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Conforme já exposto anteriormente, a desconsideração da personalidade jurídica foi instituída e largamente discutida pela doutrina e jurisprudência, visto a necessidade de evitar situações nas quais os sócios, com o intuito de prejudicar credores e, em poder da autonomia patrimonial, pretendiam se esquivar das suas responsabilidades.

Desta forma, dispõe Tomazette: “Diante da possibilidade de se desvirtuar a função da personalidade jurídica é que surgiu a doutrina da desconsideração, a qual permite a superação da autonomia patrimonial, que, embora seja um importante princípio, não é um princípio absoluto”75.

Salienta-se que essa medida deverá ser aplicada de forma excepcional. Isso pois afasta momentaneamente a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, sendo esse um instrumento de suma importância para a sociedade, visto que limita a sua

74 TOMAZETTE, 2020, p. 274.

responsabilidade e preserva o desenvolvimento econômico. Portanto, é necessário preencher alguns requisitos fundamentais.

Primeiramente, é imperioso que haja uma personalidade jurídica, tendo em vista que a própria terminologia do incidente pressupõe essa existência, sem ela, não há autonomia patrimonial e, portanto, não há o que desconsiderar. Conforme já destacado no presente trabalho, a personalidade jurídica é adquirida com o registro dos atos constitutivos no órgão competente.

Assim disserta Tomazette76:

Sem tal registro, não importa se exista ou não o ato constitutivo, não se pode falar em personificação da sociedade, mas em sociedade em comum, ou eventualmente em sociedade em conta de participação. Ora, não se tratando de uma pessoa jurídica, não há que se cogitar de autonomia patrimonial, não havendo a possibilidade do uso desta autonomia para fins escusos.

Além da personificação, os sócios devem optar pelo regime de responsabilidade limitada, isso pois, “a aplicação da desconsideração pressupõe uma sociedade na qual o exaurimento do patrimônio social não seja suficiente para levar responsabilidade aos sócios”77. Nesse regime, que é atribuído as sociedades anônimas e limitadas, o patrimônio dos sócios ou acionistas não se confundem com o da pessoa jurídica.

Outro ponto a ser analisado é a fraude, que é a utilização de meios maliciosos para lesar terceiros. Isso ocorre quando, determinadas pessoas, utilizam de má-fé da autonomia patrimonial da sociedade a fim de fugir das obrigações assumidas. Essa ilicitude, nas palavras de Tomazette, “decorre do desvio na utilização da pessoa jurídica, dos fins ilícitos buscados no manejo da autonomia patrimonial”78. Contudo, para aplicar o instituto de desconsideração, a fraude deve estar diretamente ligada com o uso da pessoa jurídica.

Por fim, o requisito do abuso de direito, que é caracterizado pelo mau uso da pessoa jurídica, visto que deixa de cumprir com a sua finalidade social, se preocupando apenas em atender as vontades dos sócios ou administradores.

Desta forma, dispõe Tomazette79:

76 TOMAZETTE, 2020, p. 275.

77 Loc. cit.

78 Loc. cit.

No uso da personalidade jurídica, tais abusos podem ocorrer, e frequentemente ocorrem. Quando existem várias opções para usar a personalidade jurídica, todas lícitas, a princípio, mas os sócios ou administradores escolhem a pior, isto é, a que mais prejudica terceiros, nos deparamos com o abuso de direito.

O abuso de direito com relação a personalidade jurídica pode ser identificado em dois exemplos, que serão melhor demonstrados a seguir.

3.2.1 Subcapitalização

Entende-se por subcapitalização a incompatibilidade entre o capital social e as atividades previstas no Contrato Social da empresa. Portanto, o ordenamento jurídico exige um capital social mínimo adequado ao objeto social, sob pena de ser aplicado o instituto de desconsideração da personalidade jurídica.

Ocorre que a legislação brasileira deixou de estabelecer um valor mínimo para constituição de uma empresa. Assim explica Ramos80:

A legislação societária brasileira, no entanto, não prevê capital social mínimo para a constituição de sociedades (a EIRELI, que não é propriamente uma sociedade, tem capital social mínimo previsto em lei: art. 980-A do CC; as instituições financeiras e seguradoras também precisam ter um capital social mínimo, em obediência a normas infralegais das suas respectivas autoridades regulatórias), tornando difícil a caracterização da subcapitalização.

