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A aplicação da prisão perpétua pelo Brasil no exterior Sua diferenciação com a

Comenta-se, com freqüência, a respeito de (in) constitucionalidade da adesão do Brasil ao Tribunal Penal Internacional, cujo Estatuto prevê no art.77, alínea b, e art. 89 a entrega de nacionais para o cumprimento da prisão perpétua pela prática dos crimes de genocídio, crime contra a humanidade, crimes de guerra e de agressão.

O comentário deve-se ao fato de pena perpétua ser vedada pelo art.5º, inciso XLVII, alínea b da Constituição Federal de 1988, acrescido a proibição do inciso LI do mesmo artigo pertencente ao rol de cláusulas pétreas.

O §4º do art.60 da citada Constituição dispõe que "não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir (...) IV- os direitos e garantias individuais". Como se não bastasse, o art. 120 do Tratado de Roma determina que "não se admitirão reservas ao presente Estatuto".

Percebe-se que o problema permanece porque o Estatuto não admite possibilidade de qualquer Estado proceder a sua adesão mediante reservas. Entretanto, solução foi encontrada após debates travados em torno da questão. A saída foi acrescentar o § 4º ao art.5º do Texto Constitucional mediante a Emenda Constitucional n.º 45 de 31/12/2004 a seguinte redação: "o Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional cuja criação tenha manifestado adesão".

É relevante entender que a República Federativa do Brasil assinou o Tratado de Roma em 07.02.2000 e dois anos após (25.09.2002) o Decreto presidencial 4.388 promulgou o referido Estatuto, após aprovação do Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo 112 de 06.06.2002.

É preciso ainda, elucidar que o Tribunal Penal Internacional (ad hoc) com sede em Haia foi instituído pelo Conselho de Segurança da ONU, pela Resolução 808 de 22.02.1993 para julgar os crimes praticados na ex-Iugoslávia e, posteriormente os crimes de genocídio em Ruanda (Resolução 955 de 08.11.1994).

Conforme visto no item 2.1, a extradição é o ato pelo qual um Estado entrega a outro Estado um cidadão que nele tenha cometido crime afim de que seja julgado e condenado ou para que este cumpra o resto da pena, enquanto que o212surrender ou a entrega é o ato pelo

qual o Estado signatário do Estatuto de Roma entrega alguém a jurisdição do Tribunal Penal Internacional, para ser julgado por crimes de elevada gravidade; supõe, portanto, uma submissão prévia e voluntária de um Estado independente a certo Organismo Internacional.

Ademais, o próprio Estatuto de Roma visando eliminar equívocos define o instituto da entrega e o diferencia da extradição no art.102, alíneas a e b dispondo que “a) Por ‘entrega’, entende-se a entrega de uma pessoa por um Estado ao Tribunal, nos termos do presente Estatuto. b) Por ‘extradição’, entende-se a entrega de uma pessoa por um Estado a outro Estado, conforme previsto em um tratado, em uma convenção ou no direito interno. (...)”

A única semelhança entre o instituto da extradição e a figura do surrender/remise também conhecido por entrega criada pelo Tratado de Roma, situa-se simplesmente no fato de

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ambos embasarem a cooperação judicial visando a repressão dos delitos. Excluindo-se esta única semelhança reinam tão somente diferenças.

Explica Hélvio Simões Vidal que 213 (...) se ocorresse tal similaridade, haveria frontal choque com a Constituição brasileira, por vedar esta a extradição de nacionais. Para Hélvio, há razões para extremar a extradição da entrega. A extradição está protegida por cláusula pétrea (art.60§4º, IV, da CF/88). Já a entrega de nacionais pode ser feita, sem que se possa falar em violação ao direito individual, garantido constitucionalmente.

Por outro lado, no ato de extradição, relacionam-se dois ou mais Estados soberanos que se negociam em situação de igualdade enquanto que na entrega/surrender, o Estado - parte se submete à jurisdição supranacional em face de sua prévia adesão no ato da sua criação. Logo, não existe nesta relação bilateral a igualdade, mas sim submissão a uma jurisdição de um Organismo Internacional que se sobrepõe a todos os Estados - parte do referido tratado.

