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A (in)aplicabilidade da Lei nº 11.719/2008 ao Código de Processo Penal Militar: deverá o interrogatório ser o último ato da instrução criminal?

2 A (IN)APLICABILIDADE DA LEI Nº 11.719/2008 NA JUSTIÇA MILITAR

2.3 A (in)aplicabilidade da Lei nº 11.719/2008 ao Código de Processo Penal Militar: deverá o interrogatório ser o último ato da instrução criminal?

Como mencionado, e com o fim de proteger os direitos fundamentais do cidadão, a Lei nº 11.719/08 em sua nova redação do art. 400 do Código de Processo Penal brasileiro (BRASIL, 1941), reza que é permitido ao acusado ter pleno acesso a todos os elementos de prova produzidos contra ele ao longo da instrução probatória, para que no final do processo, possa realizar a sua autodefesa. No entanto, conforme celebra o art. 302 do Código de Processo Penal Militar (BRASIL, 1969), o interrogatório do acusado na justiça militar fica inalterado, mesmo que o entendimento majoritário na doutrina e jurisprudência deste dispositivo não se harmonize com a Constituição Federal do Brasil de 1988.

Frente às inovações ou alterações trazidas pela lei nº 11.719/2008, dentre outras, que alterou o art. 400 do CPP, determinando a inversão do interrogatório para o final da instrução do processo, iniciaram-se discussões intermináveis para saber se deve permanecer como primeiro ato ou impô-lo como último ato da instrução criminal no processo penal militar, uma vez que ela não foi recepcionada pela legislação castrense, segundo se observa na Súmula nº 159 do Superior Tribunal Militar.

Com relação a estas inovações trazidas pela nova lei, bem como sua aplicabilidade ou não ao Código de Processo Penal Militar (BRASIL, 1969), o Juiz de

9 Superior Tribunal Militar. Súmula nº 15, “A alteração do art. 400 do CPP, trazida pela Lei nº 11.719, de 20 de junho de 2088, que passou a considerar o interrogatório como último ato da instrução criminal, não se aplica à Justiça Militar da União.” (BJM Nº 01, de 04.01.13, DJe Nº 070, de 18.04.13; republicada no DJe Nº 149, de 02.09.14)

Direito da Justiça Militar do Estado de São Paulo, Ronaldo João Roth (2014, p. 16, grifo do autor), traz à baila o seguinte:

De forma resumida, vemos que as inovações do CPP comum nem sempre são aproveitáveis no âmbito do CPPM, cabendo ao intérprete observar a norma do artigo 3º do CPPM que é a verdadeira “porta” de entrada a permitir o aproveitamento da inovação legislativa pertinente à sistemática do Códex Processual Penal Castrense, ensejando, por ouro lado, estar aquela “fechada” à admissão de inovações que firam a índole do processo penal militar ou encontrem disciplina própria e incompatível com a inovação desejada.

Faz-se necessário colacionar duas posições distintas, porém, ambas com amparo jurisprudencial sobre o momento oportuno do interrogatório no processo penal militar.

De início, é importante compartilhar o pensamento do jurista Cícero Robson Coimbra Neves (2014, p. 670), em referência à alteração no interrogatório do réu, ocasionado pela nova lei, “impõe o aproveitamento da inversão do interrogatório no CPPM, deixando-o assim, para o final da instrução criminal diante de sua inconstitucionalidade, pois afronta a ampla defesa, o contraditório e a isonomia”.

Contrapondo esse posicionamento, o doutrinador Denilson Feitoza Pacheco (2009) defende a manutenção do interrogatório no processo penal militar como o primeiro ato da instrução criminal, mesmo diante da inovação da Lei nº 11.719/2008, porque entende ser constitucional e legal a disposição expressa no Código de Processo Penal Militar, no seu art. 302, em que está previsto o interrogatório do acusado.

Nos três únicos Tribunais de Justiça Militar existentes no Brasil, quais sejam, em São Paulo, Minas Gerais e no Rio Grande do Sul, conforme se verifica nos Embargos de Declaração de n.º 1318-36.2015.9.21.0000/RS, não há divergências sobre o momento oportuno do interrogatório no CPPM (BRASIL, 1969) e diante do princípio da especialidade, deve prevalecer o interrogatório como primeiro ato da instrução criminal, não se aplicando as inovações da lei nº 11.719/2008 na justiça castrense.

