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SOBRE AS CHAMADAS FONTES DO CONHECIMENTO *

Agradeço a enorme honra que me é conferida ao ser agraciado com o grau de Doutor em Filosofia pela Faculdade de Letras desta Universidade. Aceito esta distinção com reconhecimento e imensa alegria.

Assumi então um compromisso delicado, e precisamente no último momento - o compromisso de proferir uma breve alocução. Antes de iniciar a minha exposição, vou contar uma história verdadeira dos meus tempos na Nova Zelândia.

Em Christchurch, na Nova Zelândia, estreitei amizade com um físico, o Professor Coleridge Farr que na altura da minha chegada, tinha aproximadamente a mesma idade que eu tenho agora. Era um homem muito original e cheio de espírito, membro da Royal Society of London. O Professor Farr era um homem com preocupações sociais, e costumava proferir

* Conferência proferida na Universidade de Salzburg, em 27.7.1979, por ocasião da imposição ao autor do grau

conferências de divulgação científica nos mais diversos círculos, e designadamente em prisões. Um dia iniciou a sua exposição numa dessas prisões com as seguintes palavras: "Hoje vou apresentar aqui precisamente a mesma conferência que fiz há seis anos. Por conseguinte, se algum de vós já a tiver ouvido então é porque bem o merece!" Mal tinha acabado de proferir estas palavras um tanto atrevidas, quando se apagaram as luzes na sala. Contou depois que tinha sentido um certo mal-estar enquanto permaneceu às escuras.

Lembrei-me deste episódio quando o Professor Weingartner me comunicou no sábado passado - no último momento, pois - que se esperava que eu fizesse hoje aqui uma conferência. Acrescentou inclusivamente que poderia repetir uma conferência que tivesse feito em tempos. Veio-me então à memória, naturalmente, o Professor Farr e também que não posso dizer-lhes, como é evidente, "se algum de Vós já tiver ouvido a minha exposição, então

Há já cerca de 2500 anos que existe algo como uma Teoria do Conhecimento. Desde os filósofos gregos até aos membros do Círculo de Viena, a questão fulcral desta teoria do conhecimento foi o questionamento das fontes do nosso conhecimento.

Ainda num dos últimos trabalhos de Rudolf Carnap, um dos mentores do Círculo de Viena, podemos ler mais ou menos o seguinte:

"Sempre que fazes uma afirmação, deves justificá-la também. Isto significa que deves estar apto a responder às seguintes questões:

Como sabes isso? Em que fontes se baseia a tua asserção? Quais as percepções subjacentes à tua afirmação?"

Considero esta série de interrogações totalmente insatisfatória, pelo que vou tentar apresentar, ao longo da minha exposição, algumas das razões por que as considero como tal. A razão principal reside no facto de estas questões pressuporem uma atitude autoritária face ao problema do saber humano. Pressupõem que as nossas afirmações só são admissíveis se, e apenas se, pudermos invocar a autoridade das fontes do conhecimento e, em particular, das percepções.

Em contrapartida, eu afirmo que essa autoridade não existe e que é inerente a todas as asserções um motivo de incerteza; e de igual modo a todas as afirmações assentes em percepções e logo a todas as afirmações verdadeiras.

Proponho, por conseguinte, que se substitua a antiga interrogação das fontes do conhecimento por outra interrogação completamente diferente. A formulação tradicional da problemática da teoria do conhecimento apresenta uma certa identidade com a formulação tradicional da problemática da teoria do Estado, identidade essa que nos pode ajudar a descobrir uma problematização nova e mais correcta na teoria do conhecimento.

A questão tradicional fundamental sobre as fontes autorizadas do conhecimento corresponde, designadamente, à questão fundamental tradicional da filosofia do Estado, tal

como foi enunciada por Platão. Refiro-me à questão: "Quem deve governar?"

Esta questão exige uma resposta autoritária. As respostas tradicionais eram "os melhores" ou "os mais sábios". No entanto, estão igualmente compreendidas na formulação autoritária da questão outras respostas aparentemente liberais tais como "o povo" ou "a maioria".

