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APÊNDICE D: SOBRE ZÉ VENÂNCIO.

No documento Sobre botijas (páginas 171-174)

Libertar-se completamente do julgo dos outros. Os mitos costumam informar deveras sobre isso. Libertar-se das imposições, dos medos, do infortúnio da doença e da miséria. Libertar-se das possibilidades de desastre. Se as botijas trazem a segurança financeira, as orações trazem a liberdade – querer os dois, é querer o absoluto.

Na infância, ouvia sempre falar de Zé Venâncio. Esse sujeito, de cabelos e olhos claros, havia posto o exército de Caruaru no chão – assim contava-me os mais velhos. Ainda hoje, se estiver em Panelas, podem perguntar: Quem foi Zé Venâncio? Todos dirão: um sujeito encantado. Nunca entendi como um único homem poderia render uma guarnição inteira de soldados. Havia visto cenas no cinema americano, porém, o quão próximo de minha vivência estava Zé Venâncio! Ora, seria maravilhoso poder, da mesma forma que ele, libertar-se dos golpes recebidos no cotidiano.

Bebendo refrigerante quente na rodoviária de Panelas, ouviu um cochicho: “o dono dessa lanchonete é irmão de Zé Venâncio”. Após ensaiar as perguntas, decidi perguntar: “O sr é mesmo o irmão de Zé Venâncio?”. A risada foi imediata, percebi no seu rosto que uma quantidade enorme de pessoas já haviam perguntado o mesmo. Afinal, perguntei, Zé Venâncio era um sujeito encantado?

- Não! Meu irmão era louco, era doido! – gritava tapeando o balcão da lanchonete – todos os meses se dirigia até Recife para tomar seus medicamentos. O problema, é que no dia que o prenderam, ele não estava medicado.

- Mesmo sendo louco – indagava-lhe -, conseguiu render uma guarnição do exército de Caruaru. Como pode ter feito isso, sem o encantamento necessário?

- Não eram muitos homens, eram poucos. Essa história de que minha mãe havia ensinado orações... - Sua mãe ensinou orações a Zé Venâncio? – ele se embaraçou.

- Sim...Algumas, mas não funcionavam. - O senhor tem uma foto dele?

- Tenho uma xerox. Eu deixo essa cópia aqui, porque muitos vêm aqui perguntando: quem foi Zé Venâncio? Então, eu mostro a cópia da carteira de identidade – observei o papel amarelado, estava colado em cima das bebidas. Afinal, seu irmão tinha orgulho dessa história. Ainda que ele não fosse encantado, a história era. Na carteira de identidade, o nome: José Cícero da Silva, mais conhecido como, Zé Venâncio – uma alusão a um tipo brabo de besouro.

Venâncio não tolerava a forma arrogante dos homens da elite. Essa era a opinião geral a seu respeito. Era um sujeito correto, havia trabalhado em São Paulo com mecânica, ademais, havia servido o exército – e de acordo com alguns comentários, expulso por acessos de loucura. Sabia consertar carros de maneira extremamente habilidosa e, além disso, entendia da mecânica das armas de fogo. Contam os mais velhos, que ele conseguia fabricar armas com pouquíssimo material.

Certo dia, ele havia bebido demais, estava a quebrar as coisas dentro de casa. Um policial o segurou pelo braço e o puxou para a delegacia. Zé Evangélico dizia que lembra dele gritando: “Só não bata neu”. Venâncio não tolerava injustiças. Contam que era um homem cheio de ódio do descaso da política local pela situação da população.

Fico pensando o que uma população de corpos fechados não faria perante o Direito Processual; perante, a Burocracia Latino-Americana. Imaginem as honras feridas por um exército de encantados. A autoridade minada pela oração, pela invisibilidade, pela raiva, pelo desprezo.

O que despertou a fúria de Zé Venâncio, foi o fato do policial tê-lo empurrado para a cela de forma agressiva. Chutou-o com total desprezo, como se fosse um vagabundo, mas não, Venâncio era um “homem trabalhador”. Naquela noite, Venâncio escalou a cela, pulou para os aposentos vizinhos da delegacia, e conseguiu render todos os guardas presentes. Desferiu um tiro num guarda que dormia coberto, pensou tratar-se de seu nariz, mas era o dedão do pé. Queria pintar de vermelho o nariz de um policial. Queria fazer de palhaço a polícia injusta.

Saindo da delegacia, apagou todas as luzes da cidade com as armas obtidas na delegacia. Os homens correram, chamaram reforços de Caruaru. Uma semana de perseguição. Contam que os tiros de Zé Venâncio eram disparados de distâncias absurdas do alto das grandes serras de Panelas. Quando o viam, ele desaparecia: se transformava em bicho, em árvore, ficava invisível.

- Como ele foi morto? – perguntei na rodoviária.

- Cruzou um rio, e passou por baixo de uma cerca de arame farpado. - Qual o problema em cruzar um rio?

- A oração perde o efeito.

- Por que arame farpado? – Imaginei uma coroa de espinhos.

- Não sei. Mas é a única forma de a oração não funcionar – agora, o irmão de Venâncio já se posicionava de maneira diferente. Falava com tom de dúvida.

Conheci mais tarde, um sujeito de Recife que havia crescido em Panelas de Miranda. Determinado dia perguntei-lhe sobre Zé Venâncio. Não pestanejou, disse-me logo: “É claro que eu lembro dessa história de Zé Venâncio, aquilo só pode ser mentira!”.

Quando novo, lembro de ouvir os grandes feitos de Zé Venâncio. Lá em Panelas, quase todos o conhecem, os mais velhos se lembram, os mais novos acreditam na história como uma grande mentira. Entre o maravilhoso dos mais velhos, e o estranho dos mais novos, perpassa o mito de Zé Venâncio e de outros sujeitos “sabidos”. Homens de corpos-fechado. Disse-me Zé Evangélico: “hoje não encontramos mais homens sabidos”.

ANEXOS: (Fotografias de alguns interlocutores – Imagens expostas com consentimento dos mesmos).

João Fotógrafo. Thiago Sales e Guido Galvão. Zé Evangélico.

Zé Pestana. Dona Estela e Eduardo. Pierre.

Automóvel de Zé Evangélico Antiga Sede da Prefeitura de Panelas. Panelas de Miranda

Laranjal do Jarí Laranjal do Jarí Laranjal do Jarí Laranjal do Jarí

Jarí Celulose. Laranjal do Jarí.

Estrada que liga Macapá ao Laranjal do Jarí.

No documento Sobre botijas (páginas 171-174)