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4. A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO CÓDIGO CIVIL E

4.2 ARTIGO 50 DO CÓDIGO CIVIL

A Lei nº 13.874/2019 também alterou a redação do artigo 50 do Código Civil, “modificando substancialmente a extensão e a compreensão para a caracterização da desconsideração da personalidade jurídica, o que nos parece oportuno já que proporcionará decisões mais justas”93, como destacam Venosa e Rodrigues.

Com isso, a nova redação passou a viger da seguinte forma94:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.

Diante dessa modificação, este dispositivo legal destaca que a desconsideração será aplicada apenas quando houver abuso de personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio da finalidade ou pela confusão patrimonial. Segundo Ramos, isso demonstra “o seu alinhamento aos ideais originários da

disregard doctrine95.

Ainda, antes da promulgação da Lei da Liberdade Econômica, tratava-se de requisitos amplos, sendo necessária a interpretação dos operadores do direito quanto as hipóteses de aplicação do instituto, gerando uma insegurança jurídica. Com a nova redação, o legislador buscou conceituar os requisitos de acordo com o consolidado

92 RAMOS, 2020, p. 47.

93 VENOSA; RODRIGUES, 2020, p. 109.

94 BRASIL. Código Civil Brasileiro. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm>. Acesso em: 02 dez. 2020.

entendimento do Superior Tribunal de Justiça, conforme se verifica pela exposição de motivos da MP 881/201996:

A mais prestigiada e segura conceituação dos requisitos de desconsideração da personalidade jurídica, conforme amplo estudo da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, e em alinhamento com pareceres da Receita Federal, é anotada em parágrafos no art. 50 do Código Civil, de maneira a garantir que aqueles empreendedores que não possuem condições muitas vezes de litigar até as instâncias superiores possam também estar protegidos contra decisões que não reflitam o mais consolidado entendimento.

Importante destacar, ainda, que houve a limitação da responsabilidade apenas aos sócios ou administradores beneficiados pelo abuso de forma direta ou indireta. Portanto, deve estar presente o nexo causal entre o abuso da pessoa jurídica e os benefícios recebidos pelos sócios ou administradores.

Por fim, é necessário fazer a análise de cada premissa destacada pelo artigo 50 do Código Civil, que serão tratadas nos próximos tópicos, para melhor entendimento.

4.2.1 Desvio de finalidade

De acordo com o §1º do artigo 50 do Código Civil, desvio da finalidade “é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza”97. A inclusão desse parágrafo gerou inúmeros embates, tendo em vista que antes da conversão em lei, a MP nº 881 de 2019 previa que, para aplicar a desconsideração em caso de desvio da finalidade, seria necessário demonstrar a conduta dolosa do agente.

Alguns defensores da redação original da Medida Provisória fundamentavam seus entendimentos com base na jurisprudência do STJ, conforme se verifica no julgamento do REsp 1572655/RJ98:

Para aplicação da teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica (art. 50 do CC/2002), exige-se a comprovação de abuso, caracterizado pelo desvio de finalidade (ato intencional dos sócios com intuito de fraudar

96 BRASIL. Câmara do Deputados. Exposição de Motivos Interministerial. Medida Provisória nº 881,

de 30 de abril de 2019. Disponível em:

<https://www2.camara.leg.br/legin/fed/medpro/2019/medidaprovisoria-881-30-abril-2019-788037-exposicaodemotivos-157846-pe.html>. Acesso em: 18 abr. 2021.

97 VENOSA; RODRIGUES, 2020, p. 109.

98 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.572.655/RJ. Terceira Turma. Relator: Min. Ricardo Villas Bôas Cueva. Julgamento: 20 mar. 2018. Publicação: 26 mar. 2018.

terceiros) ou confusão patrimonial, requisitos que não se presumem mesmo em casos de dissolução irregular ou de insolvência da sociedade empresária. Precedentes.

Assim demonstra Ramos, “parece-nos que o objetivo, nesse ponto, foi deixar claro que a caracterização do abuso com base em desvio de finalidade exige a comprovação do dolo, isto é, da intenção de lesar credores ou praticar ilícitos”99. Entretanto, Tartuce entende que a necessidade de comprovação do dolo não estava consolidada pela jurisprudência, sendo que “a Corte tem exigido o dolo apenas para os casos de encerramento irregular das atividades, quando a empresa as encerra sem honrar com as suas obrigações e altera formalmente as informações perante os órgãos competentes”100.

Esse entendimento pode ser verificado pelo julgamento do EREsp 1306553/SC101:

EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. ARTIGO 50, DO CC.

DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. REQUISITOS. ENCERRAMENTO DAS ATIVIDADES OU DISSOLUÇÃO IRREGULARES DA SOCIEDADE. INSUFICIÊNCIA. DESVIO DE FINALIDADE OU CONFUSÃO PATRIMONIAL. DOLO. NECESSIDADE. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. ACOLHIMENTO. 1. A criação teórica da pessoa jurídica foi avanço que permitiu o desenvolvimento da atividade econômica, ensejando a limitação dos riscos do empreendedor ao patrimônio destacado para tal fim. Abusos no uso da personalidade jurídica justificaram, em lenta evolução jurisprudencial, posteriormente incorporada ao direito positivo brasileiro, a tipificação de hipóteses em que se autoriza o levantamento do véu da personalidade jurídica para atingir o patrimônio de sócios que dela dolosamente se prevaleceram para finalidades ilícitas. Tratando-se de regra de exceção, de restrição ao princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, a interpretação que melhor se coaduna com o art. 50 do Código Civil é a que relega sua aplicação a casos extremos, em que a pessoa jurídica tenha sido instrumento para fins fraudulentos, configurado mediante o desvio a finalidade institucional ou a confusão patrimonial. 2. O encerramento das atividades ou dissolução, ainda que irregulares, da sociedade não são causas, por si só, para a desconsideração da personalidade jurídica, nos termos do Código Civil. 3. Embargos de divergência acolhidos.

Desta forma, a retirada do elemento “dolo” da atual redação, a Lei nº 13.874/2019 consagra a aplicação da teoria objetiva, com fundamento no artigo 187

99 RAMOS, 2020, p. 521.

100 TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil. 10. ed. São Paulo: Método, 2020. p. 162.

101 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Embargos de Divergência em Recurso Especial nº

1.306.553/SC. Relator: Min. Maria Isabel Gallotti. Segunda Seção. Julgamento: 10 dez. 2014.

do Código Civil. Conforme se observa pelos ensinamentos de Gagliano e Pamplona Filho102:

A desnecessidade de comprovar o dolo específico − a intenção, o propósito, o desiderato − daquele que, por meio da pessoa jurídica, perpetrou o ato abusivo moldou a teoria objetiva, mais afinada à nossa realidade socioeconômica e sensível à condição a priori mais vulnerável daquele que, tendo seu direito violado, invoca o instituto da desconsideração.

Outra questão a ser compreendida é que a mera alteração ou expansão da finalidade, sem o propósito de lesar credores e cometer ilícitos, não incide na desconsideração da personalidade jurídica.

Isso, em virtude da redação do §5º do artigo 50 do Código Civil, sendo expresso ao dizer que: “não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica”103.

Nas palavras de Tomazette104:

Ora, a simples expansão dos negócios ou a alteração da finalidade original da pessoa jurídica não podem ser consideradas motivos suficientes para a desconsideração, uma vez que esta visa a evitar o uso abusivo da personalidade jurídica, o que não é caracterizado em tais situações. A mudança do foco dos negócios é uma operação normal que não pode ser considerada suficiente para qualquer tipo de punição.

Sendo assim, será possível a desconsideração pelo desvio da finalidade, quando os atos ilícitos cometidos pelos sócios ou administradores excedam o limite do fim econômico ou social, da boa-fé e dos bons costumes, conforme preceitos do artigo 187 do CC105.

4.2.2 Confusão patrimonial

Quanto a confusão patrimonial, o § 2º do artigo 50 do Código Civil dispõe o seguinte106:

102 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil. 22. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 293.

103 BRASIL. Código Civil Brasileiro. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm>. Acesso em: 02 dez. 2020.

104 TOMAZETTE, 2020, p. 291.

105 BRASIL. Código Civil Brasileiro. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm>. Acesso em: 02 dez. 2020.

106 BRASIL. Código Civil Brasileiro. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm>. Acesso em: 02 dez. 2020.

Art. 50. [...]

§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por:

I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;

II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e

III - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.

O inciso I do referido dispositivo legal discorre sobre o pagamento de uma obrigação do sócio ou administrador pela pessoa jurídica ou vice-versa, contudo, faz a exigência do cumprimento repetitivo de obrigações. Ocorre que, de acordo com o entendimento de Tartuce, “a confusão patrimonial poderia estar configurada por um único cumprimento obrigacional da pessoa jurídica em relação aos seus membros; por um ato isolado, é possível realizar um total esvaziamento patrimonial com o intuito de prejudicar credores.”107

Com isso, é necessário analisar especificamente cada caso, tendo em vista que determinada conduta é comum em pequenos negócios, sem configurar o abuso da personalidade jurídica. Nas palavras de Tomazette108:

Embora entenda que é razoável essa exigência, uma vez que nos pequenos negócios esse tipo de pagamento cruzado é comum, é necessário ter cautela para que o requisito da reiteração seja adequado ao caso concreto. Assim, deve‐se ter o cuidado de exigir apenas algo que demonstre o abuso da personalidade jurídica, sem exigências exageradas nas provas.

