• Nenhum resultado encontrado

A4.

MANIFESTAÇÕES

a4.1. do subconsciente

Muitas vezes, eu tenho um “automatismo” que me leva a encontrar as soluções, sem estar a pensar nelas. Eu sei que existe um problema, mas não vale a pena estar a marrar nele; não vale a pena estar a gastar folhas de papel, quando se sabe que não sai nada. Às vezes, sabe-se que vai sair e é preciso insistir, mas outras vezes isso não acontece (e.O).

As manifestações do subconsciente no trabalho de Ângelo de Sousa são assestadas inúmeras vezes nas entrevistas, para darem resposta a questões várias de procura justificativa de determinada ação artística. É recorrente a curiosidade alheia perante o artista e a sua obra; queremos saber o porquê daquele material, o porquê daquela cor, o como surgiu aquela ideia, enfim, queremos (não poucas vezes) acalmar a nossa manifesta surpresa e encantamento por algo e penetrar no universo da compreensão (o muitas vezes denominado racional).

Ângelo racionaliza da seguinte maneira: “Eu costumo dizer que tenho um bom subconsciente, mas o subconsciente só funciona bem quando está alimentado de informação” (e.J).

É essa informação, todo esse manancial adquirido ao longo do tempo, que permite e justifica ações que muitas vezes podemos designar de intuitivas. E sim, é intuição, mas porque a razão já está informada antes, diria Ângelo; já existe uma série de informações e

conhecimentos que permitem agir no momento e, nomeadamente, intuir. Não se trata de uma dicotomia entre o racional e o intuitivo, é mais o segundo que se alimenta do primeiro e faz o subconsciente agir, ou seja:

(…) é uma questão de subconsciente. Isso acontece desde pequenino. Na altura, era o anjo da guarda, quando eu era pequenino e a minha avó era viva. Há subconsciente; mas tem de se ter informações na máquina, e depois a máquina resolve e apresenta a solução (e.O).

Com o subconsciente liberto e o consciente ocupado, ao mesmo tempo a prestar e a não prestar atenção ao trabalho plástico que o ocupava, este acontecia muitas vezes frutuosamente; em particular o desenho [como já abordado em a3.1]:

Eu tento manter uma atenção subconsciente ao que estou a desenhar, embora preste atenção, simultânea e conscientemente, a outra tarefa a que possa estar cometido na altura. Aqui em casa, como não tinha ninguém que me distraísse, às tantas era mais difícil. Quando começava a trabalhar era extremamente difícil começar, porque estava tão consciente, tão focado na tarefa, que era extremamente difícil arrancar. Pensava: “Agora vou ver qualquer coisa”, e tinha a ilusão, à força de querer ver, tinha a ilusão de que via qualquer marca que ia servir; e não era, quer dizer, era eu a desejar que aparecessem marcas que não tinham qualquer fundamento, que não tinham qualquer origem.

Quando era obrigado a uma ocupação consciente, as coisas resultavam. O que interessava, de facto, era que estava a prestar atenção àquilo, mas não uma atenção consciente, logo crítica, logo a dizer mal, logo a destruir, não. Ia sendo espectador do que ia aparecendo. É o que acontece quando eu já estou em velocidade de cruzeiro, as coisas acontecem e eu digo: “Olha que interessante, aconteceu isto, o que é que irá acontecer a seguir?”. Dava-me uma enorme paz de espírito, até dava mais gozo que pintar quadros… (e.K)

A ausência de ênfase manual e a diminuta qualidade artesanal do desenho, concomitantemente com a dimensão de descoberta instantânea e momentânea do desenho justifica a designação de action drawing que Ângelo usara e tornava bastante favorável a ação do subconsciente.

a4.2. do desenho

Como é que Ângelo identificava os seus desenhos enquanto tal? O que é que, para si, os tornava desenhos? Esta questão foi descrita pelo artista, que identificava dois casos para os seus desenhos.

Havia o caso de uma série, “em que os desenhos foram feitos com o mínimo de recursos, só a preto e branco e exclusivamente com a ideia de serem embriões para eventual desenvolvimento. Portanto, coibi-me de criar texturas ou acidentes, de entrar pela cor, qualquer coisa que fosse. Quer dizer, são manchas pretas, riscos pretos. Preto e branco. O branco da superfície; o preto a tinta-da-china, o marcador, o que fosse. Estes desenhos estão para ali para, eventualmente, servirem de trampolim para outro tipo de trabalho, seja escultura, sejam outros desenhos maiores, seja pintura. Não quer dizer que os vá fazer todos, provavelmente não os vou fazer, são demasiados. Era impossível explorar todos.” Estes eram desenhos embriões, geradores de algo mais a posteriori e que continham logo o propósito inicial de parar antes do fim, ou seja, a ação de desenvolvimento e exploração não acontecia. Eram desenhos rápidos que o artista carimbava com um número para ter uma ordem cronológica, mas que não tinham qualquer destino pré-definido. Podiam “ser desenvolvidos com cor, em volume, ou com fitas metálicas, ou outras formas de escultura que até não cheguei a fazer, ou outras formas e técnicas de pintura que nunca usei (e.K).

