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Aplicação concomitante das Leis Penais e da Lei nº 10.216 de 2001: pontos

7. SISTEMA DE DETERMINAÇÃO DAS MEDIDAS DE SEGURANÇA NO DIREITO

7.4 P ERICULOSIDADE

7.5.4 Aplicação concomitante das Leis Penais e da Lei nº 10.216 de 2001: pontos

Com a promulgação da Lei nº 10.216 de 2001, além dos aspectos garantistas aos direitos dos portadores de transtorno mentais, incluindo os passíveis das medidas de segurança, algumas questões relevantes e conflitantes emergiram ao relacioná-la ao Direito Penal, Direito Processual Penal e Lei de Execução Penal.

É pacífico em todos os Tribunais, inclusive superiores, o reconhecimento da Lei de Reforma Psiquiátrica aplicável à execução das medidas de segurança, principalmente ao tratar da desinternação progressiva consolidada pela reforma psiquiátrica 141. Porém, ainda presente em inúmeras sentenças e acórdãos

141 ―Ementa – Ação Penal. Execução. Condenação à pena de reclusão, em regime aberto, Semi- imputabilidade. Medida de Segurança. Internação. Alteração para tratamento ambulatorial. Possibilidade. Recomendação do laudo médico. Inteligência do art. 26, caput e § 1º do Código Penal. Necessidade de consideração do propósito terapêutico da medida no contexto da reforma psiquiátrica. Ordem concedida. Em casos excepcionais, admite-se a substituição da internação por medida de tratamento ambulatorial quando a pena estabelecida para o tipo é a reclusão, notadamente quando manifesta a desnecessidade da internação. (...) Como se sabe, a Lei nº 10.216 de 2001 determinou revisão tratamento dos portadores de transtornos psíquicos à luz das já não tão

incoerência normativa ao corresponder de modo concomitante a lei penal e a lei da reforma psiquiátrica ao caso prático das medidas de segurança. A razão deflagrante a causar pertinente incoerência é percebida ao analisar os objetivos para criação de cada norma. As leis penais visam a prevenção especial positiva com o intuito de proteção ao não-imputável e sociedade, sob o viés da segurança pública. De modo diverso a Lei nº 10.216 de 2001 pretende a garantia dos direitos e humanização dos cuidados ao portador de transtorno mental pelo princípio da igualdade ao tratar todos os portadores de sofrimento psíquico de modo igualitário de acesso ao tratamento devido ao seu quadro mental, independente do cometimento ou não de crimes (Silva, 2007, p. 98).

A reforma psiquiátrica, com a desisntitucionalização, propôs a internação somente quando outros tratamentos menos evasivos à liberdade do indivíduo, tais como terapias e consultas em ambulatórios e nos CAPS, não forem suficientes para resultados satisfatórios à alcançar a estabilidade do enfermo e desde que tal pedido de transferência para hospital psiquiátrico seja feito com apresentação de laudo do perito devidamente fundamentado. Desta forma, o Poder Judiciário ao reconhecer a efetividade da Lei antimanicomial no campo das medidas de segurança, deveria sedimentar o entendimento do aspecto imprescindível do laudo pericial ao determinar o quadro clinico e a indicação do tratamento condizente ao enfermo142,

recentes posturas da ciência psiquiátrica que questionam a efetividade da custódia dos doentes mentais. Nesse contexto, a desativação dos hospitais psiquiátricos é uma etapas da politica pública de reforma psiquiátrica, o que torna ainda mais injusta e desaconselhável a internação do paciente em hospital psiquiátrico judicial.‖ (STF HC 85.401 – RS, Ministro Relator Cezar Peluso, Segunda Turma, Data do Julgamento: 04.12.2009, Data da Publicação: 10.02.2010)

142 ―EXECUÇÃO PENAL. HABEAS CORPUS. DESINTERNAÇÃO PROGRESSIVA. LAUDO FAVORÁVEL. PRÉVIO WRIT NÃO APRECIADO. RECURSO CABÍVEL: AGRAVO. ORDEM CONCEDIDA. (...) Noticiam os autos que o paciente foi condenado à pena de 37 anos e 6 meses de reclusão, no regime fechado, substituída por medida de segurança consistente em internação por 3 anos, iniciada aos 29.7.2000.Após sucessivas prorrogações da medida, o relatório elaborado pelo Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Franco da Rocha⁄SP, aos 31.7.2007 (fl. 23), recomendou a transferência do paciente para Colônia de desinternação progressiva. Todavia, acolhendo o parecer ministerial, o magistrado da 5ª Vara das Execuções Criminais da Comarca da Capital⁄SP indeferiu a transferência, prorrogando por mais um ano a medida de segurança. A impetrante refuta os argumentos utilizados pelo magistrado singular para indeferir a transferência recomendada, aduzindo que, caso estivesse cessada a periculosidade do paciente, não se estaria