Sendo assim, é necessário fazer a interpretação por meio de algumas leis presentes no ordenamento. Como, por exemplo, o artigo 173, da Lei 6.404/76, e o artigo 1.082, II do Código Civil.

Nestes termos, disserta Ramos81:

A exigência de adequação do capital social ao objeto social é extraída de uma interpretação dos173 da Lei 6.404/1976 (“a assembleia geral poderá deliberar a redução do capital social se houver perda, até o montante dos prejuízos acumulados, ou se julgá-lo excessivo”) e 1.082, II, do CC (“pode a sociedade reduzir o capital, mediante a correspondente modificação do contrato: (...) II – se excessivo em relação ao objeto da sociedade”. Ora, se a lei menciona que o capital social pode ser reduzido quando se tornar excessivo em relação ao objeto social, está implícito que se espera uma congruência entre eles: se o capital não deve ser excessivo em relação objeto, também não deve ser insuficiente.

80 RAMOS, 2020, p. 535.

Essa questão já foi discutida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no julgamento do Agravo de Instrumento sob o nº 0076467-06.2012.8.26.0000, que se manifestou pela possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica no “caso de subcapitalização (capital social insuficiente para a atividade e riscos inerentes a ela)”82.

Contudo, antes de aplicar o instituto é necessário fazer uma análise a cada caso para averiguar se há a presença dos requisitos específicos do artigo 50 do Código Civil, quais sejam, o abuso de direito pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, sendo que somente nestes casos a autonomia patrimonial poderá ser afastada.

3.2.2 Dissolução irregular da empresa

Além da subcapitalização, outro tema que suscita questionamentos sobre o cabimento ou não da desconsideração da personalidade jurídica pelo abuso de direito é a dissolução irregular da empresa. Sua ocorrência decorre do encerramento das atividades sem a baixa perante a Junta Comercial, conforme dispõe Ramos.83

Contudo, a mera dissolução irregular não incide na desconsideração da personalidade jurídica, conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do EREsp sob o nº 1.306.553, “encerramento das atividades ou dissolução, ainda que irregulares, da sociedade não são causas, por si só, para a desconsideração da personalidade jurídica, nos termos do Código Civil”84.

Sendo assim, a desconsideração apenas poderá ser aplicada em caso de dissolução por má-fé, como, quando a sociedade é dissolvida a fim de esquivar das obrigações assumidas, contudo, os sócios constituem outra sociedade de mesmo objeto social.

Nestes termos, Tomazette85 afirma:

82 SÃO PAULO. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Agravo de Instrumento nº

0076467-06.2012.8.26.0000. 25ª Câmara de Direito Privado. Relator: Des. Vandeci Álvares. Julgamento: 15 ago.

2012. Publicação: 17 ago. 2012.

83 RAMOS, 2020, p. 533.

84 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Embargos de Divergência em Recurso Especial nº

1.306.553/SC. Relator: Min. Maria Isabel Gallotti. Segunda Seção. Julgamento: 10 dez. 2014.

Publicação: 10 dez. 2014.

A princípio, não há nenhuma ilicitude na criação de uma nova pessoa jurídica. Todavia, quando se cria um novo ente em detrimento dos credores da sociedade primitiva, dissolvida irregularmente, há claramente um desvio da função da pessoa jurídica. Ora, se os sócios pretendiam continuar a atividade exercida, o melhor caminho seria na sociedade já existente. A criação de um novo ente representa claramente um mau uso do instituto da pessoa jurídica.

Portanto, conclui-se que o mero encerramento da sociedade não é causa de desconsideração da personalidade jurídica. Contudo, se for demonstrado que a dissolução ocorreu com o intuito de lesar credores, e se configurar o abuso de direito pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, também será permitido o afastamento da autonomia patrimonial.

Desta forma, é necessário analisar cada situação de forma individual, logo, “nada mais justo do que conceder ao Estado, por meio da justiça, a faculdade de verificar se o privilégio que é a personificação e, consequentemente, a autonomia patrimonial, estão sendo adequadamente realizados”86, conforme afirma Requião.

Quanto aos requisitos do artigo 50 do Código Civil, serão tratados no próximo capítulo.

86 REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica. Revista dos

4. A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO CÓDIGO CIVIL E

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