Na esfera do Superior Tribunal de Justiça (STJ) não há divergência quanto à prevalência do princípio da especialidade a lastrear a manutenção do interrogatório, no processo penal militar, como o primeiro ato da instrução criminal, senão vejamos o julgamento do Recurso em Habeas Corpus que segue:

PROCESSO PENAL MILITAR. HABEAS CORPUS. VIA INDEVIDAMENTE UTILIZADA EM SUBSTITUIÇÃO AO RECURSO ORDINÁRIO. PORTE DE ENTORPECENTES E CONCUSSÃO (ARTS. 290 E 305 DO CPM). PRISÃO EM FLAGRANTE. RELAXAMENTO. PLEITO PREJUDICADO. ALVARÁ DE SOLTURA EXPEDIDO. INTERROGATÓRIO. MOMENTO PROCESSUAL. PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO EVIDENCIADO. NÃO CONHECIMENTO. 1. Tratando-se de habeas corpus substitutivo de recurso ordinário, inviável o seu conhecimento. 2. A questão do relaxamento da custódia encontra-se prejudicada, na medida em que informações retiradas do sítio eletrônico do Tribunal a quo noticiam, no processo de origem, a expedição de alvará de soltura em favor do paciente. 3. "Embora o

caput do artigo 400 do Código de Processo Penal, com a redação dada pela Lei n. 11.719/2008, determine que o interrogatório do acusado seja o último ato a ser realizado, no caso de processo penal militar, o interrogatório deve ser o primeiro ato da instrução, à luz do princípio da especialidade, visto que as regras do procedimento comum ordinário só devem ser aplicadas ao procedimento especial quando nele houver omissões ou lacunas, o que não é o caso (artigo 3º, CPPM)" (RHC

44.015/SP, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 04/09/2014, DJe 15/09/2014). 4. Writ parcialmente prejudicado e, no mais, não conhecido. (BRASIL, 2014, grifo nosso).

Deste modo, percebe-se que, para o STJ, deve prevalecer o princípio da especialidade em face do comum, não havendo nulidade processual na espécie, já que o Código de Processo Penal Militar prevê, especificamente, o momento para a realização do interrogatório do réu. É importante lembrar que em 2013 o Superior Tribunal Militar considerando o rito estabelecido pelo CPPM editou a Súmula nº 15 com o seguinte conteúdo: “A alteração do art. 400 do CPP (BRASIL, 1941), trazida pela Lei nº 11.719, de 20/06/08, que passou a considerar o interrogatório como último ato da instrução criminal, não se aplica à Justiça Militar da União”.

Acerca dessa matéria, Ronaldo João Roth (2014, p. 17, grifo do autor), tem a seguinte posição:

A nossa posição é a de que constitucional e legalmente não há como deixar de se prestigiar a regra específica do CPPM (art. 302 c.c. art. 404), diante do princípio da especialidade, porquanto esta regra está afinada com a Constituição Federal, com o princípio do devido processo legal, com o princípio da legalidade e com o princípio da igualdade constitucional, de forma que o apego aos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório não prevalecem sobre aqueles outros princípios também constitucionais, até porque estes dois princípios são consectários do princípio do devido processo legal.

Para Ronaldo João Roth (2014, p. 17), o rito estabelecido na justiça castrense foi legal e constitucionalmente criado, senão vejamos:

Ora, se é a Lei que define o devido processo legal, sob o comando da Lei Maior, não se pode ignorar o procedimento específico criado legalmente para o CPPM, para se aplicar o rito procedimental específico para o CPP Comum. Esse agir não é autorizado diante do princípio da segurança jurídica.

Ainda comentando o assunto da especialidade da justiça castrense, o juiz de direito Ronaldo João Roth (2014, p. 18, grifo do autor), explica o que segue sobre a constitucionalidade do rito do interrogatório no CPPM:

Outro argumento convincente. A Lei 9.099/95, doze anos e nove meses antes da Lei 11.719/08 já previa o interrogatório como último ato da instrução criminal (art. 81) e nem por isso se passou a discutir ou sustentar que a ampla defesa e o contraditório adotado de maneira diferente do rito procedimental previsto originalmente no CPP Comum de 1941, tornava este inconstitucional. Afora isso, não existe nenhuma lacuna no CPPM, sobre a matéria, o qual disciplina

integralmente o rito procedimental, estabelecendo que o

interrogatório é o primeiro ato da instrução criminal. Logo, não há de

se falar em analogia e muito menos em aplicação do CPP Comum

(art. 400), alterado pela Lei 11.719/08, devendo prevalecer as normas do CPPM pelo princípio da especialidade.

