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O segredo

Cada forma tem uma fenda, mas por vezes esta não se vê. É preciso olhar muito tempo para uma forma para ver a fenda. A fenda de uma forma é o sítio onde começam as formas seguintes Descobrir a fenda de uma forma é descobrir a outra hipótese da forma A fenda é o segredo da forma. É necessário olhar com violência para as coisas. Quem não o fizer verá apenas a aparência das coisas. A fenda surge apenas nas formas olhadas com violência. A violência do olhar é proporcional ao tempo do olhar. Quanto maior o tempo atento do olhar, mais visível se torna a fenda (e o Segredo). A transformação de uma forma noutras formas é uma etapa do Segredo, mas não é a única nem a última Pois todas as formas, por menor que sejam as suas dimensões, têm fendas (e às fendas poderás chamar possibilidades) As fendas apenas se tornam visíveis se olharmos, mais uma vez, para as formas o tempo suficiente. E com violência Nenhum homem descobre o último segredo de uma forma porque os homens são mortais Só a eternidade é capaz de descobrir a última fractura, a última possibilidade; só ela é capaz de revelar o Segredo

As imagens convocam não só o nosso pensamento, como os nossos sentidos e a nossa imaginação. São entidades pregnantes e contêm em si toda uma potência de pensamento. É para me aproximar das imagens criadas por Ângelo de Sousa que percorro agora algo acerca do conceito de imagem.

Hans Belting e a imagem

Hans Belting (1935) começa o seu livro A verdadeira imagem questionando o que é uma imagem verdadeira. Diz-nos que é nas imagens que queremos encontrar a verdade e que procuramos nelas provas para aquilo que desejamos ver com os nossos olhos; se tal não for possível, desejamos imagens que nos ajudem a construir uma ideia de algo. Sim, é verdade que usamos as imagens como janelas para a realidade. Mas não é a realidade um conceito em constante alteração? Logo, a nossa exigência em relação à imagem também se modifica. Assim surge o mote de Belting, pois se essa exigência significa que desejamos crer nas imagens, o autor justifica-a com a presença da fé. Estamos já na esfera religiosa, ou melhor, estamos ainda na esfera religiosa, pois mesmo após a secularização, restam ainda muitos ecos na mentalidade ocidental dos conceitos de fé sobreviventes nos conceitos de imagem.

Muito relevante é que também

as imagens se deixam utilizar como signos, mas possuem um excesso na captação sensível da realidade, de uma realidade pretensamente isenta de interpretação e deformação, pelo que elas são para nós mais perigosas ou cativantes: acorrentam os nossos sentidos e a nossa imaginação. (Belting, 2011, p. 10)

Há um poder imenso na força da própria imagem e no recurso desta à realidade. As imagens e signos, assim como as palavras, são indubitavelmente os nossos suportes para tudo o que queremos apreender acerca do mundo. Mas ambas, imagem e palavra, exigem a sua credibilidade. De facto, quando acreditamos na palavra de alguém, está em jogo a fé. Em cada uso dos meios pressupõe-se a existência de fé; esta surge no processo a que damos

o nome de simbolização do mundo. São estas as premissas de Hans Belting, que investe a sua visão da imagem num contexto histórico, em que religião e cultura se cruzam, ora como inimigas ora como aliadas, mas sempre numa relação de dependência.

Tenhamos então em mente que a

práxis imagínea é neste jogo alternante um indício de primeira ordem, justamente porque as imagens ocupam o limiar entre visibilidade e invisibilidade, juntam, portanto, duas zonas em que tem lugar a auto-representação de cada religião. As imagens tornam visível ou impedem a visibilidade. Interditam e proclamam. (Belting, 2011, p. 16)

Vejamos que hoje em dia se tem por invisível aquilo que ainda não se tornou suficientemente visível, no universo e nos microcosmos, enquanto que o absolutamente invisível, que no âmbito espiritual as religiões prometem, saiu da nossa vista. Eis porque a

imagem autêntica é hoje uma contradição: porque está em vez de algo que temos por real.