Cabe registrar, neste ponto, alguns argumentos favoráveis e contrários a adesão do Brasil ao Tribunal Penal Internacional, sustentados pela doutrina. Primeiramente mencionam- se os argumentos favoráveis e em seguida os contrários:

Segundo Fernando Capez:

O Brasil não pode se recusar a entregar um brasileiro ao Tribunal Penal Internacional, ao argumento de que a Constituição Federal proíbe a prisão perpétua (art.5º, XLVII), porque a vedação a essa espécie de pena só tem eficácia no território brasileiro; e Estados soberanos, não ao Tribunal Penal Internacional, pois não teria lógica, o Brasil submeter-se a uma jurisdição internacional, querendo impor a ela seu ordenamento interno e por outro lado, o país não foi obrigado a assinar o Estatuto de Roma214.

Perceba que não terá validade qualquer argumento posterior a ser apresentado pelo Brasil, sob o fundamento de que a lei pátria proíbe a submissão do cidadão nacional ao cumprimento de pena perpétua. Sua subscrição ao Tratado de Roma que criou o presente Tribunal Penal Internacional foi voluntária.

Saulo José Casali Bahia, manifestando-se sobre o tema registra que o conflito entre a previsão do Tratado de Roma e a Constituição Federal é, apenas, aparente e que a própria Carta Magna prevê pena mais severa que a perpétua - a pena de morte em caso de guerra declarada, nos termos do art.84, XIX (art.5º, XLVII, a) - para boa parte dos crimes alcançados

213

VIDAL, Hélvio Simões. Direitos Humanos e o Direito Internacional Penal. Revista dos Tribunais., ano 97, v. 877, nov. 08. p.482.

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CAPEZ, Fernando. Do Tribunal Penal Internacional. Competência para julgar genocídio, crimes de guerra, contra a humanidade e de agressão (EC n.º45/2005). Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7712. Acesso em 26 de jun. 2008.

pelo Tribunal Penal Internacional, ou para todos os crimes alcançados, na medida em que a ONU atua para configurar o estado de guerra em relação aos atos criminosos praticados 215.

Postula ainda o autor, que o país construiu à prática, de muitos anos, com a chancela do Supremo Tribunal Federal, a permitir à realização da extradição quando a pena de morte for comutada em pena privativa de liberdade. O art.110, inciso 3 do Estatuto que prevê a possibilidade de reexame da pena perpétua após 25 anos do seu cumprimento para ressaltar a reaquisição do direito à liberdade de ir e vir do condenado.

O outro argumento apresentado é o fato de que a vedação constitucional dirige-se apenas ao legislador interno, não impedindo assim a submissão do país e de seus nacionais às previsões de uma Corte supranacional;

A gravidade dos delitos e a quantidade de vítimas justificam a entrega ainda que de nacionais e ainda que nos países em que o direito interno a proíbe;

Não haveria óbice constitucional ao cumprimento de ordem de detenção e entrega de acusado brasileiro ao tribunal, já que a Constituição brasileira só proíbe a extradição de nacionais. Como o brasileiro não estaria sendo remetido a outro Estado, mas sim a uma organização internacional (o Tribunal Penal Internacional) que representa a comunidade dos Estados, não haveria impedimento algum;

O Estatuto não admitia reservas, logo não havia alternativa que não fosse à adesão. Não admitindo reservas o texto do tratado, não restava alternativas aos Estados - parte senão aquela de a ele aderir integralmente e, ademais, tendo havido consenso, não há que se objetar com o direito interno para recusar-se a adimplir as obrigações internacionais que do instrumento derivam;

Justifica uma relativização no que se refere à aplicação das regras proibitivas da extradição de nacionais, através de juízo de ponderação dos bens jurídicos em oposição (direitos humanos das vítimas violados contra os direitos fundamentais dos autores dos ilícitos).

Segundo Evânio Moura, o Tribunal Penal Internacional deverá observar estritamente o princípio da complementaridade ou da subsidiariedade, ou seja, somente nas hipóteses onde não existam condições ou interesses de reprimir a grave violação dos direitos humanos é que incidirá a competência da Corte Internacional Penal216.

