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Pode-se até dizer que, a partir do momento em que o significante (os falsos ideogramas de Masson, as missivas impenetráveis de Réquichot) se desliga de qualquer significado e abandona vigorosamente o álibi referencial, aparece o texto (no sentido atual da palavra). Pois, para compreender o que é texto, basta – mas isso é necessário – enxergar a ruptura vertiginosa que permite que o significante se constitua, se organize e esse expanda sem ser sustentado por nenhum significado. Essas escritas ilegíveis dizem-nos (apenas) que há signos, mas não sentido. 21

Assim como a imagem, o conceito de texto proposto por Roland Barthes encontra-se neste espaço híbrido entre o que pode e o que não pode ser revelado. O autor lembra que na escrita o significante pode desvincular-se completamente do significado.

Se considerarmos a percepção de Miguilim, tanto sonora, quanto visual, como este momento entre o semiótico e o semântico, ou seja, entre o que pode apenas ser 20 CAIXETA; GUIMARÃES. Pela distinção entre ficção e documentário, provisorialmente.

Introdução, p. 42.

reconhecido sem atribuição de sentido e a linguagem articulada propriamente dita, como mostrado no capítulo anterior, podemos afirmar que o Mutum, esse “covoão”, “em buraco de mato”, refere-se à própria escrita, já que esta, assim como a imagem, é também um local híbrido entre a pura presença de significantes e a possibilidade de reconhecimento ou de produção de sentido, por parte do espectador, a partir do que se expõe e também daquilo que se esconde. Como expõe Roland Barthes:

[...] ao que tudo indica, a escrita às vezes (sempre?) serviu para

esconder o que lhe era confiado. Se a pictografia é um sistema simples,

especialmente claro, ao se passar para um sistema difícil, complexo, abstrato, diversificado em numerosos registros de grafismos, frequentemente no limite do indecifrável (ideografia cuneiforme), o que os escribas sumerianos abandonaram foi a legibilidade, em favor de certa opacidade gráfica. A criptografia seria a verdadeira vocação da escrita.22

Como nos mostra Wenders, no cinema, o ordenamento das imagens também pode ou não servir a uma suposta narrativa. O diretor conta que o caminho percorrido para produzir seus filmes em p&b não foi o mesmo usado para a produção de seus filmes coloridos. Para o primeiro grupo, ele teve como ponto de partida imagens que viu ou imaginou, ou ainda paisagens que encontrou, sem saber como acabariam esses filmes. Por outro lado, na produção dos filmes do segundo grupo, a história já era conhecida e as imagens é que foram buscadas em um segundo momento, como é o caso de Paris, Texas.

Embora possa parecer, à primeira vista, que Mutum, enquanto uma adaptação, tenha utilizado o segundo caminho explicitado por Wenders, o filme parece ter seguido o percurso de uma escrita que se traça a partir do próprio espaço. Se por um lado sua narrativa já tinha corpo na novela rosiana, por outro lado — e esse aspecto parece fundamental à execução de Mutum -, o filme foi construído a partir do local encontrado para locação e das pessoas selecionadas, sem que se tivesse tanto controle da forma como cada sequência seria por eles vivida.

Kogut pode ter percorrido o caminho proposto por Barthes, para quem, “visitar um lugar pela primeira vez é, assim, começar a escrever”.23 Dessa forma, Mutum pode ser visto como uma escritura feita por Kogut a partir do local encontrado no sertão mineiro e da memória que ela guardava do texto lido. Sobre a possibilidade de se encontrar um local, não a partir de um endereço escrito, mas da mobilidade do próprio corpo e do olhar de quem busca a localização, Barthes 22 BARTHES. Inéditos. vol. 1: teoria, p. 190.

afirma algo que talvez ilumine a forma seguida por Kogut para propor sua inscrição de Mutum, enquanto espaço presente em “Campo geral”. Assim afirma Barthes:

Essa cidade só pode ser conhecida por uma atividade de tipo etnográfico: é preciso orientar-se nela, não pelo livro, pelo endereço, mas pela caminhada, pela visão, pelo hábito, pela experiência; toda descoberta é aí intensa e frágil, só poderá ser reencontrada pela lembrança do rasto que deixou em nós: visitar um lugar pela primeira vez é, assim, começar a escrever: como o endereço não está escrito, é preciso que ele funde sua própria escritura.24

Assim, os planos em Mutum não se limitam a re-construir a narrativa de “Campo geral”. Antes, em sua própria materialidade, cada plano guarda o encontro entre a memória dos atores e a dos realizadores envolvidos em sua elaboração. Não só porque o filme teve seu primeiro roteiro escrito a partir da memória da diretora, dez anos após a leitura da obra (Kogut escreveu a primeira versão do roteiro, propositalmente, sem recorrer ao livro), mas também porque a imagem no cinema pode facilmente operar como um local de passagem ao fato rememorado.

Ao redigir cenas que trouxessem à tona as sensações guardadas a partir do texto lido, Kogut propõe uma imagem fílmica que respeite a imagem como um desdobramento da rememoração. E talvez por isso o filme possa ser observado a partir de planos específicos, e não necessariamente da sequência de suas imagens ou do relato narrativo por ele construído.