bem como os relatos e experiência dos que convivem a rotina do indivíduo (família, médicos, amigos, colegas de trabalhos...). Mas, não de modo generalizado, ainda é nítida a primazia do artigo 97, caput, do Código Penal 143 em face da Lei de Reforma Psiquiátrica, pelo fato do magistrado utilizar como parâmetro o delito praticado com gravidade e sua pena em abstrato. Ocorre certa confusão acerca do entendimento se a Lei de Reforma psiquiátrica revogou, de modo expresso ou tácito, o artigo penal em comento para escolha do tratamento médico em sede de medidas de segurança. Ademais, conforme disposto no artigo 182 do Código de Processo Penal, ―O Juiz não ficará adstrito ao laudo, podendo aceita-lo ou rejeitá-lo, no todo ou em parte”, onde poderá ocasionar incerteza e escolha pela medida de segurança controversa às necessidades físicas e psíquicas do indivíduo, demonstrando em muitas decisões somente a função preventiva do provável crime em benefício da sociedade com a clausura do enfermo em hospital psiquiátrico, desconsiderando o aspecto terapêutico das medidas de segurança.

postulando a sua desinternação progressiva, mas sim a sua desinternação condicional. Alega que o paciente se encontra submetido à medida de segurança em "regime" (fl. 4) mais gravoso do que o recomendado pelos peritos, asseverando que a gravidade do ilícito não pode servir de fundamento para embasar a transferência pretendida. (...) Conquanto o fato que conduziu o paciente à internação seja grave, não vejo como mantê-lo em medida de segurança mais gravosa do que o seu quadro clínico recomenda. Segundo os autos, foi ele condenado por ter matado a esposa e três familiares, além de tentar matar mais um destes. (...) A melhor solução para o caso ora sob exame, parece-me, é proporcionar uma nova tentativa de adaptação em regime de semi-internação pelo prazo de um ano, após o que deverá ser submetido a novo exame - psiquiátrico e psicossocial - para verificar-se como respondeu ao tratamento em regime com maior âmbito de autodeterminação e possibilidade de saídas do Hospital, para que se adapte ao meio externo, e à responsabilidade de dar continuidade ao tratamento quando em liberdade. Ante o exposto, concedo de ofício a ordem para transferir o paciente para Hospital Psiquiátrico que disponha de estrutura adequada para regime de desinternação progressiva, colocando-o em regime de semi-internação pelo prazo de 1 ano, após o qual deverá ser submetido a novo exame psiquiátrico e psicossocial para a apuração de condições para a desinternação condicional, podendo o paciente retornar ao regime de internação, a critério do juiz da execução, se laudos posteriores desaconselharem a sua permanência na semi-

internação. É como voto.‖ (STJ, HC Nº 116.655 – SP, RELATORA: MINISTRA MARIA THEREZA

DE ASSIS MOURA, Sexta Turma Julgadora, Data do Julgamento: 10.02.2009) Grifos nossos 143―Art. 97. Se o agente for inimputável, o juiz determinará sua internação (art. 26). Se, todavia, o fato previsto como crime for punível com detenção, poderá o juiz submetê-lo a tratamento ambulatorial.‖

Um dos objetivos dos movimentos antimanicomiais, que serviram de inspiração para a reforma psiquiátrica em vigor, foi justamente em atribuir aspecto cientifico do campo médico a escolha do tratamento ao não-imputável ao avaliar suas condições e necessidades de estabilidade do quadro mental posterior ao crime, a priorizar a escolha de tratamento baseado na pessoa do delinquente e não no delito praticado 144. Tal pensamento ainda persiste em alguns aplicadores da lei devido ao desconhecimento das alterações no campo de assistência à saúde mental e a concentração “na questão jurídica do crime e da periculosidade do doente mental, da defesa social, bem como em sua incapacidade e irresponsabilidade penal.” (Marchewaka, 2004, p. 184). Bem como, conforme debatido nas finalidades das medidas de segurança desta dissertação, o reconhecimento por muitos Tribunais, confirmado pelo STF, das medidas de segurança como espécie de sanção, pena.

Devido às alterações trazidas de modo substancial pela Lei da Reforma Psiquiátrica no instituto das medidas de segurança, há quem defenda, como o autor Paulo Jacobina145, a derrogação de todas as leis penais ao tocante às medidas de segurança, uma vez que a Lei da Reforma e as Leis penais apresentam finalidades distintas que acabam por colidirem, resultando em impasses e aplicação deformada

144 ―(...) a situação subjetiva do agente, ou seja, o mal psíquico de que padeça e a situação de periculosidade que ostente, não se podendo buscar, quantificar o tempo de medida de segurança a ser cumprida com base no delito cometido.‖ FACCINI NETO, Orlando. Atualidades sobre as medidas de segurança. Revista Jurídica, Ano 53, Nov. de 2005, nº 337, p. 100.