215

BAHIA, Saulo José Casali. Op. cit. p.288. 216

MOURA, Evânio. O Tribunal Penal Internacional e o direito interno: a necessária distinção entre a extradição e entrega de nacional. Revista dos Tribunais, São Paulo: Revista dos Tribunais, v.99, n.º893, mar.2010.p.452. Argumento semelhante é sustentado por Valério de Oliveira Mazzuoli ao lecionar que “(...) o TPI não pode interferir indevidamente nos sistemas judiciais nacionais, que continuam tendo a responsabilidade

A observação que se pode fazer, é que o alvoroço que se criou em torno da possibilidade de fixação da pena perpétua a brasileiro não tem razão de ser em partes porque esta proibição é tão somente para o território nacional. Não existe qualquer impedimento de ordem legal se a pena perpétua for fixada e cumprida no estrangeiro.

Apesar de não se concordar com sua aplicação pelo fato dela privar o indivíduo da liberdade e afastá-lo da sociedade eternamente, no caso do Estatuto de Roma é aceitável pelo fato deste prever a possibilidade de revisão quando o apenado cumprir 25 anos da mesma, e o seu comportamento demonstrar esse merecimento.

Quanto aos argumentos contrários ao Tribunal Penal Internacional, cita-se mais uma vez Fernando Capez:

Proceder à prisão de um indivíduo e proceder à sua entrega a Estado estrangeiro era

extradição, é extradição e extradição continua sendo, antes e depois do Estatuto de

Roma, não importa o nome que se- lhe dê. O fato de a entrega ser feita a um organismo internacional não transmuda a natureza jurídica do instituto (e nem poderia fazê-lo, haja vista a existência de norma constitucional proibitiva da extradição do nacional que não pode ser simplesmente burlada); b) O fato de existir uma nova hipótese de extradição, para fins de entrega a um órgão internacional não é idôneo a revogar dispositivo constitucional – tanto mais em se tratando de cláusula pétrea-, nem para subtrair o procedimento de todo o regramento jurídico- constitucional e do arcabouço jurisprudencial sobre o tema já consolidado na nossa Corte Constitucional, o Supremo Tribunal Federal ainda que o chamem por outra denominação; c) A distinção do art.102 do Estatuto é tão artificial quanto artificiosa e não é apta a burlar preceito cogente e imperativo de nossa Constituição, que prevalece no particular, sobre o direito convencional, o qual aqui se revela inconstitucional.

É possível notar que os argumentos apresentados contra a adesão do Brasil ao Tratado de Roma são consistentes, entretanto, não têm o condão de obstaculizar o cumprimento da pena perpétua por cidadão nacional, por ventura, entregue ao Tribunal Penal Internacional porquanto ao empecilho inicial que se encontrava no §4º do art.60 da Constituição foi contornado com o acréscimo do §4º ao art.5º.

Logo, ao contrário do que muitos acreditam, a adesão do Brasil ao Tribunal Penal Internacional não se figura como inconstitucional. A Constituição Federal de 1988 veda o cumprimento da pena perpétua no território nacional, não fora dele.

Não se pode perder de vista que o brasileiro não será submetido a um Estado soberano, mas sim a um Organismo supranacional cujo Brasil é também parte. Portanto, não existe a menor possibilidade do mesmo ter seus direitos e garantias não atingidos pela pena perpétua violados.

primária de investigar e processar os crimes cometidos pelos seus nacionais, salvo nos casos em que os Estados se mostrem incapazes ou não demonstrem efetiva vontade de punir os seus criminosos”. Op.cit. p.37.

Deve-se anotar que apesar de o sujeito passivo nessa Corte ser pessoa acusada de crimes bastante severos, que afrontam a consciência jurídica universal como genocidas, delinquentes contra a paz e criminosos de guerra. De autores de ilícitos penais em que o número de vítimas é contado às centenas ou, o mais das vezes, aos milhares como sustenta Florisbal de Souza Del’Olmo, trata-se de ser humano.

Argumento que se respeita, apesar de discordar da sua aplicação por considerá-la ofensiva à dignidade humana conforme já demonstrado.

A adesão do Brasil ao Tribunal Penal Internacional representa um esforço para promoção e efetivação dos direitos humanos, mas não se pode ignorar que a pretensão de defesa dos direitos dos homens não justifica a ofensa à dignidade dos que violaram as normas de convivência social.

Do exposto, pode-se concluir que a vedação ao cumprimento da pena perpétua imposta pela Lei Fundamental é referente tão-somente para o território nacional. Não existe impedimento se a mesma for cumprida fora do país.

Não é inconstitucional a adesão do Brasil ao Tribunal Penal Internacional nem tão pouco a submissão de brasileiro à pena perpétua.