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A APLICAÇÃO DO INSTITUTO DO APADRINHAMENTO A CRIANÇAS E ADOLESCENTES COM REMOTA POSSIBILIDADE DE ADOÇÃO

3 A PRESERVAÇÃO DO INSTITUTO DA ADOÇÃO DIANTE DA PREVISÃO DO APADRINHAMENTO AFETIVO PELO ORDENAMENTO JURÍDICO

3.3 A APLICAÇÃO DO INSTITUTO DO APADRINHAMENTO A CRIANÇAS E ADOLESCENTES COM REMOTA POSSIBILIDADE DE ADOÇÃO

Em meio aos pareceres expostos de diversos atores sociais brasileiros, nota-se que o Direito da Criança e do Adolescente é minucioso, e regular a infância é um processo que demanda sensibilidade e empatia. Em cada novo dispositivo direcionado a esse público, requer-se excessiva compreensão e constante reflexão a respeito da sua importância social, bem como absoluto sentimento humanitário.

Retomando o verdadeiro pressuposto por trás do instituto do apadrinhamento, ressaltam-se as diretrizes trazidas nas Orientações Técnicas – Serviço de Acolhimento para Crianças e Adolescentes95 que, lançadas em 2009, reforçam a necessidade de planejamento estratégico dos programas para proteção e promoção do direito infanto-juvenil à convivência familiar e comunitária inseridos nesse contexto:

Projetos de Apadrinhamento Afetivo ou similares devem ser estabelecidos apenas quando dispuserem de metodologia com previsão de cadastramento, seleção, preparação e acompanhamento e padrinhos e afilhados por uma equipe interprofissional, em parceria com a Justiça da Infância e Juventude e Ministério Público. Nos Projetos de Apadrinhamento Afetivo devem ser incluídos, prioritariamente, crianças e adolescentes com previsão de longa permanência no serviço de acolhimento, com remotas perspectivas de retorno ao convívio familiar ou adoção, para os quais vínculos significativos com pessoas da comunidade serão essenciais, sobretudo, no desligamento do serviço de acolhimento. Para estes casos, a construção de vínculos afetivos significativos na comunidade pode ser particularmente favorecedora, devendo ser estimulada, observando os critérios anteriormente citados. (grifou-se)

Exaurida a discussão a respeito desta compreensão, conforme também verificado em momento anterior, é incontroversa a necessidade de preservação destes perfis como prioritários na utilização do instituto do apadrinhamento, salvaguarda esta a ser proporcionada e garantida no âmbito das instituições pelos seus operadores sociais. Veronese, Silveira e

95 BRASIL. Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes. 2009. Disponível em: http://www.mds.gov.br/cnas/noticias/orientacoes_tecnicas_final.pdf. Acesso em: 30 out. 2018.

Cury96 ressaltam a respeito da necessidade de se atentar aos perfis a serem atendidos pelos programas:

Certamente, o mesmo não se aplica às crianças pequenas e aos bebês, que dificilmente deixarão de ter um pretendente interessado em sua adoção já devidamente cadastrado. Inclusive, esses sequer deverão, em tese, participar do programa de apadrinhamento, uma vez que, havendo pretendentes habilitados, deverá ser deferida a eles sua guarda, para início do estágio de convivência. É preciso cuidado para que a lei não acabe autorizando adoções intuitu personae. Assim sendo, a partir da reflexão a respeito da inserção do estudado parágrafo segundo do artigo 19-B na Lei n. 13.509 de 2017 e da análise dos seus impactos, constata-se a imprescindibilidade de mitigação desse dispositivo, em prol do melhor interesse dos infantes. O Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente e da Educação (CAOPCAE)97, do Ministério Público do Estado do Paraná, faz a seguinte ressalva justamente nesse sentido:

Contudo é certo que naquelas situações onde não hajam interessados para a adoção da criança apadrinhada (por questões de faixa etária, raça, etnia, existência de deficiência ou ter grupo de irmãos), e decorrido tempo suficiente para o estabelecimento do vínculo, possa-se realizar a adoção da criança pelos padrinhos. Neste caso o fundamento é o superior interesse da criança ou adolescente. (grifou-se)

Trata-se, portanto, da relativização do dispositivo a fim de mitigar essa restrição aos interessados não inscritos, uma vez que, de certa forma, estreitar essa possibilidade pode não ser tão vantajoso à criança ou ao adolescente, principalmente aqueles que encontraram no apadrinhamento a discreta esperança – com a perspectiva realista de concretização – de voltar a viver no seio familiar. Do mesmo modo, convém fomentar e instigar nos interessados o sentimento de querer assumir a responsabilidade de atender e amparar o desenvolvimento desses indivíduos, ainda que inicialmente a intenção fosse limitada a relação de apadrinhamento.

