• Nenhum resultado encontrado

Da tragédia tônica:

No documento Sobre botijas (páginas 57-64)

II. POR UMA EXISTÊNCIA FASCINADA: MITO E METAFÍSICA NA ANTROPOLOGIA CULTURAL

2. Por uma tensa fenomenologia: o mito como condição existencial.

2.2. Da tragédia tônica:

O Mundo é este conjunto inexprimível e inumerável de teofanias – Hesíodo confessa que não pode dizê-lo todo, cada homem conhece os Deuses que o acompanham e aos quais acompanha.

(Jaa Torrano)

E se alguém morre por uma idéia, é porque é sua idéia, e sua idéia é sua vida.

(Émile Cioran) É uma paixão. Uma pessoa começa a desejar uma coisa e logo esse desejo se apossa do cérebro.

Como foi dito anteriormente, nas narrativas míticas tudo é possível – daí o não- limite entre o diálogo natureza-cultura e a presença de outras lógicas que não a lógica racional. Assim, os mitos deixam a ver que nossa existência é repleta de possibilidades. Para Hesse e Kierkegaard, deparar-se com essa explosão de possibilidades gera angústia no ser humano. Porém, num universo em que o mito é vivenciado, encontramos elementos que possibilitam encantamentos e superações dessa angústia.

Isto porque os pensadores ocidentais tentaram dialogar com a incerteza unicamente a partir de uma lógica racional que não dá conta dos inúmeros paradoxos, incertezas, e desordens encontradas no cotidiano (PRIGOGINE, 2002:8). Kierkegaard, ao se deparar com um devir mascarado pelo Nada, relata o surgimento da angústia humana. Porém, esquece de que essa angústia também é fomentada pela pretensão da lógica racional e ocidental de querer tudo explicar, até mesmo o ímpeto de explicar o devir: “é possível contrapor ‘ser’ e ‘devir’ como contrapomos ‘verdade’ e ‘ilusão’? Essa era, como é notório, a posição de Platão e é também a da física clássica, cuja ambição era descobrir o que parece imutável para além da mudança aparente” (idem, 2002: 14).

A angústia de Kierkegaard é humana ou ocidental? Será que, se o Ocidente não estivesse tão imerso na certeza do triunfo racional, teria Kierkegaard, assim como Heidegger, se angustiado com as incertezas do devir?

Como pensava Durand, o ímpeto de Prometeu, de tudo querer tudo dominar, mecanizar, e regular, suscitou o crescimento da angústia ocidental quando as incertezas não pararam de se mostrar. O existencialismo, foi na filosofia, uma forma de demonstrar a impossibilidade de dialogar com o mundo31. Porém, a crítica que faço ao existencialismo, não é necessariamente que o mundo seja, como afirma Camus, algo Absurdo, no entanto, que as pretensões cognitivas, criadas pela ciência racional eram

31

Pascal Bruckner acredita que a angústia proveniente do tédio da vida burguesa foi perpassada das elites para as massas desde os séculos XVIII. Para este autor, houve uma: “lenta democratização do mal-estar” (2002:85).

absurdas. Após as duas grandes guerras, os filósofos perceberam que os avanços da técnica não resolveram os problemas do planeta, tampouco, fizeram diminuir as diferenças sociais entre os homens. Porém, a vontade humana de sempre prever o fenômeno, fez esquecer da necessidade de dialogar com os fenômenos da irreversibilidade (idem: 2004). Assim, Kierkegaard, Sartre, e Heidegger, deparam-se com a angústia de viver na incerteza e, para isto, exaltam unicamente nossa única certeza: a finitude humana, a morte. Como dito anteriormente, nas peças de Ariano Suassuna, percebemos constantemente a tensão entre tragédia e comédia – tesão essa, esquecida pelos existencialistas.

A crise da razão, após a frustração do planeta com as duas grandes guerras, fez com que os estudos etnológicos aparecessem de forma mais constante no meio acadêmico e nos meios de comunicação. É notável a visibilidade que Lévi-Strauss foi ganhando em detrimento de Sartre. Isto porque, tal como aponta o historiador Jean- Pierre Vernant: “No decurso dos últimos cinqüenta anos, a confiança do Ocidente nesse monopólio da razão foi todavia abalada. A crise da física e da ciência contemporâneas minou os fundamentos – que se julgavam definitivos – da lógica clássica” (1990:442)32. Para Prigogine, a física clássica estava imersa na perspectiva de descrever uma natureza determinista e reversível. Assim, os fenômenos vislumbrados eram aqueles que, de forma aparente, pareciam se repetir. Porém, ao pensarmos o caos, estaríamos obrigados a generalizar a noção de natureza e introduzir dois conceitos para compreensão desse novo universo de incertezas: probabilidade e irreversibilidade (2002:11).