A imagem, por sua vez, enquanto local de encontro, permite que os espectadores também lancem ali suas lembranças e esquecimentos, tanto do texto literário lido, quanto de qualquer outra experiência por eles vivida. Como nos mostra Walter Benjamin:

[...] um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois. Num outro sentido, é a reminiscência que prescreve, com rigor, o modo de textura. Ou seja, a unidade do texto está apenas no

actus purus da própria recordação, e não na pessoa do autor, e muito menos na ação.25

Um plano no cinema, como qualquer imagem, não possui necessariamente um sentido em si. A narrativa que se constrói a partir de uma dada sequência de imagens, como qualquer ficção, não passa de um artifício. Como bem provou Wenders em 24 BARTHES. O império dos signos, p. 51.

seu livro A lógica das imagens, as histórias são mentiras necessárias à sobrevivência dos homens. Tal como nossas experiências ou sensações, as imagens também não existem como partes de uma narrativa. Essas são construídas posteriormente na tentativa de se conferir sentido à vida.

Assim, independente de estarem inseridas em uma representação narrativa, as imagens em um filme podem traduzir as experiências vividas por seus espectadores, experiências que, assim como as imagens, são destituídas de sentido. E a partir desse encontro, algo pode ser revelado. E é também isso que constitui a imagem fílmica: a possibilidade de atribuição de sentido.

Não só a narrativa possibilita a criação de sentido. Na sequência aqui mencionada do encontro de Jane e Travis, o que traz potência à cena não é o diálogo que revela o passado dos personagens, mas o encontro na tela-espelho do peep-

show, ou seja, é a própria imagem do cinema que ali é demandada, e não a narrativa exposta.

A sequência aqui citada, em que o movimento da janela do quarto de Thiago altera a iluminação, sutilmente aproxima o olhar do espectador da percepção passageira e sensorial de seu protagonista. Thiago não parece ver racionalmente o Mutum. Ao contrário, ele guarda vagas impressões e perguntas sobre o espaço que o rodeia.

O trecho que antecede o plano citado, com a alternância da luz, no quarto de Thiago, enquanto o menino olha para o vazio, também deve ser mencionado pela alusão feita à imagem. O pai de Thiago, junto com Luisaltino, procura algo pela mata e, como nada encontra, caçoa da criança por ter saído dali correndo, desesperada e dizendo: “tem alguma coisa lá no mato!”

Posteriormente, o pai, a mãe, a avó e os irmãos, conversam sobre o acontecimento e perguntam a Thiago, em tom de deboche, se ele viu ali uma assombração, uma onça ou o “homem da capa preta”. O pai chama a atenção para os olhos arregalados do menino e termina a sequência dizendo: “ê menino perturbado!”

Na língua Kayapó, a palavra utilizada para designar imagem, foto e filmes é

mekaron. Mesmo termo que se aplica a alma, duplo e espírito. Diego Madi Dias, em “Três paradigmas para pensar o vídeo entre os Kayapó”, mostra que, de fato, essas duas concepções não são distintas. Assim relata o autor:

Axuapé me contou que

na mata sozinho... ou então no meio da noite, quando você acorda e anda pra fora da casa e você vê o mekaron. O filme é a mesma coisa. O filme leva a pessoa pra outro lugar. E aí você pode ver essa pessoa em outro lugar. (diário de campo, 30-07-2010).26

Para os Kayapó, a imagem confunde-se com a noção de alma, já que, para eles, como esta, a imagem possui mobilidade e pode ocupar um local sem impedir que compartilhem com ela o mesmo espaço. Daí o fato do plano em Paris, Texas se referir à imagem de forma tão eficaz. No filme, a sobreposição dos planos remete-se à imaterialidade da imagem e o encontro dos personagens testemunhado no vidro- espelho é tão etéreo quanto a exibição do próprio filme.

Vale lembrar a reflexão feita por Jean-Louis Comolli diante do medo sentido pelos espectadores no Salão Grand Café, em Paris, diante da exibição, em 28 de dezembro de 1895, de A Chegada do Trem à Estação, dirigido pelos irmãos Lumière.27

Como pontua o autor, diante da primeira exibição pública e paga das imagens em movimento, os espectadores não saíram correndo da sala porque sentiram medo de ser atropelados pelo trem. O que os assustou foi ver um acontecimento duplicado pela imagem e deslocado para outro local, exatamente como um duplo daqueles que se viam projetados na tela.

No cinema contemporâneo, o duplo não se resume ao registro de um momento vivido eternizado pela imagem, mas abre-se à perspectiva da sobreposição de imagens. O que o espectador vê na tela — que também pode ser pensada enquanto um espelho (como vimos com Wim Wenders) — é uma imagem capaz de sobrepor, ao que foi filmado, a experiência vivida por aquele que assiste à projeção.

O que é duplicado e deslocado pela imagem, portanto, não é apenas o acontecimento filmado, mas a experiência vivida por quem se dispõe a olhar as imagens filmadas. É essa continuidade da experiência vista na tela que assusta o espectador, conferindo à imagem uma potência fantasmagórica.

Assim, em uma suposta adaptação fílmica, o alinhamento entre texto e imagem pode ser ampliado por outra camada: a que não é vista por todos no espaço público, mas por cada um isoladamente, já que se trata do imaginário do sujeito-espectador. A partir dessa perspectiva, a tela no cinema pode sobrepor ao desdobramento do texto a continuidade das experiências vividas pelo espectador, fazendo da imagem fílmica um ponto de encontro entre o espectador e o texto literário.

26 DIAS. Catálogo do 15º festival do filme documentário e etnográfico/fórum de antropologia,

cinema e vídeo, 2011, p. 323.