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Uma aplicação desta teoria sinples

SOBRE A HISTÓRIA 7 LIVROS E IDEIAS *

3. Uma aplicação desta teoria sinples

Falei, até aqui, das diferenças teóricas entre a teoria velha e a teoria nova. Vou agora ocupar- me das diferenças práticas entre uma e outra, tendo escolhido para tal efeito o problema da representação proporcional.

A teoria velha, segundo a qual o poder deve ser exercido, como que por direito natural ou divino, pelo povo e para o povo, considera que o princípio da representação, proporcional é uma componente essencial da democracia: todas as opiniões têm o direito de ser ouvidas e a justiça exige que estejam representadas no Parlamento, ou na Câmara dos Representantes, na proporção do número de pessoas que nelas votaram. Negar tal direito será, portanto, um acto de injustiça,

Em minha opinião, este argumento é ideológico e desaparece com a teoria velha, sendo, no mínimo, questionável.

Em primeiro lugar, atribui - ainda que só indirectamente - um estatuto a partidos políticos que de outra forma o não obteriam. Isto porquanto que não são apenas as opiniões, mas também os partidos políticos, que é suposto estarem proporcionalmente representados. E se as opiniões dos homens merecem sempre o maior respeito, os partidos políticos, enquanto instrumentos tipicos de promoção pessoal e de poder, com todas as possibilidades de intriga que isto implica, não podem de forma alguma ser identificados com opiniões.

Os partidos não necessitam ser mencionados, nem receber qualquer estatuto oficial numa constituição que não preveja a representação proporcional, Os eleitores de cada círculo mandam para a Câmara os seus representantes pessoais. O deputado assim eleito ou actua só ou, se assim o entender, faz combinações com outros - mas em qualquer dos casos tem de explicar ao seu eleitorado as razões por que as fez. É seu dever representar, da melhor maneira que puder, os interesses de todos quantos residem na circunscrição por que foi eleito. Na esmagadora maioria dos casos, tais interesses são idênticos aos de todos os cidadãos do país, da nação. São esses que tem que defender da melhor maneira que lhe for possível.

É esse o único dever dos representantes que deve ser consagrado na Constituição. O representante eleito só deverá considerar a hipótese de se responsabilizar também perante um partido político quando estiver convencido de que, ligado a ele, cumprirá melhor o seu dever perante os que o elegeram, Consequentemente, é sua obrigação abandonar o partido sempre que verificar que pode desempenhar melhor o seu dever fundamental sem ele, ou ligado a outro partido político.

Se a Constituição previr a representação proporcional, então a situação será diametralmente oposta. De acordo com o principio da representação proporcional, o candidato apresenta-se ao eleitorado exclusivamente como representante de um partido político. Se for eleito, ele deve-o, sobretudo, se não exclusivamente, ao facto de ser representante desse partido. Assim, a sua principal lealdade deve ser para com o partido, sendo seu dever nunca votar contra o partido que o fez eleger. Ao contrário, ele fica moralmente vinculado a esse partido. Se não puder conciliar a lealdade partidária com a sua consciência, tem a obrigação moral, em meu entender, de se demitir do partido e do Parlamento, mesmo que a Constituição lho

não imponha. De facto, o processo pelo qual foi eleito retira-lhe, responsabilidade pessoal, transformando-o mais em máquina de votar, do que em pessoa dotada de pensamento e sentimento próprios,

Na minha opinião, isto basta para condenar o princípio da representação proporcional. Em política, precisamos de indivíduos com ideias próprias e dispostos a assumir pessoalmente responsabilidades. Admito que tal seja difícil de atingir qualquer que seja o sistema de partidos, mesmo sem representação proporcional. E reconheço igualmente que ainda não se descobriu uma solução que dispense os partidos.

Se temos que ter partidos políticos, então a Constituição não deve aumentar deliberadamente, pela adopção do sistema de representação proporcional, a sujeição dos nossos representantes às máquinas e às ideologias partidárias.

