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P - Como reage a uma crítica desfavorável? Para que serve a crítica? R - Algum efeito deprimente, de uma crítica desfavorável, passa com a primeira noite de sono. O efeito de uma crítica favorável dura menos. Mas não sou rancoroso. Como diz o fado “perdoar é diferente de esquecer”. De resto, qualquer crítico (desde que sem segundas ou terceiras intenções, por exemplo comerciais) é um ser humano respeitável, que erra. Até esse suposto paradigma do crítico presciente e clarividente - Baudelaire - perdeu mais tempo a escrever sobre artistas que ninguém já recorda, que sobre Daumier ou Delacroix. Portanto, a crítica serve para se arriscar a errar.

Entrevista a Ângelo de Sousa – e.F [sobre a crítica]

b2.1. ironia

Tinha, além disso, um sentido de liberdade e humor magníficos, à Swift, que juntos compunham uma desconcertante ironia. Que rapidamente o distanciavam de quanto não lhe interessava, no mundano ou no artístico, para se concentrar só no que realmente lhe importava com insaciável curiosidade.

Bernardo Pinto de Almeida | Lógica da perceção

A ironia surge naturalmente quando lemos as entrevistas de Ângelo. Abordemos o conceito. Richard Rorty apresenta-nos uma apropriação da tradição ironista, redescrevendo-a. Segue-se uma reflexão sobre a tradição ironista a partir deste autor, qual charneira que pretende movimentar o nosso pensamento entre esse e um conceito de ironia que poderá estar presente no artista Ângelo de Sousa e/ou nas suas palavras.

Uma concepção filosófica assente numa negação da existência de significados estáveis, no desapego da consumação de verdades e factos e de uma qualquer correspondência entre linguagem e realidade, vem recebendo contribuições de diferentes pensadores desde Nietzsche. Uma recusa do cânone Platão-Kant, em defesa de conceitos de subjetividade e de recusa dos de realidade e verdade, encontra em Rorty um acérrimo defensor. O autor, que clama por debates edificantes, rejeita a ideia de uma filosofia que aponta para uma justificação do conhecimento e dirige-se para uma filosofia que tenha como utilidade fins de cariz social e não eminentemente teóricos; defende uma filosofia redescritiva e não explicativa. Há uma incitação explícita a assumirmos uma atitude irónica relativamente às nossas opiniões, crenças e ao curso dos acontecimentos, até porque a verdade é algo criado e não descoberto.

Aparece assim o ironista liberal, alguém razoavelmente historicista e nominalista de forma a recusar qualquer ideia de justificação para além do tempo e do acaso. O ironista liberal de Rorty é uma espécie de apogeu do ironismo, pois concilia em si as necessidades públicas e as de autocriação privada, surgindo como consequência de um movimento filosófico amplo que abarca a tradição ironista.

Será necessário mapear a tradição ironista à qual Rorty se reporta e desde logo viajamos a Sócrates, que avisava o povo ateniense sobre as ilusões do conhecimento adquirido. Atualmente associamos uma postura de negação pela noção de verdade objetiva a pensadores como Heidegger, Wittgenstein e Derrida (entre outros).

Designando a tradição como um movimento em que os seus partidários estão conscientes da mesma e das suas orientações, integrando debates e pesquisas relacionadas com o assunto, assume-se o conflito como característica intrínseca ao processo histórico das tradições. Rorty especifica esse conflito, destacando a necessidade de cada pensador se elevar perante o anterior e de cada um se posicionar como o pensador mais inteligente e o crítico mais atroz que o anterior. O ironista de Rorty, pretere os argumentos e promove redescrições; para as realizar, ele aprende com os seus antecessores, é com os seus erros que ele amplia o seu domínio analítico. Acima de tudo, em vez de usar proposições para

uma argumentativa, usa vocabulários para as redescrições, que por sua vez assentam num confronto entre o velho e o novo; considera o velho como linguagem obsoleta (porque não se dirige ao propósito do momento) e não critica por considerar serem falsas as suas proposições.

O ironista salienta o aspeto contingencial da realidade, recusando a ideia de existir qualquer verdade última para ser descoberta e de existirem valores absolutos e é “um tipo de pessoa que encara frontalmente a contingência das suas próprias crenças e dos seus próprios desejos mais centrais” (Rorty, 1994, p. 17). Na perspetiva rortyana, subjaz a ideia do ser humano como ser contingencial, logo em permanente construção - por isso deve duvidar constantemente do seu próprio vocabulário e reconhecer que o seu próprio vocabulário não é o que mais se aproxima da realidade, mas sim de si mesmo - refutando descrições fixas e últimas, porque o que pode ser considerado melhor depende apenas dos propósitos e não da verdade. Podemos dizer que este é o esquema rortyano: o reconhecimento da contingência (da linguagem, de nós mesmos e dos valores de uma cultura), que nos leva a adotar uma postura intelectual menos dogmática, incita a ironia que acabará por resultar numa extensão do espaço de solidariedade. Como é que a ironia nos leva à solidariedade? Através de uma concepção de progresso originado por um interminável processo de substituição de vocabulários. Porque os avanços morais concretizam-se quando nos tornamos mais criativos e imaginativos (temos a imaginação como faculdade humana central, para Rorty) e não quando nos aproximamos mais um pouco da verdade e do correto.