Quando se enxerga a verdadeira dimensão do alcance do instituto, passa-se a avaliar a possibilidade de transcender essa permissividade aos adotantes, a fim de estimular a sua utilização e extrair o máximo possível desses eventuais benefícios. Ressalta-se que a 96 VERONESE, Josiane Rose Petry; SILVEIRA, Mayra; CURY, Munir. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado: comentários jurídicos e sociais. 13 ed. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 239.

97 Evento da CAOPCAE/MPPR em comemoração aos 27 Anos do Estatuto da Criança e do

Adolescente. Disponível em:

http://www.crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/legis/eca/comparativo_eca_x_lei_13509_2017_caopcae.pdf. Acesso em: 29 out. 2018.

finalidade do apadrinhamento realmente não é encontrar pais adotivos para uma criança ou um adolescente, conforme já abordado anteriormente. No entanto, de fato, muitas vezes constata-se que este pode se transformar no primeiro passo para a transformação na vida de uma criança ou de um adolescente a partir da sua inserção permanente em uma família.

E são muitos os depoimentos nesse sentido. Muitos interessados realmente não estão devidamente preparados para se responsabilizar por uma criança ou um adolescente. Mas muitos destes apenas não sabiam que eram capazes e que se tornariam pais e mães exemplares quando passassem a cogitar e exercer efetivamente esse papel. Segundo depoimento colhido pela Revista IstoÉ98:

Alguns padrinhos criam vínculos afetivos tão grandes com os afilhados que não querem mais romper. Foi assim com a securitária Conceição da Silva, 42 anos, que resolveu ser madrinha de dois meninos, de 16 e 13 anos. “Eles passam a se mostrar mais confiantes, se esforçam mais para estudar, brincam mais”, conta ela. “É um aprendizado para os dois lados. Com o tempo, fui vendo que eles não pedem nada de material, apenas carinho, querem alguém que se importe com eles.” Ela e seu marido gostaram tanto da experiência que resolveram adotar os dois.

A psicóloga Edna, no entanto, alerta: o apadrinhamento afetivo não pode ser encarado como um teste para a adoção. “Se elas não são adotadas, ficam muito frustradas”, explica ela. “Desde o início, explicamos a elas que aquelas pessoas são padrinhos, que elas verão apenas alguns dias na semana. Isso evita falsas expectativas.”

Sendo assim, ainda que se deva orientar que o enfoque principal do apadrinhamento não é esse, por que não utilizar o instituto como instrumento facilitador à adoção especificamente em casos nos quais não havia essa perspectiva? Por que não aplicá-lo em prol da redução da população infanto-juvenil institucionalizada? Por que a letra da lei seria a responsável por privar ou se omitir da obrigação de auxiliar no exercício dos direitos de crianças e adolescentes?

Parece ilógico cogitar qualquer que sejam as respostas para esses questionamentos. Os argumentos de modo algum seriam suficientes para justificar a restrição. Por essas razões, nada mais coerente que interpretar o ordenamento jurídico em consonância com o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente que, conforme ressalta Maciel99, deve servir como fator determinante:

98 Revista Istoé. Padrinhos pelo afeto. 2010. Disponível em: https://istoe.com.br/113660_PADRINHOS+PELO+AFETO/. Acesso em: 30 out. 2018.

99 MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade. Curso de Direito da Criança e do Adolescente: aspectos teóricos e práticos. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 77.

