• Nenhum resultado encontrado

CONFERÊNCIA DE LISBOA Minhas Senhoras e meus Senhores

SOBRE A HISTÓRIA 7 LIVROS E IDEIAS *

18. CONFERÊNCIA DE LISBOA Minhas Senhoras e meus Senhores

Quero, em primeiro lugar, agradecer ao Presidente, Dr. Mário Soares, bem como ao coordenador desta conferência, Professor Fernando Gil e, logo a seguir, ao meu amigo João Carlos Espada, o terem tornado possível este encontro e o convite para nele participar. Em segundo lugar, quero esclarecer à partida que não pretendo convencer -vos com os meus argumentos. Embora procure apresentá-los da maneira mais simples e mais evidente, tenho plena consciência de que não são perfeitos. Errar é próprio dos homens - e reconheço que errei muito ao longo da minha vida de mais de 85 anos.

Nasci em Viena e a grande experiência da minha vida foi a época da Primeira Guerra Mundial - que foi desencadeada pela Áustria, o meu próprio país - e o pós-guerra. Nascido numa família de pacifistas, durante algumas semanas de 1919 (ainda não tinha 17 anos), fui atraído pelo Comunismo, pois os comunistas russos tinham assinado o Tratado de Paz de Brest Litovsk (o primeiro tratado de paz) e feito muita propaganda daquilo a que chamavam o seu pacifismo. Uma experiência convenceu-me, porém, de que o Partido Comunista não se opunha à violência e não hesitava em pôr em risco vidas humanas, mesmo as dos seus próprios apoiantes. Essa experiência levou-me a reconsiderar a Teoria Marxista, contra a qual me revoltei um pouco antes de completar 17 anos. Concluí que não apenas eu mas ninguém mais sabia o suficiente para basear nos seus conhecimentos uma decisão que pudesse conduzir ao derramamento de sangue de outras pessoas em prol de um mundo melhor.

Plenamente consciente da minha ignorância acerca da sociedade e do seu futuro, acabei por verificar que a Teoria da História de Marx e a sua profecia sobre o advento do Socialismo, embora engenhosas, tinham muitas falhas.

Afastei-me então da política, excepto evidentemente naquela medida em que todo o cidadão responsável tem o dever de se interessar por ela e de sobre ela reflectir. No entanto,

emocionalmente, continuei durante muito tempo a sentir-mi Socialista. Não querendo envolver-me na vida política activa, procurei provar a mim próprio a seriedade do meu credo socialista tomando-me trabalhador manual. Experimentei trabalhos muito pesados, trabalhando de picareta na construção de estradas. Mas como não consegui aguentar fisicamente o esforço, resolvi trabalhar como aprendiz de marceneiro. Passei o respectivo exame, mas descobri que também não era suficientemente bom nesse ofício. Por fim, tornei- me professor primário. Desempenhei esta função razoavelmente, e ainda mantenho contactos com alguns dos meus antigos alunos, que hoje têm 63 anos de idade.

Conto-vos tudo isto para explicar que nunca tive ambições académicas, de facto, durante os meus estudos na Universidade de Viena nunca sonhei ser professor universitário. Foi só quando publiquei o meu primeiro livro, A Lógica da Descoberta Científica, que comecei a pensar em tal hipótese. Frequentei a Universidade não para seguir uma carreira docente, ou mesmo uma carreira de investigador, mas simplesmente porque entendia que um operário socialista devia ter inteira liberdade para estudar o que quisesse.

Estudei matemática, física e um pouco de química.. apenas por gosto. E estudei o Marxismo em profundidade e em termos críticos, acabando por reconhecer não apenas alguns dos seus erros mas também a sua atitude de arrogância intelectual. Descobri que, dois mil e quinhentos anos antes de mim, Sócrates tinha dito: "Sei que nada sei - e mal isso sei: só sei, portanto, que não sei. Mas quero saber e quero aprender."

Foi ao amor pelo conhecimento, juntamente com a consciência da nossa própria ignorância, que Sócrates chamou "Filosofia", palavra que significa "ânsia de conhecer". O mesmo Sócrates disse que todos nós ansiamos por aquilo que não temos - neste caso, a sabedoria. Infelizmente, a tradição socrática quase desapareceu, A maior parte dos filósofos pensam que sabem.

Quando tomei consciência que Hitler estava prestes a invadir a Áustria, emigrei com a minha mulher para a Nova Zelândia, onde me fora oferecido um lugar de professor na Universidade de Canterbury, e no dia em que Hitler ocupou a Áustria decidi escrever outro livro em defesa da Democracia. Os meus interesses teóricos continuavam orientados para as ciências naturais. Mas senti que era meu dever defender a Democracia. Isso tornou-se o meu esforço de guerra. Enquanto as bombas de Hitler caíam sobre Londres, o meu primeiro livro em inglês era aceite para publicação; e foi publicado em Londres em 1945 sob o título A Sociedade Aberta e os seus Inimigos.

O livro foi muito bem recebido. No mesmo dia em que estava a escrever esta conferência recebi do meu editor inglês quatro exemplares da décima oitava edição inglesa. Assim, o livro ainda é vivo quarenta e dois anos depois.

Devo, no entanto, confessar que a Teoria da Democracia que nele defendo não me parece ter sido entendida, nem assimilada. Aparentemente a minha teoria é muito diferente daquilo que as pessoas geralmente acreditam e ao mesmo tempo, muito semelhante ao que, na prática, fazem os democratas; e, de um modo geral, era demasiadamente simples para chamar a atenção.

Eis a razão por que gostaria de a explicar aqui, mais uma vez. Não só admito como sublinho que posso estar enganado. Mas defenderei aqui que a minha Teoria da Democracia é muito simples, fácil de entender por todos, muito diferente da velhíssima Teoria da Democracia que a generalidade das pessoas têm por adquirida e, finalmente, que tem muitas consequencias, sobretudo de ordem prática. Quero sublinhar este último aspecto e, ainda, o facto de a minha teoria evitar expressões grandiloquentes e abstractas como "liberdade" e "razão". Acredito na liberdade e na razão, mas não é sobre estes termos, demasiadamente abstractos e altamente susceptíveis de má utilização, que pode construir-se uma teoria simples, prática e fecunda. Além do mais, e como é sabido, nada se ganha com definições. O que disse até aqui deve ser tido como uma Introdução ao tema desta conferência, no qual vou agora entrar, dividindo-a em três partes principais. Na primeira, apresentarei muito resumidamente aquilo que pode chamar-se a Teoria Clássica da Democracia: a teoria do governo do povo. A segundaparte será um breve esboço da minha teoria mais realista, a qual, devo dizer, ainda é nova - embora tenha sido publicada há quarenta e dois anos. A terceira parte é essencialmente uma descrição das consequências práticas da minha teoria, em resposta à pergunta: "Que diferença prática introduz esta nova teoria?"