A atitude de interesse pela possibilidade de tornar as coisas novas através da redescrição, mudando vocabulários, Rorty atribui já a Hegel na sua Fenomenologia do Espírito, que criticara a linguagem obsoleta dos seus antecessores: “ao inventar este tipo de crítica à linguagem e não à verdade de seus antecessores, o jovem Hegel rompeu com a sequência Platão-Kant e iniciou uma tradição de filosofia ironista que tem continuação em Nietzsche, em Heidegger e em Derrida” (Rorty, 1994, p. 110). Todos estes teóricos investem no caráter

plural, polifacetado e aparente daquilo que nos rodeia e constituem, eles próprios, a tradição ironista que Rorty redescreve e na qual se insere.

O processo de nos conhecermos a nós próprios e de sermos capazes de nos confrontar com a nossa contingência, diz Rorty, é similar ao processo de inventarmos uma nova linguagem, ou seja, de criarmos metáforas novas; o autor invoca assim Nietzsche que já então via o autoconhecimento como autocrição e fora pioneiro no abandono do conhecimento da verdade.

Voltando ao ironista liberal, foi enquadrado nesta tradição ironista que o autor cria então a metáfora do ironista liberal (figura de linguagem própria com a sua versão do liberalismo, que consiste numa aversão a todo o tipo de crueldade), que é alguém que tem a capacidade de aliar a consciência do seu próprio vocabulário com a responsabilidade para com a redução do sofrimento, numa contenda com a crueldade: assim se funde o público e o privado. Ou seja, já sabemos que o ironismo surgira como consequência reacionária dos esforços metafísicos de uma fundamentação última da realidade e que a perspetiva filosófica defendida é aquela que se encaminha para uma consciência das contingências histórico-linguísticas como referência das nossas práticas. Tal leva a filosofia a adquirir um cariz mais pragmático e encaminha-nos, segundo Rorty, para prescindir da verdade pela liberdade, em prol do pensamento e do progresso social. Eis a direção para transpor um já antigo impasse metafísico, o da conjugação da busca da perfeição privada com um sentido de solidariedade humana, ou seja, da cisão entre o público e o privado.

No entanto, mantém-se a querela (de um lado temos autores como Habermas, Marx, Mill e Raws que desenvolveram reflexões acerca de como tornar as instituições e as práticas sociais mais justas; por outro lado, numa demanda da importância da autonomia do indivíduo, temos Nietzsche, Foucault e Heidegger, a valorizarem a capacidade de autocriação privada liberta de amarras temporais). Os primeiros mantêm uma visão negativa, de oposição essencial pelo que de mais profundo há em nós, acerca da socialização

e os segundos continum a entender o desejo de perfeição pessoal como algo irracional e dotado de esteticismo.

Reconhecendo razão a ambos e considerando as exigências de cada intraduzíveis e tendencialmente sem limites, porque não falam o mesmo vocabulário, logo impossíveis de unificar numa única teoria, Rorty reconhece uma possibilidade:

o objectivo de uma sociedade justa e livre é permitir que os seus cidadãos sejam, de modo privado, tão “irracionalistas” e esteticistas quanto entendam ser, desde que o façam na devida altura - sem fazerem mal a outrem e sem utilizarem para tanto recursos de que necessitem os menos favorecidos (Rorty, 1994, p. 16).

De acordo com esta perspetiva rortyana, qual utopia política, não é impossível unir o publico e o privado porque não é necessário concretizar uma síntese; basta pensar neles como ferramentas e criar uma metáfora capaz de os conter e que abarque uma ética para a vida privada e uma política para a vida pública: a metáfora do ironista liberal, que harmoniza a vontade da maioria com os direitos individuais. Como? Com um comprometimento de promoção de solidariedade social, cujo espaço privado seja preservado. Assim vingarão vocabulários diversos (renega-se qualquer unificação numa espécie de metavocabulário), alternativos e novos e mesmo subversivos ou incoerentes, mas que se constituem como instrumentos para o fim desejado, numa esperança liberal do fim do sofrimento humano. A ideia é usar os diferentes vocabulários para os distintos propósitos: o de inspiração romântica de apelo à liberdade de autocriação deverá ser-nos útil no âmbito privado e o vocabulário herdado do racionalismo iluminista, fomentador de um esforço social a favor da justiça e da solidariedade, deverá restringir-se ao domínio de ação pública.