145

―(...) o fato de a Lei da Reforma Psiquiátrica não expressar a revogação dos dispositivos incompatíveis no Código Penal e na Lei de Execução Penal não significa que esses dispositivos não tenham sido revogados. Citem-se, como exemplos, os §§ 1º e 2º do art. 97, com seus prazos mínimos obrigatórios para a realização e repetição de regimes, (com seus correlatos arts. 175 a 179 da Lei de Execução Penal), incompatíveis com o principio da utilidade terapêutica do internamento, previsto no art. 4º, § 1º, da Lei da Reforma Psiquiátrica, ou com o princípio da desinternação progressiva dos pacientes cronificados (art. 5º da Lei da Reforma Psiquiátrica).‖ Ainda para o autor não há conflito aparente de normas no tempo, pelo fato da Lei da Reforma Psiquiátrica não distinguir entre portadores de transtornos delinquentes ou não delinquentes, onde o indivíduo pode ser inimputável, semi-imputavel ou imputável conforme avaliação do caso em concreto. Igualmente, pode o imputável no decorrer do cumprimento da pena ser acometido por transtorno mental. JACOBINA, Paulo Vasconcelos. Direito Penal da loucura. Brasília: ESMPU, 2008, p. 110.

do tratamento ao indivíduo146. Porém, mesmo que grande avanço e modo salutar trazido pela reforma, em nenhum momento do seu texto a lei faz referência à mudança de aplicação aos portadores de transtornos mentais passíveis de medidas de segurança, gerando a revogação da norma geral pela norma especial, no caso artigo 97 do Código Penal revogado pelo artigo 6º da Lei nº 2.216 de 2001.

Outro ponto relevante é a revogação dos prazos mínimos das medidas atribuído ao principio da utilidade terapêutica do internamento e a periculosidade do inimputável baseada na natureza do delito cometido (Queiroz, 2006, p.552).

Mais uma evidência complexa no presente contexto é a chamada Alta Planejada e reabilitação psicossocial, prevista no artigo 5º da Lei nº 10.216 de 2001 e ratificada pelo Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH-3, aprovado pelo Decreto nº 7.037 de 2009 147. Em vista disto, do término da execução das medidas de segurança, conforme orientação médica e conforme a particularidade de caso, o magistrado deve encaminhar o indivíduo recém-saído do processo das medidas de segurança para programas a manter a estabilidade do seu quadro clinico e reinserção social como atenção ao principio da dignidade da pessoa humana ao

146

―Tese: A Lei nº 10.216/01, marco da reforma psiquiátrica no Brasil, derrogou a parte geral do Código Penal e da Lei de Execuções Penais no que diz respeito à medida de segurança: Percebe-se que a lei não faz qualquer ressalva no tocante à aplicação de seus dispositivos, estendendo-os a todo e qualquer indivíduo que padeça de sofrimento mental, sem distinção de qualquer ordem. Ademais, a bem da verdade nem se precisaria efetivar tal raciocínio para advogar a aplicabilidade da Lei nº 10.216/01 à medida de segurança, é que referido instituto encontra-se claramente previsto na lei comentada.‖

147―Diretriz 16, Objetivo estratégico III, ações programáticas: (a) Estabelecer diretrizes que garantam tratamento adequado às pessoas com transtornos mentais em consonância com o princípio de desinstitucionalização. Responsáveis: Ministério da Justiça; Ministério da Saúde. Recomendação: recomendasse aos estados, Distrito Federal e municípios mobilizar os serviços da rede de atenção à saúde mental para oferta do tratamento especializado dos portadores de transtornos mentais, após o cumprimento das medidas de segurança, com o devido encaminhamento aos serviços substitutivos à internação. [...] (c) Estabelecer mecanismos para a reintegração social dos internados em medida de segurança quando da extinção desta, mediante aplicação dos benefícios sociais correspondentes. Responsáveis: Ministério da Justiça; Ministério da Saúde; Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.‖ (Grifos nossos)

oferecer possibilidades de recomeço com efetivas chances de prosperidade individual e, indiretamente, diminuir de modo drástico as chances de recaídas que se materializem em danos para o ex-interno e a sociedade. Porém, infelizmente, poucos magistrados têm ciência do supracitado Programa Nacional de Direitos Humanos.

7.5.5 Alguns modelos práticos de execução das medidas de segurança