O que os mitos nos dizem sobre a incerteza cotidiana? De fato, nos deparamos constantemente com diversos ramos – bifurcações que levam a eventos distintos e não

32

“O que estava escrito em caracteres matemáticos não era a natureza , mas...a estrutura matemática da natureza” (SÁBATO, 1991:43).

previsíveis (idem); porém, como os heróis das narrativas dialogam com essas bifurcações que, uma vez seguidas, são irreversíveis? Como os heróis, imersos no mundo do mito, repassados para nós no discurso do fantástico, realizam o devido enfrentamento com um mundo incerto e não-previsível?

Para Nietzsche, esse racionalismo já havia minado, desde Sócrates, as concepções mítico-originárias dos povos gregos. Assim, ele se volta para a historicidade do conceito de tragédia, na Grécia Antiga, para compreender a dinâmica da mesma. Pois, como indica Hesse, a tragédia é, na contemporaneidade, compreendida unicamente como “desgraça”. Nietzsche acreditava que a tragédia era identificada na Grécia Antiga como sinônimo de sobreabundância de existência. E, ao contrário de Kierkegaard, que vê a angústia como a não-superação de um mundo de possibilidades, Nietzsche vê uma vontade de superação justamente pela abundância existencial.

O espírito grego da tragédia seria traduzido para Nietzsche a partir da dialogia entre Apolo e Dionísio. O primeiro é o princípio de individuação, é o princípio de luz que faz surgir o mundo, a partir do caos originário; é o princípio ordenador que, tendo domado as forças cegas da natureza, submete-as a uma regra. Apolo impõe ao devir uma lei, uma medida. O segundo é o deus do caos, da desordem, da fúria sexual e do fluxo de vida - é o deus da fecundidade da terra e da noite criadora do som, é o deus da música, da arte não palpável.

Porém, no Ocidente houve um esquecimento da pulsão dionisíaca, em detrimento da suposta serenidade de Apolo. O mesmo que houve, de acordo com Prigogine, na física clássica. O caos, a desordem, a irreversibilidade, foram esquecidas nos tempos modernos. O ímpeto de ver as certezas obliterou a presença dos acasos. Essa concepção erigiu a construção de um mundo observado como: absurdo.

Há uma expressão contundente utilizada por Camus para explicar o que ele chamava de Revolta Metafísica: o silêncio irracional do mundo. Camus parece gostar de Melville porque seus personagens são surpreendidos por uma absurda falta de respostas em relação às injustiças que sofrem. Billy Budd talvez seja o maior exemplo. Mas toda a narrativa de Moby Dick é igualmente pautada nesse elemento que irrompe em nosso cotidiano...Um silêncio desagradável que nos deixa sem respostas. A este silêncio irracional, a tragédia tônica vem como resposta.

Assim, observamos nos mitos a tensão entre Apolo e Dionísio, entre Irreversibilidade e Probabilidade. Se, nos encontramos imersos num mundo onde tudo é possível, tudo é provável, o enfrentamento se dá a partir do ímpeto da irreversibilidade. Como bem indicou Hesse, num mundo incerto, a obstinação diante de um caminho é a melhor forma de dialogar com o caos – que foi visto com maus olhos por um imaginário edificado sob o espírito do racionalismo.

Assim, estava o homem se vendo como condenado a ser livre, não encontrando rédeas e isto o angustiou (BRUCKNER, 1997). Propunham-se limites e não conseguiam pô-los em prática33. Isso porque havia o que Kierkegaard chamou de uma antipatia simpatizante e simpatia antipatizante em relação a essa angústia do homem, por se encontrar no mundo como pura possibilidade: “a angústia é a realidade da liberdade como puro possível” (KIERKEGAARD, 1960: 45). Mas, no momento em que nos deparamos num mundo sem respostas, sem freios para as fatalidades, a ironia do universo se desvela: lançado ao acaso e inacabado até minha finitude, deparo-me com uma fatalidade para a qual não há possibilidade de esquiva – é a irreversibilidade do tempo descrita por Prigogine.

