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A presença de uma linhagem familiar é também algo distintivo da obra de Ângelo de Sousa, que nos elucida acerca do seu empenho na sua existência:

Às vezes aquilo tem que ter um certo entrosamento. Tem que ter uma certa linhagem familiar, o que, se não existir, torna-se um bocado inexplicável para as pessoas. Eu vejo que mesmo com uma família de 12 ou 15 as pessoas acham esquisito, como é que não hão-de achar se for uma só, sem família, uma orfã e abandonada que eu adoptei? É ilegível para as pessoas. Em certa medida há a necessidade de criar uma micro-tradição para que aquilo se entrose numa coisa qualquer, se integre numa familiaridade qualquer. É um bocado uma necessidade de tornar a coisa explícita, é como “les meules de foin” de Monet, ou as catedrais de Monet, a partir da catedral de Rouen, é o exemplo habitual das primeiras séries que apareceram (e.L).

É uma maneira de fazer as coisas, que surge como uma necessidade da própria obra, esta criação de uma microtradição que evite a inexplicabilidade.

De cada família, Ângelo mostrava interesse em ir guardando um exemplar para si, para o espólio, e ia tentando não vender esse espólio. É um sinal de apreço e de corporização dessas mesmas famílias.

Essa familiaridade é-nos muitas vezes sugerida na retoma de Ângelo a alguns motivos, como por exemplo as plantas e as árvores, das pinturas da década de 60, nos filmes e nas fotografias. A capacidade de utilização desses elementos com grande liberdade e as variações formais passíveis de serem realizadas, são causas apontadas pelo artista pela afeição a essas composições.

Foi em 1958 que começou a fazer os desenhos que se assemelhavam a árvores na forma como se viam, “embora graficamente fosse só uma linha assim um bocado angulosa e depois umas evocações de umas folhas” (e.K). Quando Ângelo fazia estes desenhos, não se estava a lembrar de nada que tivesse visto, “era uma forma que brotava de baixo, que estava mais ou menos central, pesava mais em baixo e em cima era leve. Por isso, continuei a chamar àquilo “árvores”, mas não era propriamente um nome, eu costumo dizer que era uma alcunha” (e.K). Sem qualquer simbolismo associado premeditadamente, só mais tarde Ângelo veio a descobrir que essas formas equivaliam a um teste de personalidade ou de vida emocional, de cariz jungiano, que era usado com crianças ou com pessoas com problemas e cujo valor simbólico advinha da análise da existência ou não de partes como as raízes, as copas, os ramos, etc.

E, já com este conhecimento, “eu continuei a chamar-lhes “árvores” e a associá-las sempre. Essa família já funcionava como uma série, como um processo cronológico de experimentar formas, de praticar ginástica para ver a forma, ir lá e conseguir segui-la, conseguir explorá-la, conseguir inventar. Foi uma ginástica para a cabeça e para a mão, em termos de concepção, e foi também para mim, na altura, uma paródia aos clichés que se usavam, ou que se tinham usado ou que se iriam usar, não sei. Foi uma espécie de volta à arena, ou de vista do panorama vigente na altura (e.K).

Foram muitos os desenhos feitos nesta série das árvores, que Ângelo chegou a considerar como parodoxal, porque ninguém viu ou verá essa série de desenhos completa para verificar

Eram coisas que eu fazia para meu uso, que existiam no momento em que eram feitas, e que constituíam uma estrutura que nunca será apreendida por ninguém. É assim uma tarefa, um bocado vã e absurda, muito divertida enquanto a fiz. Desde as árvores até essa série dos onze mil e tal desenhos, que ninguém vai ver na totalidade (e.K).

Não vemos a totalidade, é certo, mas o que vimos ou vamos vendo é suficiente para atestar esta presença de uma estirpe familiar, em modo de ginástica de concepção, como revela expressivamente o artista.

a4.4. de relações

As relações entre as diversas tipologias de produção artística de Ângelo de Sousa foram sendo um assunto recorrente nas entrevistas a si realizadas. Exploramos o tema com a referência a uma ação familiar em Ângelo, a de voltar atrás, para espreitar o que nos diz sobre relações entre a pintura, a escultura e o desenho:

Tenho a impressão que, em termos formais, de “inspiração”, as esculturas estiveram sempre em relação com os meus restantes trabalhos. Por vezes, até, com pinturas ou desenhos feitos na mesma ocasião. Contudo, nenhum destes trajectos - na pintura, na escultura, no desenho, etc. - segue um percurso linear. Estou, constantemente, a voltar atrás, a ideias já de alguns anos, a retomá-las, numa espécie de reciclagem. O que quer dizer que, nos resultados, poderei estar aparentemente muito longe já do ponto de partida - e o parentesco não ser imediatamente evidente (e.B).

Ressalvemos algumas relações citadas: em muitos desenhos e muitas pinturas avultam as enormes superfícies brancas e a vocação figurativa; a visão icónica presente na fotografia e na pintura, em que qualquer coisa é centrada e selecionado um pormenor; os exercícios de composição elaborados com a câmara de filmar nos seus filmes do chão da garagem da casa de Esmoriz prefiguraram os esquemas compositivos de alguns quadros, os aparentemente monocromáticos, como confirma Ângelo ao responder que “todas as composições de linhas que aparecem nesses filmes acabaram por aparecer, nos anos seguintes, em quadros”(e.J).

Podemos então enfatizar a relação do cinema com a pintura (talvez pela prática de pintor) e vice-versa, ambos com um forte cariz experimental, nomeadamente ao nível da técnica no caso dos filmes: muitas vezes a imagem toma a aparência da pintura, tendo até sido referido a sugestão dos movimentos da câmara com o manuseamento de um pincel em que podemos pressentir a imagem a formar-se como que por pinceladas. Eis um outro exemplo dado por Ângelo:

(…) as linhas da mão, quer nos filmes quer nas fotografias, também não são muito diferentes das linhas dos quadros aparentemente monocromáticos. Para mim, esses filmes e fotografias funcionam como os quadros. Não é por acaso que os projectava numa tela branca com uma dimensão aproximada à dos quadros (e.J).

Também vemos referido outro tipo de relação, a que se pode perscrutar numa mesma tipologia de produção ao longo do tempo. De entre os quadros de Ângelo das várias décadas sobressai uma mesma forma de fazer, de construção, de formas afins. Se pensarmos nos quadros nos nos 60 e dos anos 80, por exemplo, destaca-se a relação entre as formas no interior do quadro e os seus limites,

a uma aparência de autocontenção ou auto-suficiência… Isto é, cada pintura termina nos seus limites físicos e não se sente que poderia ter continuado para fora deles, apesar de, frequentemente, as formas e linhas serem violentamente truncadas pelas margens do quadro. Julgo que estas pinturas - e outras que tenho feito -, se poderiam dividir em rigorosamente simétricas ou violentamente assimétricas. Assim como as dos anos 70 e 80 (e.C).

E já que falamos de construção, e pensando em toda a obra do artista, avulta uma espécie de fundamento absolutamente transversal - ao desenho, pintura escultura e mesmo filmes - um pouco difícil de definir, mas que tem que ver com a forma de trabalhar linhas (que dividem o espaço, como meios para delimitar) e superfícies (lado a lado, umas atrás das outras…) no espaço. Como se fossem as mesmas questões as que assomam nos vários

media, qual imagem una das suas múltiplas facetas, muito embora não premeditadamente,