Até aqui, a minha argumentação contra a representação proporcional desenvolveu-se dentro dos limites da teoria velha, segundo a qual, é o povo quem manda. Mas como já vimos que a teoria não é válida, podemos agora considerar alguns problemas práticos muito simples. A consequência política principal da representação proporcional é a tendência para aumentar o número de partidos.

À primeira vista, pode ser uma consequência desejável, na medida em que a existência de um maior número de partidos significa uma maior possibilidade de escolha, mais oportunidades e menos rigidez. Significa também uma maior distribuição do poder e das influências.

Sustento, porém, que esta visão das coisas é totalmente errada. No fundo, a existência de muitos partidos traz grandes dificuldades à formação de Governos e põe obstáculos à duração de Governos coesos. Se a representação proporcional se baseia na ideia de que a influência de um partido deve ser proporcional ao seu poder eleitoral, é inevitável a criação de um sistema pluripartidário cuja consequência prática, na maioria dos casos, é a formação de Governos de coligação. Muito frequentemente, tal situação atribui aos pequenos partidos políticos uma influência desproporcionada - quando não decisiva - na formação dos Governos e no respectivo processo decisório. Acima de tudo, porém, a responsabilidade definha, pois num Governo de coligação todos os parceiros têm uma responsabilidade reduzida.

A representação proporcional, assim como o aumento do número de partidos que provoca, pode portanto ter efeitos nocivos na questão fundamental, que é, como disse, a maneira de derrubar um governo através do voto nomeadamente através de uma eleição parlamentar. Os eleitores são levados a prever que nenhum dos partidos irá obter maioria absoluta e, deste modo, não votam contra qualquer deles. Em consequência, ninguém encara o dia das eleições como um Dia do Juizo: como um dia em que um Governo responsável se apresenta para serjulgado pelos seus actos e omissões, pelos seus êxitos e fracassos, e em que uma oposição, responsável, critica o que o Governo fez ou não fez, explicando quais as medidas que deviam ter sido por ele tomadas e porquê.

Em vez disso, o eleitorado é levado a encarar como uma mera flutuação temporária da popularidade - e não como um veredicto de "Culpado" – a perda de cinco ou dez por cento

dos votos sofrida por um partido. Com o decurso do tempo, o povo habitua-se à ideia de que nenhum partido político ou nenhum dos seus líderes pode ser responsabilizado pelas suas decisões.

Tal como o vejo, o dia das eleições deve ser realmente um Dia do Juizo. Como Péricles disse em Atenas 430 anos antes de Cristo, "embora apenas alguns possam dar origem a uma política, todos somos capazes de a julgar". Podemos enganar-nos no nosso veredicto, evidentemente - e enganamo-nos muitas vezes. Mas se tivermos vivido sob o Governo de um partido e sentido as suas repercussões, temos pelo menos algumas qualificações para o podermos julgar.

Tudo isto pressupõe, no entanto, que o partido no poder e os seus líderes possam ser totalmente responsabilizados pelos seus actos. E isso pressupõe, por seu turno, que o Governo seja maioritário. No caso, pouco frequente, do Governo de um único partido detentor de uma maioria absoluta, mesmo se a maioria dos cidadãos desiludidos votarem contra ele, não podem facilmente ser afastados do poder. Na realidade, num sistema de representação proporcional, se esse partido no poder (podendo ser responsabilizado pelos seus actos) vier a perder a sua maioria, continuará a ser, muito provavelmente, o maior partido e, com a ajuda de um dos partidos mais pequenos, formará um governo de coligação. Assim, o líder censurado do partido maior continuará a deliberar o Governo, contrariamente ao voto da maioria e com o auxilio de um dos pequenos partidos cuja política, em teoria, pode estar muito longe de "representar os anseios do povo".

É sabido que um partido pequeno pode derrubar um Governo, mesmo sem necessidade de novas eleições e, sem um novo mandato dos eleitores, constituir um novo Governo com partidos da Oposição - numa violação grotesca do fundamento da representação proporcional: a ideia de que a influência de cada partido deve corresponder ao número de votos que conseguiu obter nas urnas.

