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3 A PRESERVAÇÃO DO INSTITUTO DA ADOÇÃO DIANTE DA PREVISÃO DO APADRINHAMENTO AFETIVO PELO ORDENAMENTO JURÍDICO

3.1 A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO INSTITUTO DA ADOÇÃO E SUAS CARACTERÍSTICAS

Apreciada a evolução histórica do Direito da Criança e do Adolescente, pode-se afirmar que, com ela, os seus institutos sofreram algumas transformações durante a transição doutrinária que configurou o assunto como se observa nos moldes atuais. Inicialmente, na legislação brasileira, a referência à adoção era minimamente aparente no ordenamento jurídico, sendo regulamentada de maneira esparsa.

Sua compilação foi inaugurada pelo Código Civil de 191674 (Lei n. 3.017 de 1º de janeiro de 1916), o qual optou por aplicar na sua redação diversas restrições ao instituto, dando margem à discriminação e preconceito. Segundo o diploma legal, somente usufruiriam do instituto aqueles que não possuíam filhos ou netos por vínculo natural e o parentesco resultante da adoção seria meramente civil, limitando-se à relação entre adotante e adotado. Na prática, era nítido que a adoção buscava atender os interesses do adotante em detrimento dos interesses do adotado.

Além disso, na sua primitiva redação, o Código refletia as características de um período patriarcal da história brasileira na qual o conceito de família era exclusivo ao matrimônio entre homem e mulher, ou seja, pessoas solteiras e casais homoafetivos eram considerados inaptos a assumir essa responsabilidade. Essa manifestação excludente dava-se em razão principalmente da influência religiosa que, à época, exercia consideravelmente seu poder sobre a produção legislativa. Segundo Ribeiro, Santos e Souza75, “só há muito pouco tempo o Estado Brasileiro voltou seus olhos para os interesses das crianças e dos 74 BRASIL. Lei n. 3.071 de 1º de janeiro de 1916. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L3071.htm. Acesso em: 26 out. 2018.

adolescentes, ranço de uma concepção legislativa que não enxergava além do homem contratante, patriarca e proprietário”.

Em momento ulterior, a Lei n. 3.13376 de 8 de maio de 1957 deu início a uma nova perspectiva de proposta do instituto, analisando-o sob a ótica do adotando. Dentre as principais alterações, destacam-se a exigência do consentimento do infante como requisito ao procedimento, e ainda, a possibilidade de adoção por pessoas que tivessem filhos ou netos de vínculo natural. Contudo, trazia a ressalva de que o adotado não estaria integrado à sucessão hereditária. Nesse sentido, preconiza Rodrigues77:

A primeira importante modificação trazida pelo legislador, no campo da adoção, ocorreu com a Lei n. 3.133, de 8 de maio de 1957. Tal lei, reestruturando o instituto, trouxe transformações tão profundas à matéria que se pode afirmar sem receio de exagero, que o próprio conceito de adoção ficou, de certo modo, alterado. Isso porque, enquanto, dentro de sua estrutura tradicional, o escopo da adoção era atender ao justo interesse do adotante, de trazer para a sua família e na condição de filho uma pessoa estranha, a adoção (cuja difusão o legislador almejava) passou a ater, na forma que lhe deu a lei de 1957, uma finalidade assistencial, ou seja, a de ser, principalmente, um meio de melhorar a condição do adotado. (grifou-se) Posteriormente, a Lei n. 4.65578, promulgada em 2 de junho de 1965, adotou o que se denominava “legitimação adotiva”, terminologia antiquada e indelicada para designar filhos “legítimos” e “ilegítimos”, sendo aqueles oriundos de vínculo natural e estes, de vínculo civil. Esta trouxe ao arcabouço jurídico a pretensão de equiparar os direitos e deveres entre todos os filhos, conforme se aufere do seu artigo 9º, caput e § 1º:

Art. 9º O legitimado adotiva tem os mesmos direitos e deveres do filho legítimo, salvo no caso de sucessão, se concorrer com filho legítimo superveniente à adoção. § 1º O vínculo da adoção se estende à família dos legitimantes, quando os seus ascendentes derem adesão ao ato que o consagrou.

Ainda que inegável a importância da referida Lei, infelizmente não se pode ignorar a nomenclatura equivocada que se utilizava naquele período, o que revela a estigmatização dos infantes que se encontravam nas condições de serem adotados.

