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Princípios do liberalismo: uma compilação de teses

SOBRE A HISTÓRIA 7 LIVROS E IDEIAS *

2. Princípios do liberalismo: uma compilação de teses

1. O Estado é um mal necessário. Os seus poderes não deveriam ser aumentados para além do estritamente necessário. Poder-se-ia designar este princípio por "navalha de barba liberal" (apoiando-nos na navalha de barba de Ockham, ou seja, no princípio célebre de que a substancialidade metafisica não deve ir além do absolutamente necessário).

Para demonstrar a necessidade deste mal - o Estado -, não vou invocar a opinião de Hobbes, homo homini lupus. Pelo contrário, esta necessidade é patente mesmo quando aceitarmos a visão do homo homínifelis ou até do homo homini angelus, por outras palavras, a opinião de que, ou por pura benignidade, ou talvez por angélica bondade, ninguém causa danos a ninguém. Num mundo assim continuaria a haver, porém, indivíduos mais fracos e indivíduos mais fortes, e os mais fracos não teriam qualquer direito à serem tolerados pelos mais fortes; dever-lhes-iam, pois, gratidão pela bondade da sua tolerância. Então aqueles indivíduos (fortes ou fracos) que considerem esta situação pouco satisfatória e acreditem que qualquer indivíduo deve ter o direito de viver e exigir protecção contra o poder dos fortes, reconhecerão igualmente a necessidade de um Estado que proteja os direitos de todos.

No entanto, não é difícil demonstrar que o Estado constitui um risco permanente e, logo, um mal, ainda que um mal necessário. Sempre que o Estado tem de cumprir uma missão, deverá possuir mais poderes do que qualquer cidadão, individualmente, ou do que qualquer grupo de cidadãos. Mesmo quando imaginamos instituições que restrinjam o mais possível qualquer risco de abuso desse poder, não é possível nunca afastar por completo tal risco. Pelo contrário, afigura-se que sempre teremos de pagar um preço pela protecção dos nossos direitos pelo Estado, não só sob a forma de impostos, mas tambêm sob a forma de humilhações que temos de suportar. ("A arrogância dos funcionários.") Tudo isto é, no entanto, uma questão de grau: tudo depende de o preço a pagar pela protecção dos nossos direitos não ser demasiado elevado.

2. A diferença entre uma democracia e uma ditadura reside no facto de que numa democracia podemos desembaraçar-nos do governo sem derramamento de sangue e numa ditadura não.

3. A democracia não pode (e não deve) prestar aos cidadãos qualquer tipo de benesses. De facto, as "democracias" em si não podem fazer nada; apenas os cidadãos de um Estado democrático (onde o governo está obviamente incluído) podem agir. A democracia não é mais do que uma estrutura dentro da qual os cidadãos podem actuar.

4. Não é por a maioria ter sempre razão que somos democratas, mas porque as instituições democráticas, quando radicadas em tradições democráticas, são de longe as mais inofensivas que conhecemos. Quando a maioria (a "opinião pública") se pronuncia a favor de uma ditadura, o democrata não necessita por isso de renunciar às suas convicções. Ficará, porém, consciente de que a tradição democrática no seu país não era suficientemente forte.

5. As instituições só por si não bastam quando não radicam na tradição. As instituições são sempre "ambivalentes" no sentido em que - sem o apoio de uma sólida tradição - podem funcionar precisamente no sentido oposto àquele em que deveriam ter funcionado. A oposição no Parlamento, por exemplo, deve impedir - falando em termos grosseiros - que a maioria roube o dinheiro dos contribuintes. Estou a lembrar-me de um pequeno escândalo ocorrido num país do sudeste da Europa que ilustra a ambivalência desta instituição. Trata-se de um caso em que uma elevada quantia fruto de corrupção foi dividida entre a maioria e a oposição. As tradições são necessárias para que se crie uma espécie de vínculo entre as instituições e as intenções e valores dos indivíduos.

6. Uma "utopia" liberal - ou seja, um Estado projectado racionalisticamente sobre uma tábua rasa destituída de quaisquer tradições - é inexequível. Porque o princípio do liberalismo exige que as restrições da liberdade individual, inevitáveis em virtude do convívio social, sejam repartidas uniformemente na medida do possível (Kant) e reduzidas o mais possível. Mas como aplicar na prática este princípio apriorístico? Impedir que um pianista ensaie ou impedir que um seu vizinho possa usufruir uma tarde tranquila? Todos estes problemas só podem ser resolvidos recorrendo a tradições e a costumes vigentes; pelo recurso ao tradicional sentimento de justiça, ao direito comum, como é designado em Inglaterra, e ao que um juiz imparcial reconhece ser justo. Visto que as leis na sua generalidade só podem estabelecer princípios gerais, têm de ser interpretadas para serem aplicadas. Todavia, a interpretação necessita por seu turno de certos princípios da prática quotidiana que só uma tradição viva podefomentar. Isto é válido, muito especialmente, no que toca aos princípios extremamente abstractos e genéricos do liberalismo.

7. Os princípios do liberalismo podem ser descritos como princípios segundo os quais, as instituições existentes podem ser julgadas e, se necessário, restringidas ou modificadas. Não estão vocacionadas para se substituirem às instituições existentes. Por outras palavras, o liberalismo mais do que uma convicção revolucionária é uma convicção evolucionísta (excepto face a uma ditadura).

8. Entre as diversas tradições há que referir como as mais importantes as queformam a "estrutura moral" (relativamente à "estrutura legal" institucional) de uma sociedade e que corporizam o seu tradicional sentido de justiça e de decência, bem como o grau de sentido moral por ela alcançado. Esta estrutura moral serve de base, sobre a qual é possível estabelecer um paralelo, justo e correcto, entre interesses antagónicos, se necessário. Esta estrutura moral não é, obviamente, imutável, mas antes se vai alterando de um modo relativamente lento. Nada é mais perigoso do que a destruição desta estrutura, desta tradição. (Destruição esta conscientemente desejada pelo nazismo.) Ela conduzirá, em última análise, a um niilismo cínico - ao desprezo e ao aniquilamento de todos os valores humanos.