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Meu encontro com Zé Evangélico e sua explicação a respeito de uma botija andando por debaixo da terra como uma minhoca.

No documento Sobre botijas (páginas 93-98)

III – SOBRE BOTIJAS.

1. De quando retornei a Panelas e a relação de tudo isto com as orações de Cassiano.

1.3 Meu encontro com Zé Evangélico e sua explicação a respeito de uma botija andando por debaixo da terra como uma minhoca.

João havia me explicado como chegar até a casa de Zé. Mas não fui no mesmo dia, fui conversar com Guido. Sentei-me bem na entrada do Bar como quase sempre fazia – diferente da forma como me sentava nas salas de aulas durante todo meu percurso escolar. Após a refeição puxei a cadeira para fora e, fumando, conversei com Guido.

“Essas coisas não têm explicação Thiago, é o mistério. Quando não se acredita em mistérios não há mais no que se acreditar” – me dizia Guido. Essas “bobagens” – como Guido acreditava que muitos pensavam – eram para Guido Galvão, mais importantes que as nossas atuais instituições. Havia uma angústia enorme nessa “idéia” obsessiva de Guido. Comentávamos as fofocas da cidade, assim como as más notícias que a velha televisão daquele velho bar anunciava. Entre o ruído das vozes na rua e o chiado daquele velho aparelho de tv, eu e Guido nos lançávamos num mundo decadente, inautêntico – diria Heidegger37.

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Martin Heidegger ressaltava a importância de sermos pastores do Ser – um eterno, cuidado de não estarmos imersos num falatório sem profundidade, onde as relações estivessem pautadas em posturas a

Esses mistérios eram irresolúveis, sim, jamais eu saberia se eram de fato “estórias de trancoso”38; porém, eu as conhecia – havia escutado muitas delas desde a infância. Nada mais amável que um inimigo previsível e uma mulher traída. Essas epifanias do fantástico questionavam meus valores racionais e minha pueril filosofia existencialista; desvelavam-me um mistério aconchegante e um território sobre o qual poderia pensar com a cabeça no travesseiro, esperando o sono chegar39. Ouvir meu pai me contar o que para muitos eram mentiras, se é que eram mesmo mentiras, ouvi-lo falar de absurdos metafísicos desmedidos e ir a um culto protestante sem imagens aos domingos, era a perfeita simetria entre mocinhos e bandidos.

Guido apontava com o queixo as mulheres que ali passavam e dizia que “o mundo estava perdido. Ao mesmo tempo afirmava que, “se pudesse, escreveria uma novela com a quantidade de histórias absurdas que havia escutado desde pequeno”. Eu pensava: “O que diabos tem nessas histórias absurdas, Guido? Porque estou aqui me arrepiando com essas bobagens se sei que ando meus dias na corda bamba, nesse mundo onde a miséria ficou muda40”. Não justificar as mazelas é o maior castigo que poderíamos receber.

Mas, olhando da frente daquele bar, tínhamos uma localização perfeita dessas entidades da miséria – refiro-me a entidades como uma alusão a Hesíodo. Na rua, a incerteza do cotidiano, as instituições em transição. Ecoando sob um velho tubo de imagem e caixas de som estouradas, ouvíamos o ruído de grandes proporções da

priori já construídas (2002 164-188). A esta situação Heidegger chamava de impessoalidade

cotidiana, ou seja, relações inautênticas e aparentes.

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Câmara Cascudo distingue entre estória e História. A primeira seriam as narrativas populares do domínio do discurso do fantástico popular. É a dúvida entre real e imaginária que permite suscitar o efeito do fantástico descrito por Todorov.

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Dizia Heidegger que, quanto mais um “modo de ser” não causar surpresa para nosso próprio “ser-no- mundo” cotidiano mais persistente e originário será sua ação e influencia (2002:178). E muito embora se tratassem de absurdos, eram-me conhecidos. Penso que grande parte da exaltação de Camus pelo absurdo vem de sua intimidade com o mesmo. Chega um momento em que o infortúnio parece se edificar a partir de sua cumplicidade em nossa existência.

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Diz Hesíodo que o maior castigo dado pelos deuses aos seres da quinta raça – a nossa raça – foi fazer com que os infortúnios ficassem mudos.

“vontade de dominar” desse leão pós-nietzsche. Na “Terra de Ninguém” – justamente na fronteira entre a racionalidade e o maravilhoso - eu e Guido nos arrepiávamos relembrando as “mentiras” do agreste. Mas não, não, é verdade Thiago, era desta forma que ele me falava quando em alguns momentos eu oscilava.

Saindo do bar de Guido, deitei numa cama mofada de uma das duas pousadas de Panelas que, naquele momento, tornou-se bastante confortável. Perdi meu tempo conversando sobre uma pedreira com um sujeito que estava sentado na frente do seu quarto. Deus do céu, estava tão disperso que conversei durante um bom tempo sobre uma pedreira. Por um momento me imaginei administrando uma extração de pedras. Estou enganado ou tenho facilidade para devanear sobre as coisas do subterrâneo?