Vários foram os processos criminais julgados pela justiça militar após a entrada em vigor da Lei n.º 11.719/08 onde o interrogatório foi realizado de acordo com o art. 302 do CPPM e nem por isso foram considerados nulos por em tese, ferirem os princípios da ampla defesa e do contraditório.

Para ilustrar ainda mais o debate, traz-se novamente lições de Ronaldo João Roth (2014, p. 18, grifo do autor):

No plano prático, o fato do interrogatório ocorrer ao final da instrução não é garantia de vantagem para o réu, o qual, dependendo das provas colhidas na instrução, se verá na condição

de admitir a prática do crime, fato este que, ao contrário, não sucede com tanta intensidade quando o interrogatório ocorre no início da instrução, ocasião em que o réu apresenta a sua versão

sobre os fatos e indica as provas para sustentar o afirmado.

Contudo, e na contramão do que já foi comentado, é dever trazer a baila o pensamento de juristas sobre o fato do interrogatório do acusado ocorrer por último na instrução criminal, onde o réu já com acesso a todos os meios de prova obtidas no processo, possibilitaria ter uma defesa mais técnica e que mais se aproximaria dos princípios da ampla defesa e do contraditório, ambos previstos na nossa Carta Magna.

Segundo Carvalho (2010, p. 152, grifo do autor), alguns magistrados da Justiça Militar cientes em garantir os direitos fundamentais, tem aplicado as alterações da Lei 11.719/08 ao interrogatório militar. Vejamos:

Alguns magistrados militares inserem, no interrogatório da Justiça Militar, algumas questões de forma a melhor subsidiar a aplicação da lei penal castrense. [...] Apesar de não existir omissão do CPPM em relação ao interrogatório que permita a aplicação subsidiária do CPP na seara militar [...], tal adaptação é medida assaz relevante

para a harmonização do CPPM com o sistema constitucional acusatório e garantista em vigor.

No mesmo sentido, Roberta Minella da Silva e João Mário Martins (2015, p. 13, grifo nosso), mencionando a importância da aplicação das alterações da Lei nº 11.719/08 no que se refere à inversão do interrogatório para o final da audiência de instrução e julgamento na justiça castrense de todos os Estados brasileiros, se manifestaram assim:

Apesar de integrada ao Poder Judiciário e garantidos os preceitos a ela inerentes, a Justiça Militar brasileira necessita atualizar-se nos moldes da CRFB/88, a fim de aproximar-se da visão garantista e de proteção aos direitos fundamentais. Outrossim, percebe-se que o

acusado militar, por não ter sido o último a depor em juízo, não teve acesso a todas as provas, nem como a todas as oitivas, impedindo assim que ele esteja melhor preparado para o seu momento de autodefesa, tal qual o interrogatório.

Ou seja, essa possibilidade de aplicar esse novo rito processual penal nas Justiças Militares estaduais, “será vista como um verdadeiro corolário da ampla defesa e do contraditório”, [...]. (SILVA, Roberta Minella da; MARTINS, João Mário, 2015, p. 13).

Assim sendo, observa-se que as alterações trazidas pela aludida lei no que diz respeito ao mencionado artigo 400, o interrogatório do acusado deverá ser concretizado ao final da instrução probatória, para que assim fique em harmonia com os princípios constitucionais e fundamentais da ampla defesa e do contraditório.

Desta forma, o acusado terá a ciência da denúncia e pleno acesso e conhecimento da imputação que recai sobre ele, com todas as provas produzidas, para que, querendo, possam ser contraditadas. E, para que, principalmente, possa amplamente exercer seu direito de autodefesa, quando do interrogatório judicial. Isso porque, como poderia o réu bem se defender, antes de conhecer não só as alegações, mas também as provas produzidas? A própria defesa técnica, que possui a devida habilitação para analisar o contexto probatório, também será melhor qualificada para orientar o acusado para suas alegações quando do interrogatório, se já conhecer todas as provas produzidas.

Certo é que o rito do interrogatório, como está disposto, no CPPM, é ineficiente para resguardar aos acusados as garantias constitucionais previstas na Carta Magna de 1988. Quanto a esse tema, existem algumas discussões doutrinárias e divergentes interpretações no âmbito da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal Militar, tema que será abordado no próximo item.

2.4 A interpretação dos tribunais pátrios acerca da temática: análise de casos