Conduz, aliás, a outras alternativas ridículas como seja: "Quem deve governar, os capitalistas ou os trabalhadores?" (Esta questão é análoga à formulada pela teoria do conhecimento: "Qual é a fonte derradeira do nosso conhecimento? O intelecto ou a percepção sensorial?") A pergunta "Quem deve governar?" é formulada de um modo claramente incorrecto, e as respostas que suscita são autoritárias. (E também paradoxais.)

Proponho que em seu lugar, a questão seja formulada de modo completamente distinto e com muito mais humildade. Algo como: "Que podemos nós fazer para estabelecermos as nossas instituições políticas de tal sorte que os governantes maus ou incapazes (que naturalmente procuramos evitar, mas que apesar de tudo podem surgir) causem o mínimo possível de danos?"

Creio que sem esta mudança na formulação do problema, jamais poderemos esperar chegar a uma teoria racional do Estado e respectivas instituições.

A democracia, a meu ver, só pode ser justificada teoricamente como resposta a esta pergunta formulada em termos muito mais humildes. A resposta é: a democracia permite libertarmo- nos, sem derramamento de sangue, de governantes maus, incapazes ou tirânicos.

De modo idêntico podemos substituir a questão relativa às fontes do conhecimento por uma outra questão. A questão tradicional era e é ainda hoje a seguinte: "Quais são as melhores fontes do nosso conhecimento, as fontes mais fidedignas - as fontes que não nos induzam em erro e para as quais possamos apelar como última instância em caso de dúvida?"

Proponho que se parta do princípio de que essas fontes de conhecimento ideais e infalíveis são tão escassas quanto os dirigentes ideais e infalíveis, e de que todas as "fontes" do nosso conhecimento nos induzem muitas vezes em erro. Proponho também que esta questão relativa às fontes do conhecimento ceda o lugar a uma outra essencialmente distinta e que é a seguinte: "Existe um meio de detectar e eliminar os erros?"

Como tantas outras questões impositivas, também a questão das fontes do conhecimento é uma questão sobre a origem, a proveniência. Interroga a procedência do nosso conhecimento na convicção de que este pode ser legitimado mediante a sua árvore genealógica. A ideia metafísica (muitas vezes inconsciente) que lhe subjaz é a de um conhecimento racicamente puro, de um conhecimento autêntico, de um conhecimento que dimana da autoridade suprema, se possível do próprio Deus, ao qual é inerente, portanto, a autoridade de uma aristocracia específica. A reformulação do problema por mim proposta - "Que podemos fazer para detectar os erros?" - resulta da convicção de que não existem essas fontes puras, autênticas e infalíveis, e de que não se deve confundir a questão da origem e da pureza com a questão da legitimidade e da verdade. A opinião que aqui defendo é antiga, remonta a Xenófanes. Xenófanes sabia já cerca de 500 anos a.C. que o que nós designamos

por saber não é mais do que adivinhação e julgamento - doxa e episteme -, como concluimos dos Seus Versos:

Não é desde o início que os Deuses revelam tudo aos mortais. Mas com o correr do tempo descobrimos, procurando, o melhor.

A verdade certa jamais homem algum a soube ou saberá Sobre os Deuses e sobre as coisas de que falo. Se alguém alguma vez proclamasse a mais perfeita das verdades Não o poderia saber: tudo está entretecido de conjectura.

A questão tradicional relativa às fontes autorizadas do nosso conhecimento continua a pôr- se ainda hoje, inclusivamente pelos positivistas e outros filósofos que estão convencidos que a sua atitude é de revolta contra toda e qualquer autoridade.

A resposta correcta à minha pergunta - "De que modo temos nós uma esperança de reconhecer e de eliminar os erros?" - parece-me ser a seguinte: "Através da crítica das teorias e das conjecturas de outrém e - se soubermos educar-nos nesse sentido - através da crítica das nossas próprias teorias e tentativas especulativas de solução." (Aliás, essa autocrítica das nossas teorias é altamente desejável, se bem que não imprescindível; isto porque se nós próprios não estivermos aptos a fazê-lo, haverá outros que o façam por nós.)

