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Fica todo olhando para a tristeza não, você parece Mãe.63

O que pode ser encontrado pelo espectador do filme aqui em questão é o Mutum enquanto referência ao satori, ou ao “vazio de fala que constitui a escritura”, e não o Mutum cidade do interior de Minas Gerais que, enquanto espaço da realidade palpável, sequer foi visitada pela equipe de filmagem.

Se o Mutum aqui tratado refere-se à experiência da infância e ao momento da aquisição da linguagem, ele só pode existir de forma ficcional, a partir de um olhar insistente que não deixe de seguir os lampejos dos vaga-lumes. Assim como a própria rememoração, o Mutum também se constitui como uma construção artificial, dada a partir do cruzamento de lembranças de vários sujeitos.

Vimos com Roland Barthes, em “Naquele lugar”, que aquilo nomeado por ele como “Japão” é um sistema formado por “certo número de traços (palavra gráfica e linguística [...])”,64 sem qualquer pretensão de se remeter ao Japão

enquanto espaço geográfico representado no mapa-múndi. O mesmo ocorre aqui com a palavra Mutum, que não se refere à cidade do interior de Minas Gerais, embora alguns espectadores possam ver no filme aspectos deste local. Logo após o lançamento de Mutum, um blog trazia depoimentos de internautas moradores de Mutum que se sentiram orgulhosos ao ver um filme “sobre” a cidade onde moravam.

Assim como Roland Barthes não fotografou o Japão, mas escreveu O

império dos signos a partir do que seu olhar permitiu perceber, Kogut também 62 CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio, p. 39.

63 ROSA. Manuelzão e Miguilim (Corpo de baile), p. 73. 64 BARTHES. O império dos signos, p. 7.

se desvia da proposta da representação e se aproxima de uma produção que privilegia a memória e a potência dos gestos. Não se tratava de filmar as imagens evocadas pelo texto literário como uma forma de representar sua história. A esse respeito expõe Barthes:

O autor jamais, em nenhum sentido, fotografou o Japão. Seria antes o contrário: o Japão o iluminou com múltiplos clarões; ou ainda melhor: o Japão o colocou em situação de escritura. Essa situação é exatamente aquela em que se opera certo abalo da pessoa, uma revirada das antigas leituras, uma sacudida do sentido, dilacerado, extenuado até o seu vazio insubstituível, sem que o objeto cesse jamais de ser significante, desejável. A escritura e, em suma e à sua maneira, um satori: o satori (o acontecimento Zen) é um abalo sísmico mais ou menos forte (nada solene) que faz vacilar o conhecimento, o sujeito: ele opera um vazio de fala. E é também um vazio de fala que constitui a escritura [...].65

65 BARTHES. O império dos signos, p. 10.

FIG. 15:O ideograma “MU”, que se refere ao Nada, ao Vazio, ao Vácuo, é também testemunho tumular no Japão. Esse ideograma encontra-se, por exemplo, na lápide do cineasta Yazujiro Ozu.

É mais provável que o “Mutum”, tanto para Rosa, quanto para Kogut, esteja ligado à sua raiz “Mu” e à possibilidade de acesso à memória e ao imaginário que esse termo propõe mais do que a “Mutum” enquanto espaço geográfico do sertão mineiro. Assim como a Atlântida ou a Lamúria, Mu é também o nome dado a um suposto continente perdido no Pacífico, segundo o inglês James Churchward (1850- 1936), que escreveu vários livros tentando comprovar que a origem do homem e da cultura liga-se ao continente desaparecido de MU, engolido pelas águas.

O mito (ou não) de Mu começou oficialmente em 1926 quando o explorador britânico, um antigo coronel de nome James Churchward entrou em contacto com um velho monge hindu que vivia num templo onde se conservavam umas tábuas de barro cobertas de caracteres desconhecidos. O monge terá contado ao coronel que estas tábuas contavam a história de um continente desaparecido há 25 mil anos e que era povoado por uma civilização cuja sofisticação técnica ultrapassava a compreensão atual. O continente, Mu, teria sido engolido pelas águas do Oceano numa única noite depois de ter sido minado pela atividade constante de vulcões subterrâneos. Terá então sido encontrado o continente perdido de Mu? 66

66 http://movv.org/2009/09/14/a-cidade-submersa-de-yonaguni-japao-restos-do-continente-

perdido-de-mu/

FIG. 16: Localizado entre a América e o Oriente, um suposto continente perdido por abalos sísmicos assemelha-se às camadas perdidas da memória, cuja reconstrução só pode ser operada de maneira ficcional, não perdendo, com isso sua potência. Fonte: http://avelf.wordpress.com/2011/06/25/mu-continente-perdido/

O próximo capítulo buscará traçar as relações que a terra e a língua guardam com a memória e o esquecimento. Se o aparecimento de uma língua ou de uma imagem relaciona-se à experiência do espaço vivida pelos sujeitos, Mutum, nome de cidade, cuja raiz remete ao mito do continente perdido, coloca-se como um possível espaço de reflexão sobre o processo de aparecimento/desaparecimento da língua.

Em sua reflexão sobre a língua, o pesquisador canadense e tradutor de obras de Agamben para o inglês, Daniel Heller-Roazen, também se refere a um continente mítico. Porém, o desaparecimento da terra que afunda no oceano aqui é colocado em contraponto ao processo sofrido pelas línguas, cujo desaparecimento ocorre de forma imperceptível. Assim afirma o autor:

No reino das línguas, os cataclismos, é óbvio, são exceções. É raro um idioma compartilhar do destino dos habitantes de Atlântida, que desapareceram para sempre, quando, como se presume, o continente mítico afundou no oceano. O mais freqüente é que o fim de uma língua não se dê de forma repentina, mas gradualmente, podendo ser tanto mais decisivo por acontecer quase que imperceptivelmente. 67

3 Con-fusão