Reconheci a casa de Zé Evangélico por um velho carro branco. Todos me avisaram que em frente de sua casa havia um carro – estranho, mas o carro pouco saía de lá; claro, era um carro bem velho. Bati em sua porta e me atendeu uma figura extremamente simpática que imediatamente lembrava todos os meus tios diáconos casados com tias diaconisas. Contei que havia falado com João e que eu gostaria de saber mais detalhes a respeito da botija, uma vez que João não havia ido até o momento em que foram desenterrá-la.

Zé contou que, “com a ajuda do sujeito que operava o detector de metais, cavei um buraco que deveria ter por volta de três metros. Encontramos uma pedra; quebramos a pedra; havia água; arrumamos uma bomba injetora e tiraram a água; depois disto cai uma forte chuva e o buraco se transformou num grande poço de lama. Ainda assim conseguimos achar pedaços de porcelana” – que embora eu tivesse pedido para ver, acabaram se perdendo nas arrumações e mudanças de Zé. Afinal, desistiram. Pouco tempo depois do episódio Cassimiro faleceu.

Questionei Zé. Indaguei-lhe o motivo de desistir repentinamente. Ele exclamava sobre a chuva – “foi a chuva Thiago, foi a chuva que não deixou”. O que houve mais além da chuva? Viram assombrações? Perguntei tudo isto me sentindo uma criança. “Não, não houve assombrações” – o que era esquisito, sempre havia assombrações em histórias de botija. Porém, disse Zé, “a botija andava – isto nos amedrontou”. Pensei então que, a botija andar, já é a assombração.

Zé contava que “o sujeito que operava o detector era alguém experiente, alguém que havia trabalhado por anos no exército. Nós estranhávamos, pois a localização da botija estava sempre oscilando, como se fosse um objeto vivo caminhando por debaixo do solo”. Mais uma vez indaguei o motivo e ele me disse que as botijas são encantadas. O problema é que aquela botija, explicava Zé, estava “marcada com sinal de morte. Não seria fácil desenterrá-la, pois o escolhido não estava presente”.

Dizia Zé que “Casimiro nunca deixou de pensar em botijas. Mesmo se dando mal na primeira investida, perdurava nele a vontade de desenterrar aquela danada. Ser acusado de assassinato não é bobagem, e Casimiro havia passado por isto por causa de uma botija amaldiçoada” – acreditava Zé. Ainda assim, mesmo sabendo que a outra indicação era marcada com sinal de morte, tentou possuí-la através da ajuda de terceiros.

Uma botija complicada, Zé? Lembro de questionar-lhe, assim, se existiam botijas deveras complicadas e outras de obtenção mais tranqüila. Zé acreditava que não; “o ouro, diz a bíblia, nos suscita sempre a tentação do poder”. Nesse momento, olha para trás e pede que a mulher traga a bíblia. Diferentemente da mulher de Zé Lúcio, ela não parecia se incomodar com o episódio da botija. Com o livro sagrado apoiado nas pernas, Zé Evangélico apontava para um versículo do livro de Mateus. Para ele, o esta curta passagem da bíblia era como uma chave-mestra que revelava todo o segredo

dessas histórias. Recitou Zé: “Não acumuleis para vós outros tesouros sobre a terra, onde a traça e a ferrugem corroem e onde ladrões escavam e roubam; mas ajuntai para vós outros tesouros no céu, onde traça nem ferrugem corrói, e onde ladrões não escavam nem roubam; porque, onde está o teu tesouro, aí estará também o teu coração” (Mateus 6:21). Era o último trecho que Zé utilizava para explicar as criaturas que surgiam para perturbar o sujeito que desenterrava as botijas, ele dizia “meu filho, é por isto, onde está o teu tesouro, aí estará também o teu coração, por isso as almas das pessoas ficam presas à terra, por isso vemos mal assombrações”. Zé acreditava que não deveríamos acumular tesouros na terra, outrossim, no céu. Para ele, quem enterrava botija ia de encontro a este princípio celestial.

O que imaginei? A alma arrastando com correntes aquele objeto por debaixo da terra, por isto ela estava andando. A imagem que parecia impregnar minha mente era bem esta. Uma espécie de Atlas ou Sísifo carregando um vínculo insuportável. Carregando por ordem do diabo. Por ordem das profundezas. Enquanto isto, penso com carinho, sujeitos desesperados utilizam a técnica precisa na superfície – tentando sair daquele cotidiano sufocante, tentando pagar as contas; tentando agradar a mulher com um belo presente; tentando garantir um futuro melhor para sua prole num mundo demasiadamente incerto; ou, ainda, simplesmente arrumando um motivo para continuar caminhando pela superfície – caminhando, como diria Salomão, por debaixo do sol.

No documento Sobre botijas (páginas 93-98)