Rorty propõe-nos uma filosofia enquanto lugar de conversação, rejeitando ideias que conduzem a representações da realidade, com o objetivo definido de resolução de problemas transitórios. Como? Apresentando propostas para a realização de utopias.

Uma característica relevante das posições críticas que Rorty assume é a da sua inconsequente refutação. Como este não pretende apresentar nenhuma descrição correta

e verdadeira da realidade, ele assume uma estratégia de mudança de rumo e de mudança de regras do jogo quando confrontado. Rorty amplia assim a tradição ironista de tal forma que pode gerar alguns problemas a simpatizantes da causa ironista. Mas enfim, a crença numa natureza humana mutável, afim da solidariedade, poderia assim entrever uma solução para a querela entre o público e o privado. Eis o ironista liberal, aquele que conduz à formação de uma comunidade liberal utópica, que percorre o caminho da consciência da contingência, na sua tarefa de redescrever os seus próprios passos, o que o torna autor de si.

Ângelo era um literato, consumiu imensas e variadas quantidades e qualidades de conhecimento via livros. Aliás, transcrevo parte de uma das entrevistas (e.M): “O Jorge Molder diz que lhe podemos perguntar sobre matemática, física, literatura, cinema, que responde. E que se não responde na hora, liga às onze da noite com a resposta...” Bernardo Pinto de Almeida acrescenta: “ele próprio era profundamente irónico porque isso também fazia parte da inteligência dele. Era uma forma de lidar com os outros e ter paciência com os outros. Se não fosse irónico, irritava-se.”

Rorty chama ironistas às pessoas cuja

percepção de que qualquer coisa pode ganhar um aspecto positivo ou negativo ao ser redescrita e a sua renúncia à tentativa de formular critérios de escolha entre vocabulários finais as colocam na posição a que Sartre chamou “meta-estável”: nunca muito capazes de se levarem a sério por estarem sempre conscientes de que os termos em que se descrevem a si próprias estão sujeitos a mudança, por estarem sempre conscientes da contingência e da fragilidade dos seus vocabulários finais e, portanto, dos seus eus (Rorty, 1994, p. 104).

O ironista de Rorty, assim como Ângelo tivera, tem uma atitude intelectual cúmplice da dúvida, rejeitando qualquer pretensão de suposto conhecimento que não dependa do contexto; o ironista de Rorty, tal como Ângelo acreditara, acredita “numa ordem situada para além do tempo e da mudança e que simultaneamente determina o sentido da existência humana e estabelece uma hierarquia de responsabilidades” (Rorty, 1994, p. 18); não advoga nenhum conhecimento do tipo universal, porque assume a história como um

exemplo dos erros, das atrocidades, das omissões. Ângelo, qual ironista, também não defendia nenhum juízo final, muito pelo contrário17 e tinha uma lúcida consciência da

mudança e do caráter instável das coisas, motivo pelo qual nunca fora afim a tendências e defendia aquela necessidade de um certo grau de autismo18. Está alinhado com a premissa

de Rorty: “o ironista não se preocupa em fornecer a si próprio e aos seus companheiros ironistas um método, uma plataforma ou um rationale. Faz apenas o mesmo que todos os ironistas fazem - tenta alcançar a autonomia” (1994, p. 130).

Ângelo inventou a sua linguagem, concebeu e proporcionou inúmeras metáforas, sem nunca assentir ou pronunciar qualquer descrição literal da sua individualidade. Porque, como diz Rorty, fracassar como ser humano, como poeta, ou como artista (digo eu), “é aceitar a descrição que outra pessoa faça de nós, executar um programa previamente preparado, escrever, quando muito, variações elegantes de poemas anteriormente escritos” (1994, p. 53). Com uma força imensa, Ângelo triunfou na sua autocriação que possibilita e encerra infinitas redescrições. Ângelo, sem qualquer tipo de atitude divinizante e/ou divinizadora não se limitou a herdar um mundo: criou um mundo, qual jogo de infindáveis possibilidades.

Irónico também (ou sobretudo) consigo mesmo, jamais se envaideceu ao aperceber-se de o ter feito. Deixou milhares de obras inéditas, entre desenho, pintura, fotografia, escultura. Mas guardava dúvidas tão grandes e profundas que os muitos prémios que recebeu não o sossegaram por mais que breve tempo.

Bernardo Pinto de Almeida | Lógica da perceção