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C APÍTULO XV S IMBOLOGIA E I DENTIDADE

No documento Relatos fundacionais do imaginário timorense (páginas 135-139)

A identidade de um povo, antes de ser construção política permanentemente inacabada, é sobretudo reflexo da sua cultura, do seu imaginário e das suas manifestações sociais, culturais e religiosas que fazem com que determinado povo e cultura se distingam dos demais. No caso de Timor-Leste essa identidade1 consubstancia- se e enraíza-se numa cultura ancestral marcada por uma grande multiplicidade de formas regionais, levando alguns até à feliz expressão de mosaico2 cultural. Daí ser preferível, talvez, falar em culturas e imaginários dos variados grupos étnicos que se expressam numa grande diversidade e riqueza de expressões artísticas. Não procuraremos destacar essas diferenças, antes encontrar elementos comuns que se traduzem, é certo, em várias raízes que desaguam num único tronco, em formas artísticas que representam a identidade nacional timorense.

1R GLVFXUVR GH WRPDGD GH SRVVH HP  GH 0DLR GH  ;DQDQD *XVPmR DILUPD ³4XLVHPRV VHU QyV mesmos, quisemos orgulhar-nos de ser nós próprios, um Povo e uma Nação. Hoje somos efectivamente o que quisemos seU´(VVHRUJXOKRpVHQWLGRYLYLGRHHVSHOKDGRQXPDFXOWXUDDQFHVWUDOTXHIRLVHQGRSUHVHUYDGD em continuum através de um secretismo mantido também como forma de fechamento, de procura de eternização, de defesa para que não houvesse contaminação externa. Só assim foi possível manter rituais, costumes e artes tão antigos que se perdem no tempo, que mantêm a sua originalidade e pureza, já que, mesmo sofrendo mais de quatrocentos anos de colonização, estes povos foram defendendo as suas raízes ancestrais, o seu território, as suas montanhas, as suas grutas que escondem pinturas rupestres dos seus primeiros avós, as suas árvores genealógicas, as suas orações, cânticos guerreiros, lendas e mitos. Foi esta preservação, este cuidar das raízes ancestrais, este culto e orgulho de pertença a determinado grupo que erigiu também a identidade timorense.

                                                                                                               

1 São poucos os estudos sobre a identidade timorense e a interessante temática merecia já um trabalho mais aprofundado e abrangente. Veja-se a propósito o ensaio de José Mattoso (2001) ± ³6REUHD,GHQWLGDGHGH7LPRU/RURVDH´ Camões ± Revista de

Letras e Culturas Lusófonas, nº 14. Jul-Set 2001. Lisboa: Instituto Camões. Confronte-se também trabalho de Geoffrey Gunn (2001) ±

³/tQJXDH&XOWXUDQD&RQVWUXomRGD,GHQWLGDGHGH7LPRU-/HVWH´Camões ± Revista de Letras e Culturas Lusófonas, nº 14, Jul-Set 2001. Lisboa: Instituto Camões.

Nestas linhas buscaremos encontrar elementos de conexão entre as formas artísticas identitárias timorenses, o seu artesanato, pintura, escultura ou ourivesaria3 com a sua literatura oral. Trata-se de perceber o que está na génese das expressões artísticas, do património cultural material, de compreender a sacralidade que determinados objectos têm entre os timorenses. Para atingirmos os nossos propósitos recorremos ao património imaterial, ou melhor, imergimos no extenso baú da literatura timorense, particularmente nas lendas e mitos, tentando encontrar aí a chave dessa sacralidade, desse mundo lúlik, pois entendemos que as representações artísticas timorenses nascem num imaginário ancestral de que a literatura oral é retrato privilegiado, como bem notou Cinatti:

E assim por diante, numa sucessão cognitiva, em que a linguagem visual se transforma em linguagem de signos e símbolos. O artífice timorense funciona como repositório e veículo de uma cultura especificamente afeiçoada ao esquema mental do grupo a que pertence. (Cinatti, 1987: 66)

Se fizermos uma incursão num mercado tradicional de artesanato veremos esteiras, tais (panos tradicionais), surik (espadas), belak (espécie de grande medalhão em forma de lua), kaibauk (diadema em forma de crescente lunar) keke (pulseira grossa), entre outros. Estes objectos tradicionais são também usados no chamado barlaque4- troca de presentes entre as famílias dos noivos.