75 RIBEIRO, Paulo Hermano Soares; SANTOS, Vivian Cristina Maria; SOUZA, Ionete de Magalhães. Nova Lei de Adoção Comentada. 2. ed. Leme: J. H. Mizuno, 2012, p. 29.

76 BRASIL. Lei n. 3.133 de 8 de maio de 1957. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/1950-1969/L3133.htm. Acesso em: 26 out. 2018.

77 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Direito de Família. 28 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 336.

78 BRASIL. Lei n. 4.655 de 2 de junho de 1965. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/L4655.htm. Acesso em: 26 out. 2018.

Foi somente no Código de Menores de 197979 (Lei n. 6.697 de 10 de outubro de 1979) que, ao revogar por completo a lei anterior, foi alterada a expressão “legitimação adotiva” para “adoção plena”, podendo ser aplicada a crianças e adolescentes com idade de até sete anos que se encontre “privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente, em razão de falta, ação, omissão ou impossibilidade dos pais para provê-las”. Segundo Maria Helena Diniz80, esta “era a espécie de adoção pela qual o menor adotado passava a ser irrevogavelmente, para todos os efeitos legais, filho dos adotantes, desligando-se de qualquer vínculo com os pais de sangue e parentes, salvos os impedimentos matrimoniais”. É deste modelo que decorre o formato do instituto da adoção como se tem atualmente.

Ainda neste diploma, foi contemplada a modalidade denominada “adoção simples”, utilizada em casos de crianças e adolescentes ditos em situação irregular, conforme a doutrina vigente à época. Segundo Gonçalves, esta se difere da adoção plena da seguinte maneira:

Enquanto a primeira dava origem a um parentesco civil somente entre adotante e adotado sem desvincular o último da sua família de sangue, era revogável pela vontade das partes e não extinguia os direitos e deveres resultantes do parentesco natural, como foi dito, a adoção plena, ao contrário, possibilitava que o adotado ingressasse na família do adotante como se fosse filho de sangue, modificando-se o seu assento de nascimento para esse fim, de modo a apagar o anterior parentesco com a família natural.

A adoção simples, portanto, apresentava-se uma opção insegura, especialmente em relação aos direitos adquiridos pelo adotado, situação potencialmente prejudicial ao desenvolvimento da criança e do adolescente.

Com o advento da Constituição Federal81 de 1988, o enfoque dado aos direitos fundamentais proporcionou a previsão de diversas orientações, como a constante no § 6º do artigo 227, que prevê os mesmos tratamentos, direitos e qualificações aos filhos havidos ou não da relação do casamento ou por adoção, proibindo qualquer forma de discriminação nesse aspecto.

79 BRASIL. Lei. 6.697 de 10 de outubro de 1979. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1970-1979/L6697.htm. Acesso em: 26 out. 2018.

80 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: volume 5 – Direito de Família. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 524.

81 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 26 out. 2018.

Corroborando com o texto constitucional, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069 de 13 de julho de 1990) reproduz esse dispositivo no seu artigo 20, a fim de acentuar a defesa do princípio da prevalência do interesse do adotando na esfera do instituto da adoção. A partir do surgimento dos referidos diplomas legais, inaugura-se a Doutrina da Proteção Integral da criança e do adolescente, a qual, conforme já visto, rompe com diversos estigmas, dentre eles, os concernentes ao instituto da adoção no Brasil. Segundo a autora Maria Berenice Dias82:

Conforme a doutrina da Proteção Integral, a criança e o adolescente são vistos como indivíduos que necessitam de uma proteção diferenciada, possuindo como direito fundamental o direito à convivência familiar. Destarte, a adoção passou a ser entendida como a busca de uma família para uma criança e não mais a busca de uma criança para uma família, ou seja, a partir da promulgação da Constituição Federal, a adoção legitima a paternidade socioafetiva, fundada no fator sociológico e não mais no fator biológico. (grifou-se)

Assim como a nova base doutrinária revolucionou o prisma do Direito da Criança e do Adolescente como um todo perante o ordenamento jurídico, no que tange ao instituto não seria diferente. Rompe-se a ideia de que a adoção é realizada em razão da manifestação bilateral de vontades, e passa a ter a intervenção do Estado na função de articulador dos direitos infanto-juvenis. Dessa forma, os atores sociais envolvidos têm a obrigação de promover a adoção com a finalidade precípua de inserir e adaptar crianças e adolescentes no melhor âmbito afetivo possível para o seu desenvolvimento, garantindo o seu direito de convivência familiar.