Para tornar viável um governo de maioria, necessitamos de algo parecido com o sistema bi- partidário que existe na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, Mas a prática da representação proporcional torna-o difícil de conseguir.

No interesse da responsabilização parlamentar, defendo o sistema bi-partidário, ou pelo menos algo que se lhe aproxime. Um tal sistema garante a existência, nos dois partidos, de um processo contínuo de autocrítica.

Referir-me-ei agora a algumas das objecções mais correntes que se fazem ao sistema bi- partidário.

Primeira objecção: um tal sistema impede a formação de outros partidos. Eu admito isso. Mas nós vemos mudanças consideráveis no interior dos dois maiores partidos ingleses e americanos. O impedimento ao aparecimento de novos partidos não significa, portanto, uma negação da flexibilidade.

O ponto é que, num sistema bi-partidário, o partido vencido tem que levar muito a sério a sua derrota eleitoral; pode procurar uma reforma interna dos seus objectivos, ou seja uma reforma ideológica. Se o partido sofre duas ou mesmo três derrotas sucessivas, a busca de

novas ideias pode tomar-se frenética, o que obviamente, é uma consequência. E isto pode acontecer mesmo quando a perda de votos não tiver sido excessiva, mas apenas de uma pequena percentagem.

Mas num sistema com muitos partidos e com coligações tal não acontece. Uma pequena perda de votos, nomeadamente, não provoca quaisquer preocupações, pois, não tendo os partidos responsabilidades bem claras, é tomada como fazendo parte das regras do jogo. As perdas diminutas não são encaradas a sério, nem pelos chefes partidários, nem pelo eleitorado: ninguém se alarma.

Mas uma democracia precisa de partidos que sejam mais sensíveis e, se possível, que vivam em clima de alerta permanente. Só dessa maneira podem ser levados a fazer a sua autocrítica. De resto, a tendência para a autocrítica depois de uma derrota eleitoral é muito mais pronunciada em países com sistemas bi-partidários do que em países onde existem diversos partidos. Assim, a minha resposta à primeira objecção é que, contrariamente ao que pode parecer à primeira vista, um sistema bi-partidário tende a ser mais flexível do que um sistema multi partidário.

A segunda objecção é a seguinte. A representação proporcional permite o aparecimento de novos partidos, possibilidade que, sem ela, fica muito diminuída. A simples existência de um terceiro partido pode melhorar grandemente a actuação dos dois grandes partidos.

A minha resposta: reconheço que pode muito bem ser assim. Mas o que acontece se aparecerem cinco ou seis desses novos partidos? Outra resposta é que se corre o risco de um pequeno partido ser investido num poder desproporcionado, se puder ele próprio decidir a qual dos dois grandes partidos se juntará para formar um Governo de coligação,

A terceira que gostaria de discutir é a seguinte: o sistema bi-partidário é incompatível com a ideia da Sociedade Aberta - com a abertura a novas ideias e com a ideia de pluralismo. A minha resposta é que tanto a Grã-Bretanha como os Estados Unidos são nações muito abertas, que uma abertura completa seria obviamente autodestrutiva, tal como o seria uma liberdade completa; que a abertura cultural e abertura política são coisas diferentes; e que a atitude certa perante o Dia do Juizo político pode ter muito mais valor em política do que um debate sem fim - e certamente muito mais do que uma conferência sem fim!

Obrigado pela vossa atenção, e agora fico à espera dos vossos severos ataques à minha argumentação.

ÍNDICE

PREFÁCIO À TRADUÇÃO PORTUGUESA DE AUF DER SUCIlE NACI1 EINER BESSEREN WELT 9 UM SUMÁRIO EM JEITO DE PREFÁCIO I SOBRE O CONHECIMENTO

1. CONHECIMENTO E FORMAÇÃO DA REALIDADE: A BUSCA DE