Também as uma lúlik (casas sagradas) guardam objectos lúlik ± espadas, objectos em ouro ou prata, pedras, tais ± que foram sendo preservados de geração em geração e que representam determinado clã ou família, são forma material identitária, expressão que garante o perpetuar da cultura dos avós, não os deixando morrer:

A uma lulic é uma das casas mais importantes de qualquer localidade de Timor. Os objectos nela depositados são os testemunhos materiais da memória histórica do local e dos seus habitantes e na qual se entrelaça a protecção espiritual. (Oliveira, 2003: 46)

Aliás há famílias de origem aristocrática que possuem, também, este género de relíquias antigas, muitas vezes, extremamente valiosas, pois, no passado, possui-las era sinónimo de poder, riqueza e nobrezD³8PKRPHP nobre, bem como um guerreiro, deviam exibir esse estatuto através das jóias usadas no corpo. Na cabeça usaria um kaebauk, um diadema em forma de crescente, no peito um ou mais belak, um disco metálico, nos                                                                                                                

3 Em 1522, o italiano António Francisco António Pigafetta, cronista da Armada de Fernão Magalhães, descreveu o encontro com os chefes nativos de Amaban e Balibó (Timor Ocidental), referindo que as mulheres andavam nuas e que possuíam adornos e amuletos de ouro e bronze e que os homens exibiam ainda mais jóias de ouro que as mulheres. (cf. Carlos Ximenes Belo, 2013, Os Antigos

Reinos de Timor-Leste, Porto: Porto Editora).

braços braceletes e manilhas de prata´ 2OLYHLUD 1RHQWDQWRPXLWRGHVWHLPSRUWDQWHSDWULPyQLRIRL adquirido por militares e funcionários portugueses, indonésios e australianos5. Cinatti afirma que, em 1962:

a Casa de Timor exibia um variado mostruário: panos de Ocussi, cestaria (as disputadas cigarreiras), objectos em corno de búfalo e em latão (o crocodilo voador de Viquéque, as figurinhas de Lolotoi), ourivesaria de Atsabe e de Suai, barcos de tartaruga e madeira made in Tutuala e Atauro, pentes-diadema de Bazar Tete. (Cinatti, 1987: 15)

Muitas destas peças de artesanato podem, agora, ser vistas nos Museus do Oriente, em Lisboa, das Civilizações Asiáticas, em Singapura, em museus australianos ou em lojas de antiguidades indonésias.

Haverá alguma relação entre essa panóplia de objectos ancestrais e alguns elementos das narrativas orais? As lendas e contos timorenses apresentam, muitas vezes, alguns desses objectos ± por exemplo, espadas - como protagonistas de batalhas ancestrais, enquanto aliadas do homem na sua luta pela sobrevivência, no seu combate contra cataclismos, mas, também elementos figurativos ou decorativos ± veja-se casos de penas de galo ou pêlos de animais, cabritos ou cães, a título de exemplo. Importa pois perceber essa íntima relação, já que essa conexão não surgirá do acaso, antes fruto de um imaginário sempre à procura de explicações para a origem das coisas, pronto a fantasiar e a revelar o porquê de certos fenómenos ou acontecimentos. Estaremos perante um processo de simbiose, de articulação harmónica entre as artes ± ourivesaria, escultura, pintura e literatura - que agrega toda essa simbologia, que é expressão e resultado de um imaginário que pode ser delimitado e marcado enquanto timorense? Ou serão a pintura e a escultura artes retrato de uma literatura oral primeira onde surgem as estórias, as narrações que têm como protagonistas esses seres, paisagens e objectos lúlik? Ou como destacou Paulino, no seu resumo da comunicação apresentada na Universidade de Timor /RURVD¶HHP$JRVWRGH:

