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Quaisquer que tenham sido o momento e as circunstâncias do seu aparecimento na escala da vida animal, a linguagem não pôde nascer senão de repente. As coisas não se puderam pôr a significar progressivamente. Na sequência de uma transformação cujo estudo não depende das ciências sociais, mas da biologia e da psicologia, efetuou-se uma passagem de um estado em que nada tinha um sentido a um outro em que tudo o possuía (...) Por outras palavras, no momento em que o Universo inteiro, de uma só vez, se tornou significativo, não foi, por isso, mais bem conhecido, mesmo se for verdade que o aparecimento da linguagem haveria de precipitar o ritmo do desenvolvimento do conhecimento.56

53 Segundo o livro, lançado em 2011, que reuniu este e outros contos, Rosa grafou o título deste

conto usando o alfabeto grego, mas é sob a forma transliterada em português que o conto é atualmente conhecido entre os estudiosos de Guimarães Rosa.

54 Em espanhol, escaques significa cada uma das casas do tabuleiro de xadrez ou dama. 55 ROSA. Antes das primeiras estórias, p. 66-67.

Em “Campo geral”, aquilo a que se assiste não é apenas a passagem da visão míope de Miguilim, preso no covoão entre dois morros, à repentina possibilidade do olhar que ocorre instantaneamente com a chegada das lentes dos óculos, mas também o aparecimento da linguagem, que como nos mostra Mayra Rodrigues Gomes, só pode ter se dado de uma só vez.

Tendo como ponto de partida o pensamento de Claude Lévi-Strauss, a autora nos lembra que, antes do signo, “o pensamento é como uma nebulosa”. Tudo o que havia então era o caos, não como barbárie, mas como o “indiferenciado”. Assim explica a autora:

É num corte sobre esse indiferenciado que a gênese se dá, pela divisão entre dia e noite, luz e trevas. A metáfora óptica a que podemos recorrer é a da escuridão total, um mar impreciso, nem isso, nem aquilo, nem nada. De repente, a luz incide sobre esse campo amorfo recortando elementos, fazendo saltar aos nossos olhos todas as coisas, que emergem pipocando num banho de cor. Donde a pertinência das palavras bíblicas: ‘Faça-se luz’.57

A “metáfora ótica” usada pela autora muito se aproxima de passagens que compõem “Campo geral”. Local onde o escuro predomina, não só o escuro da mata do Mutum que tanto amedronta Miguilim, mas também o escuro do corpo de Mãitina — “preta encoberta, como que deve de ser a Morte”.58 E é nesse escuro que habita a figura

do vaga-lume em “Campo geral”, tanto enquanto uma possibilidade para a criança que quer guardá-los vivos em baixo da cama, como enquanto uma imagem fugaz que logo se apaga.

Lá era sem luz, mesmo de dia quase que só as labaredas mal alumiavam. Miguilim era mais pequeno, tinha medo de tudo, chegou lá sozinho para espiar, não tinha outra pessoa ninguém lá, só Mãitina mesmo, sentada no chão, todo o mundo dizia ela feiticeira, assim preta encoberta, como que deve de ser a Morte. Miguilim esbarrou, já estava com um começo de dúvida, daí viu, os olhos dele vendo: viu nada, só conheceu que o escuro estava sendo mais maldoso, em redor — e o treslinguar do fogo — era uma mata-escura, mato em que o verde vira preto, e fogo pelejava para não deixar aquilo tomar conta do mundo, estremeciam mole todos os sombreados.59

Apesar de todo o cuidado tomado ao longo da produção do filme, que, segundo Kogut, evitou os lugares comuns que poderiam criar uma ideia folclórica do sertão — uma vez que os próprios moradores locais pareciam privilegiar objetos e hábitos 57 GOMES, Mayra Rodrigues. Jornalismo e ciências da linguagem, p. 33.

58 ROSA. Manuelzão e Miguilim (Corpo de baile), p. 61. 59 ROSA. Manuelzão e Miguilim (Corpo de baile), p. 61.

antigos a fim de construir um sertão mítico, distante do espaço real que habitavam em 2007, ano em que o filme foi produzido — o local da filmagem é ainda assim um espaço que não parece participar da dita sociedade do espetáculo, anunciada por Guy Debord em 1967.60

As imagens que povoam o imaginário local decorrem unicamente da experiência direta de seus moradores e não de uma experiência mediada via meios de comunicação de massa. Ao que tudo indica, não há jornal ou televisão no local. Talvez por isso o próprio tempo do filme incorpore um passo menos acelerado, respeitando o ritmo das ações cotidianas do local, sem privilegiar grandes acontecimentos. Não se trata de buscar o clímax ou o anti-clímax da história, mas da percepção sensorial de Thiago (Miguilim) em relação a sua família e ao espaço onde passou sua infância.

A luz usada nas cenas noturnas de Mutum, mais do que criar a sensação de um lugar isolado — sem acesso à eletricidade — permite que o filme de Sandra Kogut seja visto como um encontro entre a vida dos envolvidos no processo de produção e a literatura rosiana. As crianças escolhidas para participar do filme deveriam, segundo a diretora, manter suas identidades intactas e viver, durante o processo de filmagem, um encontro com os personagens de “Campo geral”.

Para Kogut, foi o desejo de respeitar a “verdade interna do filme” que a levou a manter os personagens com os nomes dos próprios atores. “Não é o Thiago interpretando Miguilim”, conta a diretora, “é o próprio Thiago que está ali; seria falso chamá-lo de qualquer outro nome”. Assim, em Mutum, o espaço fílmico pode ser visto como o local de encontro entre Thiago, que vive no Morro da Garça,61 de onde saiu para viver a

experiência do cinema (inicialmente como ator e depois como espectador), e Miguilim, personagem da novela “Campo geral”.

A partida de Thiago do Morro da Garça para o cinema em Berlim ecoa, de certa forma, a saída de Miguilim do Mutum, com seus óculos, para a cidade e evidencia uma das seis potências da literatura que Ítalo Calvino reivindicou para nosso milênio: a leveza. Segundo Calvino, é preciso pensar “a literatura como função existencial”.

Para enfrentar a precariedade da existência da tribo — a seca, as doenças, os influxos malignos —, o xamã respondia anulando o peso de seu corpo, transportando-se em vôo a um outro mundo, a um outro nível de percepção, onde podia encontrar forças capazes de modificar a realidade. Em séculos e civilizações mais próximos 60 DEBORD. A sociedade do espetáculo.

61 Como já mencionado no capítulo anterior, o Morro da Garça é personagem de “O recado do

de nós, nas cidades em que a mulher suportava o fardo mais pesado de uma vida de limitações, as bruxas voavam à noite montadas em cabos de vassouras ou em veículos ainda mais leves, como espigas ou palhas de milho.[...] Tal é o dispositivo antropológico que a literatura perpetua.62

A viagem de Thiago, que nunca havia saído do lugarejo onde vivia, para o festival de cinema de Berlim, onde Mutum foi exibido em 2008, pode ser pensada como uma decorrência do próprio texto literário que, ao contrário da fixidez, tem a mobilidade e a transformação como aspectos perceptíveis.