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C APÍTULO XVIII O S BELAK E KAIBAUK OU A UNIÃO DO S OL COM A L UA

No documento Relatos fundacionais do imaginário timorense (páginas 153-157)

Aludimos já em cima ao facto de alguns dos grupos étnicos timorenses se dizerem descendentes do Sol e da Lua. Vimos também que os povos Fataluku e Makasae se referem a Deus pelos nomes Uruvatchu (Uru, Lua + Vátchu, Sol) e Uruuato (Uru, Lua + Uato, Sol), respectivamente. Na altura da criação do mundo esses filhos do Sol e da Lua apareceram vindos do interior da Terra, segundo alguns povos Fataluku, na região de Tutuala, ponto mais a leste de Timor, e em linguagem metafórica do seu imaginário considerada a cabeça do corpo 7HUUD³2V0DKRH$PDtUDILOKRVGRVROIRUDPRVREUHLURVGHVVHFDQDOTXHUHFHEHXRQRPHGH7elu-Mire. E, vinda do ovário da terra, a criação humana apareceu em Ili-.HUHNHUHMXQWRGRPRQWH5RVVLOL´(Gomes, 1972: 44) Os povos Bunak tratam o Sol por Mãe e a Lua por Pai e alguns sacerdotes animistas de Ataúro ornamentavam o corpo com tatuagens de astros, exemplos enunciados que comprovam a filiação e veneração prestada aos astros por estes povos.

Procurando uma aproximação e união constantes aos seus pais, ao mundo do alto ou dos astros, os povos timorenses expressam essa reverência e esse fascínio de diferentes formas. Encontramos relatos que nos denunciam isso mesmo, seja o Sol enquanto fornecedor de luz ou de fogo, seja a Lua marcadora do tempo, ou os dois como responsáveis pela fertilidade e boas colheitas. Também na música, na pintura, na escultura ou na dança vemos esses elementos como protagonistas.

Mas é na joalharia e ourivesaria que o imaginário timorense melhor retrata a sua atracção e associação aos astros. O belac e o kaibauk representam o Sol e a Lua, respectivamente, e estão entre os adornos mais característicos e distintivos da aristocracia timorense. Se olharmos para fotografias do período colonial ou se assistirmos, nos nossos dias, a uma cerimónia oficial, a um dia festivo, encontraremos, certamente, estes dois símbolos no peito e na testa de chefes nativos ou dos seus descendentes. Objectos ainda hoje vendidos a turistas nos mercados tradicionais de Díli. Mas já no século XVII existem referências a esses adornos por parte de mercadores e missionários que visitavam a ilha. Frei Agostinho de S. Pascal obrigado a aportar nas ilhas de Flores e de Timor, descreve assim o vestuário dos povos nativos:

Além disso, os chefes [...] atam ao pescoço uma lâmina redonda de ouro redonda, a maior que puderem trazer; atam o cabelo no cimo da cabeça e aí colocam um pente de bambu, geralmente com umas plumas de galo e outro adorno de flores GH VHGD GH YDULDGDV FRUHV TXHYHP D VHU DPRGR GH SHQDFKR H GHSRLV HQFDVWHODP QD WHVWD XPDPHLDOXD GH RXUR ³GH

SRQWDV SDUD FLPD´ H QRV WRUQR]HORV WUD]HP XPDPDnilha, feita de palmeira, de quatro dedos de largura e por debaixo dos joelhos, umas barbas de bode, que caem sobre as pernas; este é o modo de trajar dos homens. (Menezes, 2006: 32)

Conta o Mito do Crocodilo, como vimos, que o menino transportado no dorso do anfíbio, ao vê-lo transformar- se em terra por sobre ela caminha ornamentado com um bélac ao pescoço, grande medalhão que simboliza o astro rei, seu pai, aquele que possibilitou a sua existência e nobreza:

o belak é um adorno exclusivamente masculino H DSHVDU GH WUDGLFLRQDOPHQWH VH GHVLJQDU HP SRUWXJXrV FRPR ³OXD´ representa de facto o disco solar. Trata-se de um símbolo de prestígio e também de masculinidade, não havendo limites para o número de discos que um timorense pode usar no peito. O mito indica que o primeiro timorense que veio no dorso do crocodilo que se transformou na ilha recebeu um disco brilhante no mesmo momento em que a ilha se criou, sendo isto sinal da sua passagem para a idade adulta. (Oliveira, 2003: 49)