É neste sentido que, todos os objectos lulic, os artesanatos e paisagem timorenses foram baptizados como artes ou obras de artes. No entanto, haverá uma escultura, que merece este nome, caracterizadamente timorense? Não pode hesitar a dizer que sim, e aceita controvérsia serena se alguém, mais entendido, pretende convencer o contrário, por isso, não se pode entender apenas a imaginária que comanda a escultura timorense, nem ossatura das obras que a evidenciam, sem se conhecerem os lulic que influenciam a alma timorense, a intensidade passional das crenças populares e os seus ritos agrários e fúnebres.(Paulino, 2014, Agosto)

                                                                                                               

5Confronte-se magnífica edição de Joanna Barrkman (s/d), Husi bei ala Timor sira nia liman ± From the hands of our ancestors ± Arte

no artesanatu Timor-Leste ± The art and craft of Timor-Leste. Museum and Art Gallery Northern Territory, Austrália, in partership with

Direcção Nacional da Cultura, República Democrática de Timor-Leste, onde podem ser vistas imagens das artes e artesanato timorenses.    

Elementos que são a porta que deve ser aberta para se compreender a cultura e identidade timorenses. Elementos que não têm apenas um carácter sagrado, sendo, também objectos de uso prático e frequente, ID]HQGR SDUWH GR TXRWLGLDQR GRV WLPRUHQVHV H GDV VXDV DFWLYLGDGHV GRPpVWLFDV DJUtFRODV H O~GLFDV ³RV timorenses são artistas artífices e a sua arte não é meramente decorativa, mas é uma aplicação que tem uma IXQomR SUiWLFD´ &LQDWWL    7UDWDUHPRV GH DSUHVHQWDU DOJXQV GHVVHV HOHPHQWRV ID]HQGR D VXD contextualização social, analisando o seu impacto cultural, tendo por alicerces os relatos orais onde eles estão presentes. No fundo há aqui um imaginário comum que é o grande alimentador da produção artística traduzida em imagens de astros, árvores, crocodilos, búfalos ou aves na tecelagem, ourivesaria, pintura ou escultura e que, concomitantemente, desfia lendas e mitos que agregam também esses mesmos elementos ou motivos como personagens. Narrativas e objectos que pretendem, mais do que deixar na memória dos vivos as tradições dos antepassados, criar uma corrente que ligue ininterruptamente esses dois mundos:

Mas a memória oral do passado distante é complementada por memórias físicas, objectos que relembram a presença constante dos espíritos antepassados na comunidade. Estes denominam-se objectos lulic que, numa tradução simples, podemos designar como sagrado, algo em contacto com o outro mundo, mas que pode influenciar decisivamente a vida no mundo real. (Oliveira, 2003: 45)

A Memória individual e colectiva é permanentemente alimentada por esse imaginário ancestral, que se reactualiza quotidianamente, recorrendo, para tal, a expressões literárias e artísticas, veículos simbólicos privilegiados, imagens identitárias de determinada comunidade ou clã. Memória que tem nas artes plásticas, no artesanato e na literatura oral os seus guardiões, imagética carregada de animais como o galo, o búfalo ou o crocodilo, de árvores lúlik ou de astros, elementos figurativos presentes em peças de artes como a ourivesaria, a escultura ou a pintura, elementos que o homem timorense usa no vestuário, na decoração, na arquitectura ou aquando de rituais ligados ao sagrado, mas também na dança ou em actos cerimoniais. Objectos ou peças de ornamentação reveladores de um orgulho muito próprio em pertencer a determinado grupo, em descender da Lua e do Sol, da águia, do crocodilo, ou do gondão. Objectos a que daremos especial atenção nas próximas linhas. Objectos, marcas materiais, como o bélak, o kaibauk, as espadas ou o tais, que encontramos também no lendário fundacional, havendo assim uma confluência de elementos simbólicos que podemos considerar, deste modo, marcadamente, identitários.

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No documento Relatos fundacionais do imaginário timorense (páginas 135-139)