É justamente nesse sentido que o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Criança e Adolescente à Convivência Familiar e Comunitária83, lançado em 2006, enfatiza a temática:

Não se trata mais de procurar “crianças” para preencher o perfil desejado pelos pretendentes, mas sim de buscar famílias para crianças e adolescentes que se encontram privados da convivência familiar. Isso pressupõe o investimento na conscientização e sensibilização da sociedade acerca desse direito das crianças e adolescentes e no desenvolvimento de metodologias adequadas para a busca ativa de famílias adotantes. Trata-se, portanto, de investir para que a adoção seja o encontro dos desejos e prioridades da criança e do adolescente com os desejos e 82 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 5 ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 434.

83 BRASIL. Ministério dos Direitos Humanos. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Criança e Adolescente à Convivência Familiar e Comunitária. 2006. Disponível em: https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Cadernos/Plano_Defesa_CriancasAdolescen tes%20.pdf. Acesso em: 27 set. 2018, p. 73.

prioridades dos adotantes e ocorra em consonância com os procedimentos legais previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente. (grifou-se)

Facilmente se identifica a significativa transformação na finalidade do instituto da adoção. Sob o viés da proteção integral, o interesse da criança e do adolescente passa a ser considerado prioridade em detrimento dos demais, e é justamente nesse sentido que passam a ser constatados os reflexos jurídico-normativos originários dessa nova perspectiva social.

Com a promulgação da Lei n. 12.01084 em 3 de agosto de 2009, intitulada Lei Nacional da Adoção, foi alterada a redação do artigo 1.618 do Código Civil de 2002, unificando o regimento do instituto e submetendo-o às diretrizes estabelecidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, conforme se extrai do dispositivo:

Art. 4º Os arts. 1.618, 1.619 e 1.734 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, passam a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 1.618. A adoção de crianças e adolescentes será deferida na forma prevista pela Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente.” (NR)

“Art. 1.619. A adoção de maiores de 18 (dezoito) anos dependerá da assistência efetiva do poder público e de sentença constitutiva, aplicando-se, no que couber, as regras gerais da Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente.” (NR)

“Art. 1.734. As crianças e os adolescentes cujos pais forem desconhecidos, falecidos ou que tiverem sido suspensos ou destituídos do poder familiar terão tutores nomeados pelo Juiz ou serão incluídos em programa de colocação familiar, na forma prevista pela Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente.” (NR)

(grifou-se) [...]

Portanto, observa-se que o estabelecimento da Doutrina da Proteção Integral proporcionou novas interpretações, a exemplo do instituto da adoção, reorganizada sua aplicação sob a referência estatutária, diploma destaque de imensa importância para o direito infanto-juvenil.

Isto posto, cabe referenciar o ensinamento de Veronese e Petry85 a respeito do conceito de adoção nos moldes da abordagem que está sendo conferida ao assunto. Segundo os autores, “o instituto sofre uma influência privatista”, a qual atinge os conceitos jurídicos a esse

84 BRASIL. Lei n. 12.010 de 3 de agosto de 2009. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L12010.htm. Acesso em: 26 out. 2018.

85 VERONESE, Josiane Rose Petry; PETRY, João Felipe Correa. Adoção internacional e Mercosul: aspectos jurídicos e sociais. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 18.

respeito e os formula “a partir da visão contratualista”, dando o “caráter de ato jurídico solene, bilateral, estabelecido de acordo com a vontade dos particulares”. E ressaltam:

[...] a adoção não se trata de um instituto que permitia a continuidade do culto aos deuses por determinada família, não seria para preencher lacunas dos casais inférteis, não se trata de um mecanismo que envolve assistencialismo, mera caridade, mas de um instituto de natureza pública.

A compreensão jurídica sobre o tema com enfoque a partir deste viés é imprescindível, apesar da tecnicidade constatada na seara civilista brasileira. Isso especialmente para que se possa conceder o devido respaldo aos sujeitos de direitos envolvidos. Portanto, tendo em vista a relação que se origina deste processo, bem como a importância social na qual este se funda, convém analisar a coexistência em relação ao programa de apadrinhamento, estudado anteriormente.

3.2 A IMPORTÂNCIA DA MANUTENÇÃO DO ART. 19-B, § 2º DA LEI 13.509 DE 2017