Esta resposta resume uma atitude que se poderá qualificar de "racionalismo crítico". Este modo de ver, esta atitude e esta tradição, devemo-las aos gregos. Distingue-se fundamentalmente do "racionalismo" e do "intelectualismo" proclamados por Descartes e pela sua escola, e distingue-se também da teoria do conhecimento de Kant. No entanto, o "princípio da autonomia" de Kant aproxima-se desta orientação no campo da ética e do conhecimento moral. Este princípio exprime a convicção de que não devemos reconhecer nunca como fundamento da ética o preceituado por uma autoridade, por mais sublime que esta seja. Porque confrontados com uma imposição de uma autoridade, caber-nos-á sempre julgar criticamente se é moralmente admissível obedecer a essa imposição. Pode acontecer que a autoridade tenha poderes para impor as suas determinações, e que nós sejamos impotentes para lhe opor resistência. No entanto, se nos for fisicamente possível definir o nosso comportamento, poderemos não abdicar dessa extrema responsabilidade. Está nas nossas mãos a decisão crítica: obedecer ou não à ordem; reconhecer ou rejeitar a autoridade. Kant aplicou esta ideia, de forma corajosa, também ao domínio da religião: segundo ele, é a nós que cabe a responsabilidade de julgar se as doutrinas de uma dada religião devem ser aceites como boas, ou recusadas como más.

Tendo em conta esta atitude ousada, causa certa estranheza que Kant não tenha adoptado na sua Teoria da Ciência esta mesma atitude do racionalismo crítico, atitude de procura crítica do erro. Parece-me claro que apenas uma coisa impediu Kant de dar este passo: o seu reconhecimento da autoridade de Newton no domínio da cosmologia. Reconhecimento esse que assentava no facto de a teoria de Newton ter resistido, com um sucesso quase inacreditável, às verificações mais rigorosas.

A ser correcta a interpretação que faço de Kant, o racionalismo crítico e de igual modo o empirismo crítico, que também defendo - constitui um complemento da filosofia crítica de Kant. Esta complementação só foi possível com Albert Einstein que nos veio dizer que a

teoria de Newton, mau grado o seu êxito subjugante, poderia, no entanto, ser falsa.

A minha resposta às questões tradicionais da teoria do conhecimento "Como sabes isso? Qual a fonte, o fundamento da tua afirmação? Quais as observações que lhe servem de base?" - é pois a seguinte:

"Eu não afirmo de modo algum que sei algo: a minha afirmação deve ser entendida apenas como conjectura, como hipótese. Também não nos interessa saber qual a fonte ou as fontes que subjazem à minha conjectura. São inúmeras as fontes possíveis, e não estou de modo algum esclarecido sobre todas elas. Aliás, tanto a origem como a proveniência pouco têm a ver com a verdade. Porém, se estás interessado no problema que eu quis resolver experimentalmente através da minha conjectura, poderás então prestar-me um serviço. Tenta criticá-la tão objectiva e rigorosamente quanto possível. E se conseguires conceber uma experiência, cujo resultado, em tua opinião, seja susceptível de refutar a minha asserção, estou disposto a ajudar-te nessa refutação dentro da medida das minhas faculdades."

Em rigor, esta resposta só é válida se se tratar de uma afirmação de ordem científico-natural, e não no campo da história por exemplo. Isto porque quando uma afirmação formulada a título de ensaio se prende de algum modo com a história, qualquer discussão crítica que diga respeito à sua exactidão deverá ocupar-se igualmente das fontes - ainda que não das fontes "supremas" e "autorizadas". A minha resposta, todavia continuaria a ser substancialmente a mesma.

Vou agora enunciar resumidamente os resultados da nossa discussão, revestindo a forma de oito teses:

1. Não existe nenhuma fonte derradeira do conhecimento. Qualquer fonte, qualquer achega é bem vinda, muito embora seja também objecto de verificação crítica. Desde que não estejam em causa problemas de natureza histórica, costumamos verificar os factos afirmados de preferência a examinar as fontes das nossas informações.

2. As questões relativas à teoria da ciência não têm nada a ver propriamente com as fontes. O que nos interessa sobretudo é saber se uma dada afirmação é verdadeira, isto é, se está em concordância com os factos.

Em virtude desta pesquisa crítica da verdade, são invocáveis toda a espécie de argumentos possíveis. Um dos métodos mais importantes consiste em analisarmos criticamente as nossas próprias teorias e, em particular, procurar detectar qualquer contradição entre as nossas teorias e as observações feitas.