Na análise da simbiose e dos seus conflitos entre a religião e a sociedade, na investigação sobre a imagem levada a cabo por Belting, vários conceitos surgem tratados pelo autor. Mas é sobre o conceito de idolatria, hoje, que me vou concentrar nesta breve análise. Porquê? Porque é um conceito que expande a discussão entre imagem e realidade, o que se consubstancia interessante na fusão de possibilidades na análise da obra de Ângelo. Um dos autores abordados por Belting é Jean Baudrillard, que considera a imagem como puro simulacro de si mesma, já que estas deixaram de conter referências à realidade (tornando- as contrárias à representação) e à verdade. Se as imagens apenas simulam o significado, significam-se a si mesmas e deixa de haver pertinência para qualquer juízo final que pudesse alegar o verdadeiro ou o falso da imagem. E deixa de ser possível concebermos a ilusão, porque não temos já acesso ao real, de acordo com Baudrillard. No seguimento deste receio de que as imagens já não transmitem o real, Vilém Flusser afirma que as imagens já não são janelas, pois “em vez de representarem o mundo, na verdade, o alteram” (como citado em Belting, 2011, p. 21). Se o homem não é capaz de decifrar criticamente as imagens, apenas as projeta no mundo, estamos na presença da idolatria, que consta da inversão da função

imaginal - embora assim todas as imagens possuam cariz idolátrico. Levanta-se a questão: teremos nós trocado o visual enquanto estímulo sensível pela imagem enquanto símbolo?

Se antes as imagens tinham uma função documental, que está na base de toda uma série de narrativas imaginais, hoje a própria imagem é o acontecimento, já que se produzem “imagens, ao elaborar-se um facto que só na imagem se torna realidade e se institui a favor da produção imagínea (Belting, 2011, p. 22)”. Já não conseguimos fugir a uma experiência sem imagens! Será esta iconomania, segundo Gunther Anders, uma forma de gerarmos múltiplas existências e de nos evadirmos, ao tentarmos abolir os limites dentro dos quais se desenvolve a nossa vida?

Atualmente, o consumo das imagens acontece como se estas fossem informação, surgem e dissipam-se como os próprios acontecimentos. Hans Belting lembra-nos que tal pode ameaçar o lugar da imaginação privada. Até na realidade virtual, que não pretende produzir figurações da realidade, apenas imagens, o homem pode libertar-se do peso do seu próprio corpo e seguir rumo a um mundo artificial. Nas imagens que o poder económico produz, estas passaram a constituir-se como ícones do consumo, e não de ideias ou ideologias políticas: consome-se o consumo, sugere Belting. E afirma: “a perda do mundo que, hoje, se leva a cabo nas imagens é compensada pela intensidade com que o mundo regressa como imagem e na imagem (2011, p. 29)”. As imagens tornaram-se as matrizes do mundo, tornando indistinta a fronteira entre ícone e ídolo, nomeadamente, e o virtual e o fictício ocuparam o lugar do imaginário.

As imagens de Ângelo, acredito, ainda conseguem interromper este devir e orientam-nos para um exercício de interpretação e de análise (pessoal também). As imagens de Ângelo, com a sua presença, captam o observador e conduzem-no para um mundo simbólico e sinestésico, onde o olho ainda se perde na fantasia e nas possibilidades. Exigem também estas imagens de Ângelo a nossa fé (não para nos convencer, mas para nos impressionar)?

É também ao conseguirmos pensar sobre o caráter da imagem nos dias de hoje - o seu ritmo, a forma como são transmitidas - que conseguimos perceber a importância de nos concentrarmos em imagens singulares que exercitam o nosso pensamento crítico. Porque esta questão que Belting coloca Que poder conservam ainda as imagens? (2011), nos entusiasma a ir de encontro a uma resposta e esta poderá estar precisamente nas imagens inspiradoras, que cultivam a nossa imaginação e reflexão. Sugiro as de Ângelo de Sousa, claro.

Belting incita-nos a darmos valor às imagens para lá de uma equiparação aos signos, para além de portadoras de informação e declara “a nossa imaginação aninha-se no olhar que lançamos sobre as imagens” (2011, p. 143). O nosso olhar poderá imbuir-se de estímulo percetivo, de mãos dadas com a nossa imaginação, tendo em mente uma qualquer sublimação da condição do observador da imagem como leitor.