Ainda hoje, mesmo em tempos de democracia e em que restam apenas vestígios da velha aristocracia, o bélac caracteriza, talvez, da melhor forma, a realeza, o poder do elemento masculino, a nobreza de quem o transporta ao peito. Era e continua a ser objecto de prestígio e de oferta aquando de casamentos ou como IRUPDGHDJUDGHFLPHQWRRXGHHOHYDGDFRQVLGHUDomR³9HQGRTXHQmRHUDSRVVtYHOVXEMXJDU/DFO~EDU')pOL[ foi a Lifau queixar-se de Uci-Léqui-Tuc ao Governador. Levou-OKH GH SUHVHQWH XPD OXD GH RXUR´ 3DVFRDO 1967: 256) D. Aleixo Corte Real, régulo de Suro, Ainaro, quando se deslocou a Portugal, por alturas da Exposição Colonial do Porto, em 1934, levou a sua mais valiosa lua de ouro como adorno, a Pill-Solai (lua- cobra). (cf. Pascoal, 1967: 119) Vemos ainda actualmente esses descendentes de chefes nativos a ostentar essas preciosidades herdadas de tempos ancestrais. Em muitas danças e cerimónias tradicionais ou comemorativas encontramos bailarinos ou figurantes com belác ao peito.

Intimamente conotado com a Lua está o kaebauk, adorno usado por homens e mulheres, enquanto elemento ligado ao poder ancestral e a rituais mágico-religiosos. Em forma de crescente e muitas vezes com pedras incrustadas ou motivos como crocodilos, pássaros, estrelas, estabelece no imaginário timorense o par exemplar do bélac, já que os dois simbolizam os opostos feminino/masculino ou Lua/Sol, a união perfeita, os deuses progenitores dos povos timorenses:

O kaebauk é um dos adornos mais característicos de Timor e comporta diversos significados mágico-religiosos. Um kaebauk simples apresenta uma forma de crescente que se identifica com a Lua, em oposição ao belak no peito que representa o Sol, em conjunto as duas peças simbolizam Deus, Maromak, identificado na cosmogonia timorense pelos pares opostos homem- mulher, Sol-Lua. O kaebauk é ainda identificado com a representação do barco dos antepassados originais. (Oliveira, 2003: 49-50)

Bélac e kaibauk, elementos de forte carga identitária e cultural, que são os representantes maiores do poder de determinado reino ou clã. Os seus portadores procuraram através deles distinguir-se dos demais e impressionar quem os via com tão belos ornamentos, próprios de figura real, marcando, claramente, poder e nobreza, descendentes assumidos dos deuses celestes.

Concluindo, procuramos aproximar as artes timorenses aos relatos orais, escolhendo aqueles objectos ou artefactos que nos parecem mais característicos e representativos1, constatando que, apesar das diferenças

entre os vários grupos étnicos, há um imaginário comum que se expressa nessas formas artísticas. Imaginário intimamente conectado com a identidade não fosse esta resultante das suas manifestações diferenciadoras, das suas formas materiais e imateriais. Constatamos ainda a existência de uma série de objectos de uso quotidiano, mas, simultaneamente, podendo ganhar carácter lúlik, dado o seu percurso, a sua participação em facto relevante (mito de origem, guerra geradora de nova ordem, fundação de clã). Objectos, por isso, guardados por sacerdotes, de geração em geração, na uma lúlik, espaço nuclear do imaginário dos povos timorenses, espaço onde o tempo se funde e onde se comunica com o passado, com os ancestrais, num continuum que faz perdurar orações, rituais, genealogias, lendas e mitos, eles sim os verdadeiros pilares da identidade timorense.

                                                                                                               

1      Não é certamente por acaso que na capa do livro Os Mitos e a Imaginação Contista no Estudo das Origens do Povo Timorense, de Correia de Campos (1973), surja um chefe timorense vestido com tais, empunhando uma espada e tendo por adornos um belac ao peito e um kaebauk na cabeça.  

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No documento Relatos fundacionais do imaginário timorense (páginas 153-157)