaneidade artística da dança e a sensibilização corporal em danças brasileiras de Renata Bittencourt Meira (2007). Essa empatia traçou caminhos de afetividades, conduzindo-me à liberdade de estar também em uma pesquisa artística e educacional. E foi trilhando meus labirintos de dramas artísticos individuais, indo ao encontro das minhas potencialidades de pesquisadora, que defini para mim atitudes de equilíbrio corporeomental numa instituição para pessoas portadoras de necessidades especiais. E maturecendo descanso no ancoradouro de Manoel de Barros, que desenhando fisicalidades nas palavras, delimita em dialética poética o sujeito desta pesquisa educacional.

16 Texto referência à obra Abaporu de Tarsila do Amaral.

As poéticas nas palavras de Barros ocasionam placidez ao meu jeito de descrever a profundidade dessa gente raiz que pisa um chão que ensina sobre o silêncio e as contradições. Essa gente raiz é o sujeito apaeano do interior mineiro, no Triângulo Mineiro, na cidade do Prata, e estuda na APAE. Pessoa com o trejeito do malafincado (BARROS, 2010, p. 292), do indivíduo com propensão a escória, das gentes na sarjeta, das gentes violentadas.

E, em respeito pelas oralidades, sigo parafraseando Manoel de Barros, que cria “desenhos verbais das imagens” (2010, p. 7), para expressar que “poesia é a infância da língua”. É a essa poética de oralidades que recorro para falar do povo brasileiro sertanejo. Busco traçados poéticos de oralidades para identificar as minhas problemáticas de pesquisadora, muitas das quais só puderam ser enxergadas na ação.

palavra que eu uso me inclui nela

Manoel de Barros

No começo da pesquisa, as palavras que eu usava me incluíam nelas, porque diziam respeito às minhas dificuldades de educadora no espaço institucional apaeano. Confesso que tenho vergonha de abrir este meu livro de ignorãças (BARROS, 2010, p. 273): monotonia que imprime cor às aulas, grupo indisciplinado, perceber que o aluno especial é humano, danças de manifestações folclóricas.

As palavras “visibilidade” e “invisibilidade” foram o estofo para a minha

objetividade de pesquisadora em maturação. Para objetivar-me em ação foi necessário visibilizar o meu processo artístico individual e as minhas questões de educadora em arte.

Começar do chão foi romper com a minha invisibilidade de artista e educadora? Ser invisível foi criar empatia com o “jurarazinho lá no poço de beber” (BAIÃO DE PRINCESAS, 2002, faixa 16), que numa brincadeira de esconde-esconde revela o

poder da invisibilidade: “eu vejo gente, gente não me vê”. Esse poder de invisibilidade

sensibilizou-me para os meus estreitamentos individuais no espaço artístico, mas também foi abertura de orifícios (boca, olhos, narinas e ouvidos) em respeito ao que em mim era estranhamento também no espaço educacional. E procurei nos movimentos corporais formas para dizer subjetividades, essas palavras que minha boca não expressa. Também aceitei ver apenas as cores que meus olhos enxergam e entender que certas nuances não serão vistas. E comecei a respeitar os odores dos outros, porém sem ferir minhas narinas.

E porque escutar meus silêncios e a voz das pessoas foi tarefa complicada nesta aprendizagem?

Identificar ações corporais e mentais no espaço da invisibilidade foi começar no chão um estudo pessoal baseado em preceitos da educação somática, por meio do estímulo da propriocepção, em atividades de sensibilização corporal com bolinhas e bastões,

movimentos corporais de circularidade, torções, “quebra de joelhos” (MEIRA, 2007, p.

279), trava-línguas com alongamentos e torções, conhecimentos anatômicos, pisares, percepção de máscaras faciais e os estímulos poéticos de versos cantados com poderes de curas, escutas e falas em rodas de conversa.

Quando “os processos internos deixaram de ser invisíveis e intangíveis” (MEIRA, 2010, p. 4), transpareceu a ação dialógica desenhada com imagens verbais e fisicalizadas no artístico. Nasceu com isso o pertencimento que se ramificou nas palavras sertanejo, roceira, macumbeira, gambá, catimbozeira, chegança, andança, candomblé, tambor, jurarazinho, biriba, boboca, açobanhã, pontos cantados, rituais populares e também muito balagadumdumdumdum com pontos cantados de criação individual.

Minha visibilidade artística soou acordes educativos para com a poética marginal no espaço institucional apaeano. Dessa visibilidade e desse pertencimento empático e ressonante surgiram demandas criativas: como tirar o corpo invisibilizado malafincado do quarto do fundo da casa e colocá-lo no centro do palco? Sei mover o conhecimento das oralidades do poeta marginal para o palco num trabalho criativo?

Ensinando, comecei pelas raízes, desorganizando as estruturas corporais densas e colapsadas. Num processo de experimentação no qual visibilizar os pés é explorá-los com bolas de diferentes tamanhos. Num ambiente de ensino-aprendizagem que projeta pelas raízes um caminho para a autonomia, transformação e crítica. Já que as coisas não precisam ser vistas de maneira “razoável” e por pessoas “razoáveis”, elas podem desejar “ser olhadas de azul” (BARROS, 2010, p. 302). E por isso mesmo não diferencio teatro de dança. Para falar de Teatro inicio pela Dança que nasce das raízes e que o tambor ocasiona ao corpo.

Dar forma às próprias raízes é objetivar-se?

A prática trouxe o enraizamento como solução de levar um indivíduo ou um grupo a encontrar seu centro. Para abrir as escápulas e alçar voo para fora da asa, ganhando por princípio uma postura de reorganização: ajeitando “os ombros para entardecer” (p. 311) e deixando o corpo fazer “três curvas no ar” (p. 316).

Abrir voo para fora da asa é encontrar seu ninho social, ecológico e político, artístico e poético, educacional e intelectual, filosófico e ético, psicológico e neuroexistencial. E nesta pesquisa isso acontece quando o corporeomental já se deixou ficar entregue ao chão.

E por isso mesmo é capaz de fazer poesia com o pé que tem peito, sola, arco, calcanhar, e definir seus pisares trabalhando seu desvelamento em bases sólidas e numa

relação de troca. É fincar seu mastro para dizer “este sou eu porque sei soprar berrante,

tocar tambor e pandeiro”. Porque sou capoeirista e também gosto de folia de reis

(principalmente da folia do Oripe). Sou do congado e conheço o toque de tambor do terreiro (segredo de escuta: revelado apenas quando a mão esquenta o tambor).

Voo para fora da asa é objetivar-me enquanto pesquisadora de um provocativo dialógico. Estudo a concepção metodológica que se construiu num diálogo entre pesquisadores das danças tradicionais brasileiras (MEIRA, 2007). Porém sabendo que ao conscientizar-me no trabalho destes pesquisadores permito-me o risco de desvelar minhas próprias concepções metodológicas, iniciando um movimento em direção ao meu provocativo.

Modificar os gorjeios é objetivo no meu fazer docente. A gente se modifica quando revelamos nossas potencialidades artísticas. O corporeomental ganha espaço após a iniciativa em desvelar seus enraizamentos, sua arte, sua dança, sua música. Essas celebrações de um povo cuja pele, ossos, pelos, poros, unhas, cores e vibrações estão fincadas em terra sertaneja.