Benjamin e a imagem dialética

Para Walter Benjamin, a imagem desempenha um papel fulcral e para além de ser transversal a diversas esferas por ele abordadas também ecoa em questões fundamentais como a da linguagem e a sua conceção da história e do tempo. Inúmeras relações entre imagem (que é, para Benjamin, o modo de dar a ver o conteúdo histórico das coisas) e pensamento foram sendo traçadas e contribuíram para novas formas de pensar a arte e a crítica, nomeadamente.

Apesar de Benjamin não ter construído um pensamento sistemático acerca da imagem, é inesgotável a potência das suas reflexões sobre o olhar e sobre a função da imagem. Nesta breve análise volto à análise da imagem dialética no pensamento benjaminiano, que é um conceito que o próprio assim designa: “A imagem dialéctica é uma imagem fulgurante. É então como imagem fulgurante no Agora da cognoscibilidade que é preciso reter o Outrora” (Cantinho, 2011, p. 308). A imagem dialética é, pois, uma imagem crítica que aparece como sintoma da memória (relacionado a história e a possibilidade do seu conhecimento) e que

encontra o seu lugar na linguagem. Podemos ver a imagem dialética como a imagem do desejo, porque contém aquela vontade de redenção da história da humanidade.

Será através de um efeito destrutivo, que gera uma descontinuidade na história, que a possibilidade da leitura da imagem dialética se configura, provocando o conhecimento histórico verdadeiro, logo introduzindo também uma pertença. Ou seja, na construção do novo olhar histórico, é necessário produzir uma ação destrutiva que possibilite a concretização de uma verdadeira síntese operada através de uma desintegração da continuidade histórica. Trata-se da reclamação de um novo paradigma, numa declaração anti-positivista do conhecimento histórico. A imagem dialética, operando a sua legibilidade, constitui-se como a expressão da desintegração, qual momento desconstrutivo e crítico. Deveras interessante é que esta conceção da imagem traz consigo uma nova conceção do tempo, algo do tipo espectral, porque perspetivado de um ângulo arqueológico, material e psiquicamente, numa dialética da consciência e inconsciência e como sintoma da memória e da vida psíquica. Assim, cada objeto histórico constitui-se como um espaço de tempo e a imagem dialética converge em si o momento da cognoscibilidade histórica, constituído entre o sonho e o despertar.

A imagem dialética detém o poder de desmontar ou desconstruir a história. Benjamin pensa a imagem dialética como fulguração e como sendo a imagem autêntica. Esse momento destrutivo, de explosão e descontinuidade, constitui-se como marca da historicidade, contendo em si a sua legibilidade. A lucidez do olhar, que recusa a totalidade e a continuidade é seduzida pelo desvio do fragmento que dá a ver em si a sua essência. Benjamin, assim como Warburg, partilham a crença no detalhe, no ínfimo que possibilita a intimidade, a descoberta e a pertença.

Também estas análises podem ser vistas como detalhes… fragmentos de possibilidades de descobertas e pertenças. Porque novos conteúdos suscitam novas formas.

E também as imagens de Ângelo podem desmontar algo, porque dão a ver o detalhe, confundem-nos, problematizam o real; também muitas das suas esculturas assumem uma multiplicidade de configurações visuais, e nos mostram o modo como as coisas funcionam

e são libertas de continuidade - e quando recompomos uma escultura, definimos uma nova ordem e um novo conhecimento; também as várias camadas nas pinturas de Ângelo, quais montagens, quais sobreposições, quais fecundas possibilidades de olhares, podem sugerir descontinuidades e desconcerto. Há um caráter errático em muitas obras de Ângelo que fazem surgir novas imagens a renovados olhares…

Vimos como a imagem dialética representa, por um lado, o seu anacronismo, o choque e a violência, e o seu teor fantasmático, e por outro, se constitui como fonte de conhecimento, de visibilidade e desmontagem da história. A imagem foi um constante meio de reflexão e de comunicação para Walter Benjamin, numa dinâmica conceptual hábil de inspiração.