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A literatura parece possuir, ainda, a capacidade de escrever a história de cada sujeito que com ela se encontra, expandindo seu arquivo sensorial, consequentemente alterando seus desejos, e possivelmente seu percurso. De certa forma, a operação tradutória ocorrida na realização do filme Mutum comprova tal premissa. Como afirma Heller-Roazen,

[...] a historiografia das línguas não é diferente da biografia dos indivíduos. No final, é a página em branco que explica o resto, e caso se queira estabelecer, para além de qualquer dúvida, quais traços comuns são o resultado de uma mesma herança hereditária, não há saída melhor do que inventar algum parente famoso cuja existência seja necessária, ainda que irreal. Nenhum álbum de família pode estar completo até que contenha imagens de um passado não lembrado, e na linha temporal das línguas não se vai a lugar algum até que se pare, ao menos por um momento, para redesenhar uma fala já há muito esquecida.73

Pode parecer, inicialmente, que foi a lembrança/esquecimento do texto rosiano guardada por Kogut, enquanto leitora de Rosa, o que possibilitou a existência do filme (foi isso o que a mobilizou a gravar em película as lembranças sensoriais que “Campo geral” lhe provocara); no entanto, o que o processo de execução do filme revela é que este não é o resultado do desejo de um indivíduo, mas um desdobramento decorrente da potência do próprio texto, que mobilizou diversos indivíduos, tanto atores como espectadores. Além disso, ao longo do percurso, novas relações se estabelecem entre imagem literária e imagem fílmica.

Ao mesmo tempo em que a permanência do texto é ampliada, sua forma fílmica altera também o percurso dos indivíduos que participam desse processo. Não é só o texto que vive uma metamorfose, mas também aqueles que se misturam 73 HELLER-ROAZEN. Ecolalias, p. 96.

com suas imagens, assim como o espectador do filme de Kitano aqui mencionado. A forma fílmica encontrada não altera apenas o texto literário, mas também os atores, leitores e espectadores que, em algum ponto, cruzam seu caminho com a trajetória por ele percorrida.

Nós também somos afetados pelo processo tradutório, porque enquanto “databases viventes de imagens”, como lembra Agamben ao citar o vídeo-artista Bill Viola, “as imagens [que] vivem dentro de nós [...] não cessam de se transformar e crescer”,74. Depois da participação em Mutum, os atores João Miguel (pai de Thiago)

e Rômulo Braga (Tio Terêz) participam no primeiro longa-metragem dirigido por Vinícius Coimbra, A hora e a vez de Augusto Matraga, sendo João Miguel o próprio Augusto Matraga, enquanto Rômulo Braga interpreta Juruminho.

Essa é a segunda versão fílmica do conto homônimo que compõe o livro

Sagarana, de João Guimarães Rosa. A primeira versão, que também manteve o título do conto rosiano, foi dirigida por Roberto Santos em 1965. O ator Leonardo Villar, que interpretou o personagem Augusto Matraga na primeira versão afirma: “o meu Matraga não é definitivo. Existem muitos caminhos para fazê-lo. O meu caminho foi me apaixonar pelo personagem e ler muito Guimarães”.

Vencedor do prêmio de melhor ator no Festival Rio 2007 75 com o filme Estômago, o ator baiano João Miguel, antes de se tornar o pai de Thiago (Miguilim) em Mutum (2007), ou Augusto Matraga, em A hora e a vez de Augusto Matraga (2011) vive, no filme de Marcelo Gomes, outro personagem que o leva ao sertão para participar de um trabalho que supostamente traduzia a memória de seu diretor misturada ao universo do sertão. Em Cinema, aspirinas e urubus (2005), João Miguel interpreta Ranulpho. E como divulgado pela mídia, na época da exibição do filme, o Ranulpho real era tio-avô do diretor do filme, Marcelo Gomes. Sobre essa atuação, afirma o ator João Miguel:

[...] apesar de vir da memória do diretor, o personagem tocou muito a minha memória também. Eu morei na Paraíba durante dois anos e eu tenho uma relação muito forte com o Sertão. No cinema você está ali imprimindo muito do que você é também. De certa forma é a mistura da história dele com a minha.76

O encontro de Thiago com sua imagem na tela de cinema também pode ser visto como um desdobramento de um encontro literário que, mediado por vários

74 VIOLA. Citado por AGAMBEN. Ninfas, p. 21.

75 Mutum foi eleito o melhor filme, segundo o júri, no Festival Rio 2007.

leitores, trouxe a essa criança novas possibilidades, como, por exemplo, a ida do menino ao Festival de Berlim que, como brinca a diretora, começou a cavalo.77

Ao entrar em um cinema pela primeira vez, no Rio de Janeiro, Thiago inaugura sua experiência de espectador ao mesmo tempo em que se torna ator. Tal acontecimento inegavelmente possibilita ao menino um novo olhar sobre si mesmo, na medida em que traz nova camada à construção de sua história. Na tela, Thiago ecoa a experiência de Miguilim, ao mesmo tempo em que revê a própria identidade. É por seu nome — Thiago — que a criança é endereçada no filme.

Assim, ao despertar em Sandra Kogut o desejo de andar pelo sertão e partilhar sua experiência de leitura com as pessoas que encontra ao longo da viagem, “Campo geral” abre uma “passagem”, ou encontra sua “imagem”, possibilitando a pervivência da obra. Como afirma Pérez-Oramas, na apresentação do ensaio Ninfas, de Agamben, “toda palavra tem por iminência uma imagem, à qual serve como fundação; toda imagem tem por iminência uma palavra, que lhe serve como ressonância”, 78 não

havendo assim, entre elas, uma relação de original e cópia em nenhum sentido. Se no pensamento de Agamben a figura da “ninfa clássica” permite a “vida após a vida” (nachleben) das imagens — enquanto encarnação da “sobrevivência e alterforma que dá lugar à continuidade do visível” —, é possível pensar que o encontro do texto rosiano com os locais que guardavam ainda a sonoridade de sua língua permite o nascimento de Mutum. A partir da viagem da equipe de produção do filme pelo sertão o texto encontra sua nova forma. Esta garante a sobrevivência do texto ao ampliar sua permanência temporal e permitir sua expansão do ponto de vista espacial. É importante lembrar, entretanto, que em Mutum a metamorfose não é vivida apenas pela narrativa de Guimarães Rosa, mas, sobretudo, por sua poesia, que é o que investigamos aqui.