33

Isto fica claro numa fala de Dostoievski: “E por que nos agitamos? Que buscamos? Que queremos? Nem nós temos idéia, e se nossos ambiciosos pedidos fossem atendidos, seria pior para nós. Tentai, por exemplo, dar a qualquer de nós um pouco mais de independência, desamarramos as mãos, ampliar nosso raio de ação, acabar com a tutela...Pois bem, asseguro-vos que imediatamente pediríamos para ficar

Philip Pirrip, o Pip – personagem de Grandes Esperanças de Dickens –, não se permite desencantar-se de Estella. E Pirrip, sabe que nada fez com a Senhora Nora Diggers Dinsmoor; mas, e então, por que Pip se limitar àquele único amor? Da mesma forma penso em Tomaz e Teresa da Insustentável Leveza do Ser, de Kundera. Por que ir até o fim daquela forma? Se Tomaz encontra mulheres todos os dias, por que pensar ir em frente com Teresa? É óbvio que existem nuances que não permitiriam realizar uma analogia de forma tão prática como estou fazendo – mas minha intenção aqui é alimentar metáforas como processo cognitivo porque apaixonadas (Rosseau). O que ocorre, é que Pip e Tomaz se delimitam. Pip contrapõe à angústia do possível se delimitando. Ao mesmo tempo, há um preço a pagar por esta delimitação.

O mesmo acontece com Nikolai Vasilievitch, personagem de O Duelo de Anton Tchekhov – ele, de fato, não entende por que Von Koren pretende levar a cabo uma ofensa sem sentido. Vasilevitch ainda tenta pedir-lhe desculpas, pela ofensa sem sentido, para que a idéia de um duelo esteja terminada, mas não consegue. Como Von Koren arrisca a vida por uma idéia? E ainda mais, uma idéia idiota. A tragédia tônica nasce nessa relação de se delimitar o possível num universo absurdamente possível – que é, enfim, o universo do mythos. A relação indicada por Prigogine entre probabilidade e irreversibilidade.

Assim, os mitos conseguem, enfim, acabar com esse silêncio irracional, a partir do momento em que temos uma grande ferramenta de diálogo: assim foi porque assim é minha jornada: “o final feliz do conto de fadas, do mito e da divina comédia do espírito deve ser lido, não como uma contradição, mas como transcendência da tragédia universal do homem” (CAMPBELL, 200:34).

No fim de sua carreira, Herman Melville parece ter assumido gradativamente um cinismo quase grosseiro. E aí ele parece ver o homem como um mamífero de luxo,

porém, de forma menos apaixonada. Termina por observar a vida como um baile de máscaras: “é preciso escolher uma fantasia, assumir um personagem, mostrando-se disposto, de maneira razoável, a fazer papel de tolo” (MELVILLE, 1992:145). De certa forma, Pip, Hércules, Prometeu, Sísifo, Heitor, Ulisses, Enéas, resolvem assumir de forma apaixonada, a sobreabundância das inúmeras possibilidades e, por conseguinte, do desconhecido. Assume-se um personagem, assume-se uma tragédia. Daí, Pirandello ver o personagem como “criatura fechada em sua realidade ideal, fora das transitórias contingências do tipo” (2001:112).

O problema é o seguinte: é impossível não se delimitar. É impossível não fazer da vida um baile de máscaras e fazer papel de tolo. Mesmo os romances que tentam falar da indiferença, acabam por transformar a indiferença do personagem em sua delimitação, em sua tragédia tônica – e se desvela, mais uma vez, um universo apaixonado pela oposição entre probabilidade e irreversibilidade.

Evelyn Waugh (1997) tentou construir um romance na indiferença do personagem – estou aqui me referindo a Declínio e Queda. Albert Camus também – aqui penso no Estrangeiro. Da mesma forma Knut Hanson falou de um homem vivendo à deriva – em Fome. Mas é inevitável que essa própria indiferença também não os transforme em heróis da indiferença e da deriva. É irônico, mas há de se ter uma obstinação na indiferença. Constrói-se uma tragédia tônica como enfrentamento necessário a um mundo em que o racionalismo quis deixar sem respostas.

Ao suscitar outras lógicas – presentes por excelência nos mitos - conseguimos vislumbrar essa força dionisíaca que faltou ao espírito apolíneo da modernidade.

No documento Sobre botijas (páginas 57-64)