Ângelo considerou os cerca de onze mil desenhos produzidos até à data (2004) - e importa assinalar que estes cerca de onze mil desenhos correspondem, de forma estimativa, a dezenas de milhares de desenhos realizados (mas não aproveitados) - como um empreendimento. Também o caráter humilde dos materiais usados nestes desenhos havia sido pensado e considerado com o intuito “de cercear os devaneios, o trabalho de cinzelador, o trabalho de requinte” (e.K). Enfim, estes foram os desenhos realizados como modelo para as suas transcrições e orquestrações, em modo que anuiu possuírem uma qualidade diarística.

A atitude psicológica, a maneira de estar, era completamente diferente, dissera Ângelo, num caso ou noutro dos desenhos. Vejamos agora o segundo caso.

Os outros são auto-suficientes, têm uma intenção diferente. Nesse caso, temos uma superfície branca, temos qualquer coisa que faz riscos ou que faz manchas, seja a cor, seja a preto e branco, seja a lápis, seja mole, seja duro, seja líquido, e normalmente o processo é: temos uma folha à frente, temos um instrumento qualquer que produz manchas ou riscos, que de qualquer maneira altera a superfície do papel. Eu vejo, e acredito que isso acontece à generalidade dos meus colegas, qualquer forma no papel que procuro repetir ou a que procuro sobrepor uma mancha ou um risco ou o que quer que seja com o instrumento que tenho na mão, no momento, e que até posso mudar a meio, para outra cor, para outra técnica, para lápis, para tinta-da-china, qualquer coisa desse género. Quer dizer, vou vendo, sucessivamente, indicações do que poderia existir naquele papel e tento, mais ou menos, ir seguindo essas formas com a possível fidelidade (e.K).

E, como já referimos, termina quando já não vê mais nada. Também a cor vai acontecendo, porque, sem ideia prévia definida e apenas com alguma nebulosidade, vai aparecendo e é tomada pelo artista.

É a especificidade do material e a sua vertente artesanal que assinalam o desenho como descoberta e o trabalho inerente é considerado como uma reação às imagens ou aos acidentes que surgem, até porque o papel é apenas um suporte; poderia ser ardósia, mas é papel por “uma questão de tradição e de comodidade” (e.K).

Apesar da sua aparente facilidade de execução, e da simplicidade muitas vezes presente na relação forte que os desenhos têm com o quotidiano, Ângelo nomeia os desenhos como repositórios de problemas e soluções. E acrescenta:

(…) não é propriamente o prazer de desenhar. Aquilo é uma actividade, é uma coisa muito activa. Acho que precisa um bocado de luta. Mas não vamos transformar num drama de cortar orelhas. Mas penso que é uma actividade conflitual, um bocado agónica (para falar à neogrego); embora, no fim, as pessoas possam ficar com a impressão que é muito visible, muito agradável, muito pastoral, arcádico, paradisíaco. Mas, evidentemente, penso que é uma actividade agónica (e.O).

Não obstante todo o confronto que a atividade do desenho consubstanciava para Ângelo de Sousa, estes também possuíam outros atributos:

(…) não me preocupo nada com o que alguém vai dizer, ou com quem está fora de mim. Acredito que o desenho se relaciona com o meu eu; ou aquilo tem que ver com uma coisa que se chama ergoterapia, que é terapêutica ocupacional. Não é que eu me sinta mais feliz; mas talvez tenha uma

faceta de ergoterapia, incluída nessa componente. Uma pessoa sente-se mas aliviada quando está a fazer um desenho. Ou se faz muitos desenhos e chega ao fim e fica a sensação de… “hoje ganhei o meu dia; só deitei fora vinte, aproveitei cinco em vinte, foi um dia tremendo”. Neste sentido, funciona assim como doping para levantar um bocado a moral (e.O).

A prática do desenho foi quase uma constante ao longo do seu tempo de produção, tendo partido sempre da vontade. A presença do desenho é uma das características insignes da obra de Ângelo de Sousa. Muitos dos seus quadros, nomeadamente com a presença da linha - linha que muitas vezes delimita, que separa -, eram quase desenhos, como atesta o artista: “Sim. Aquilo é um desenho, no fim de contas. Simplesmente é um desenho que decorre da maneira de pintar, da maneira como o quadro é pintado.” (e.G)

São maneiras, as maneiras de Ângelo, e são os seus desenhos e as marcas da sua presença que aqui assomam.