Trata-se de princípio orientador tanto para o legislador como para o aplicador, determinando a primazia das necessidades da criança e do adolescente como critério de interpretação da lei, deslinde de conflitos, ou mesmo para elaboração de futuras regras. (grifou-se)

Infere-se do exposto que a melhor das orientações seria a utilização do instituto da adoção e do programa de apadrinhamento excepcionalmente de forma conjunta quando estes puderem se complementar positivamente. Nesse sentido, Nucci100 sugere como solução que, “talvez, como forma de incentivo à adoção, pudesse haver um cadastro de candidatos à adoção concomitante a um cadastro de padrinhos interessados em adotar”. Do contrário, cabe contrapor a pertinente crítica de Rossato, Lépore e Cunha101:

Há que se lamentar a limitação do apadrinhamento apenas a pessoas não inscritas nos cadastros de adoção. Isso porque o apadrinhamento é programa que se realiza com infantes que têm remotas chances de serem adotados. Limitar os pretendentes a padrinhos é subtrair-lhe oportunidades. Em mais essa situação, há vozes que alardeiam temor quanto a esses padrinhos inscritos nos cadastros de adoção procurarem o apadrinhamento com o fito de atalharem a fila de adoção. Também se alega que os padrinhos inscritos nos cadastros de adoção já teriam um comportamento com a criança ou adolescente indiciário do desejo de filiação, não atendendo ao real objetivo do apadrinhamento e causando prejuízos psicológicos indeléveis aos infantes. Da mesma forma, o contra-argumento: constatado um problema pontual, a situação deve ser resolvida por todos os envolvidos (especialmente a autoridade judiciária, que deve ser notificada) e, identificada uma celeuma generalizada, o programa deve ser suspenso e reavaliado. Em resumo, não se pode impedir uma boa prática por conta do risco de se ter alguns maus praticantes. (grifou-se)

Nesse sentido, pode-se concluir como sendo esta a devida interpretação a ser dada ao novo regimento do apadrinhamento, uma vez que, por esse raciocínio, estaria preservado o objetivo do instituto, no entanto, sem que crianças e adolescentes abrigadas sofram restrições ao seu direito à convivência familiar. O entendimento de Veronese, Silveira e Cury102 corrobora com essa percepção:

É preciso destacar que o programa de apadrinhamento não visa à adoção, e, por isso mesmo, deve ter como prioridade “crianças ou adolescentes com remota possibilidade de reinserção familiar ou colocação em família adotiva”, conforme bem indica o § 3º do art. 19-B. Contudo, caso aconteça de a criança ou o adolescente não ter qualquer pretendente inscrito no cadastro de adotantes, não parece haver impedimentos a que seus “padrinhos”, desejando, os adotem.

100 NUCCI, Guilherme de Souza. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado: em busca da Constituição Federal das Crianças e dos Adolescentes. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 103.

101 ROSSATO, Luciano Alves; LÉPORE, Paulo Eduardo; CUNHA, Rogério Sanches. Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei nº 8.069/90 comentado artigo por artigo. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 164.

102 VERONESE, Josiane Rose Petry; SILVEIRA, Mayra; CURY, Munir. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado: comentários jurídicos e sociais. 13 ed. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 238.

Impende afirmar, dado o exposto, que essa nova regulamentação do cenário vivido pela população infanto-juvenil institucionalizada permite diversas análises a respeito das consequências e dos impactos dessas alterações. O próprio dispositivo destacado neste capítulo suscitaria outras possíveis discussões, a exemplo da real capacidade – ou a falta dela – que possui um jovem de apenas dezoito anos para ser padrinho ou madrinha de uma criança ou adolescente.

Para isso e com essa cautela é que devem ser traçados e desenvolvidos os planejamentos operacionais de cada instituição e de cada responsável por esses processos. Deve existir a conscientização dos atores sociais a respeito da repercussão do seu trabalho como fator decisivo da vida de crianças e adolescentes.

É sempre pertinente salientar que a vida desses indivíduos, antes de qualquer outro sujeito de direito, deve estar longe de ser judicializada de forma rigorosamente literal e mecanizada. O fato é que cada dispositivo e cada situação específica merecem extrema atenção por parte de todos os profissionais envolvidos – inclusive da sociedade na forma como for possível, a fim de que seja dada a melhor resolução ao caso concreto, respeitadas as situações fáticas particulares da criança e do adolescente e de toda a sua trajetória.

É preciso ser meticuloso, ter plena compreensão da grandeza e da proporção dos resultados desses percalços nas condições desses indivíduos, a fim de não somente amenizar os efeitos negativos, mas idealizar junto a eles a perspectiva de um futuro melhor. Que se tenha incessante sede de conhecimento e interesse genuíno diante desse contexto, preocupação apurada em cada acontecimento e a sensibilidade inquestionável quando importar o desenvolvimento íntimo e pessoal de cada criança e adolescente exposto a tais circunstâncias nessa fase tão determinante.