3. A tradição constitui sem sombra de dúvida a fonte mais importante do nosso saber - abstraindo daquele saber que nos é inato.

4. O facto de as principais fontes do nosso saber terem como base a tradição indica que o antagonismo que se gera contra a tradição, ou seja o antitradicionalismo, não tem sentido. Esta circunstância não deve, no entanto, ser encarada como suporte do tradicionalismo; e isto porque nem mesmo a mais pequena parcela do nosso saber assim adquirido (e até do saber que nos é inato) está isento de um exame crítico e de uma eventual modificação. Não

obstante, sem a tradição o conhecimento não seria possível.

5. O conhecimento não pode partir do nada - da tábua rasa -, mas também não pode partir da observação. A evolução do nosso saber consiste na modificação, na correcção de um saber anterior. Certamente que é por vezes possível dar um passo em frente através da observação ou de uma descoberta acidental. No entanto, e de um modo geral, a transcendência de uma observação ou de uma descoberta depende da circunstância de através dessa observação ou descoberta ficarmos numa situação tal que nos permita modificar as teorias vigentes.

6. Nem a observação nem a razão constituem uma autoridade. Outras fontes - como a intuição intelectual e a imaginação intelectual - revestem-se de maior importância, ainda que igualmente incertas: podem revelar-nos as coisas com a maior clareza e, todavia, induzir-nos em erro. Constituem a fonte principal das nossas teorias e, como tal, são insubstituíveis. Porém, a esmagadora maioria das nossas teorias é falsa. A função mais relevante da observação e do raciocínio lógico, mas também da intuição e da imaginação intelectuais, reside no facto de nos ajudarem na verificação crítica das teorias ousadas de que necessitamos para podermos avançar no desconhecido.

7. A clareza é em si mesma um valor intelectual; mas não o são nem a exactidão nem a precisão. A precisão absoluta é inacessível, e é inútil pretender ser mais rigoroso do que o exige a problemática em causa. A ideia de que devemos definir os nossos conceitos com o propósito de os tornarmos "precisos" ou de lhes darmos um "sentido" é um fogo fátuo. Isto porque toda a definição tem de recorrer a conceitos definidores; deste modo, nunca poderemos evitar, em última análise, trabalhar com conceitos indefinidos. Os problemas, cujo objecto se traduz no significado ou na definição de termos não são relevantes. Na realidade, essas questões meramente verbais deveriam ser evitadas a todo o custo.

8. A solução de qualquer problema origina novos problemas à espera de solução. Estes novos problemas são tanto mais interessantes quanto mais difícil o problema original e quanto mais ousada a tentativa de solução. Quanto mais vamos sabendo sobre o universo, quanto mais aprofundamos o nosso saber, tanto mais consciente, nítida e firmemente se esboça o nosso saber sobre aquilo que não sabemos, o nosso saber sobre a nossa ignorância. A fonte principal da nossa ignorância reside no facto de o nosso saber só poder ser limitado, ao passo que a nossa ignorância é necessariamente ilimitada.

Pressentimos a imensidade da nossa ignorância ao contemplarmos a imensidade do firmamento. A grandeza do universo não constitui, na verdade, a razão mais profunda da nossa ignorância, mas é, no entanto, uma das razões.

Creio que vale a pena tentar conhecer mais sobre o universo, ainda que tudo o que conseguimos trazer à luz do dia nessa tentativa mais não seja do que o reconhecimento de quão pouco sabemos. Seria desejável que por vezes nos lembrássemos que é precisamente no pouco que sabemos que somos diferentes, já que somos todos iguais na nossa ilimitada ignorância.

Quando professamos a opinião de que na esfera do nosso saber, por muito que se avance no desconhecido, não existe qualquer autoridade que se sobreponha à crítica, podemos então,

sem incorrer no risco do dogmatismo, ater-nos à ideia de que a verdade está para além de toda a autoridade humana. Não se trata só de compreender essa ideia, mas também de que nos devemos agarrar a ela. Porque sem essa perspectiva não existem quaisquer critérios objectivos de investigação científica, as nossas tentativas de solução não são objecto de crítica, não há qualquer busca do desconhecido nem qualquer ambição do conhecer.