Já o segundo inciso trata da transferência de ativos e passivos. Tomazette entende que ocorre “quando um sócio ‘adquire’ bens da pessoa jurídica, mas não repassa para pessoa jurídica os valores correspondentes”, assim como o empréstimo entre a sociedade e os sócios ou administradores, que “precisam obedecer às condições normais de mercado, sob pena de representarem também um mecanismo de mistura dos patrimônios”109.

Apesar de o legislador mencionar duas hipóteses de confusão patrimonial, o inciso terceiro criou uma cláusula geral, configurando os incisos anteriores em um rol meramente explicativo. Portanto, entende-se que os tribunais ficarão responsáveis por

107 TARTUCE, 2020, p. 162.

108 TOMAZETTE, 2020, p. 291.

analisar cada caso e decidir quando a desconsideração poderá ser aplicada em decorrência da confusão patrimonial.

4.2.3 Desconsideração Inversa

Além de fortalecer a autonomia patrimonial e especificar as hipóteses de desconsideração, a lei da liberdade econômica incluiu o §3º no artigo 50 do Código Civil, com a seguinte redação: “o disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica”110, tratando-se da chamada desconsideração inversa da pessoa jurídica.

Antes da Lei 13.874/2019, essa hipótese de desconsideração já era reconhecida no meio jurídico, sendo tratada no Enunciado 283 da IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, com a seguinte redação “é cabível a desconsideração da personalidade jurídica denominada "inversa" para alcançar bens de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiros.”111

Outrossim, o STJ já havia manifestado o seu entendimento, como se pode observar no julgamento do Recurso Especial nº 1.647.362-SP112:

Com a desconsideração inversa da personalidade jurídica, busca-se impedir a prática de transferência de bens pelo sócio para a pessoa jurídica sobre a qual detém controle, afastando-se momentaneamente o manto fictício que separa o sócio da sociedade para buscar o patrimônio que, embora conste no nome da sociedade, na realidade, pertence ao sócio fraudador.

Portanto, fica caracterizada a desconsideração inversa quando o sócio, pretendendo se esquivar das suas obrigações, transfere seus bens pessoais para o patrimônio da pessoa jurídica, como forma de lesar os credores.

110 BRASIL. Código Civil Brasileiro. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm>. Acesso em: 02 dez. 2020.

111 CFJ, Conselho da Justiça Federal. Enunciado 283, IV Jornada de Direito Civil. É cabível a desconsideração da personalidade jurídica denominada "inversa" para alcançar bens de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiros. Disponível em: <https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/249>. Acesso em 02 dez. 2020.

112 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.647.362/SP. 3ª Turma. Relator: Min. Nancy Andrighi. Julgamento: 03 ago. 2017. Publicação: 10 ago. 2017.

Contudo, há uma vertente pouco difundida que entende desnecessária a aplicação da desconsideração inversa, tendo em vista que é possível responsabilizar os sócios através de meio menos danosos a sociedade. Assim disserta Tomazette113:

No mesmo sentido, Alexandre Couto Silva afirma que “parece‐me estranha tal teoria por duas razões: 1a – Há a possibilidade de penhora das participações societárias do sócio para suprir o passivo do credor. 2a – No caso do negócio jurídico fraudulento, deveria este ser anulado, e não a pessoa jurídica ser desconsiderada.

No entanto, a desconsideração inversa vem sendo aplicada recorrentemente, particularmente no direito de família, “processos nos quais se percebe que um dos cônjuges desvia bens pessoais para o patrimônio de uma pessoa jurídica com a finalidade clara de afastá-los da partilha ou frustrar a execução de alimentos”114, conforme expõe Ramos.

Por fim, destaca que antes da inclusão da desconsideração inversa no Código Civil, o Código de Processo Civil já havia destacado essa possibilidade no artigo 133, §2º, confirmando o seu reconhecimento e utilização no meio jurídico.

4.2.4 Grupos Econômicos

O último ponto do artigo 50 a ser destacado é o §4º, que dispõe da seguinte redação: “a mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica”115.

No grupo econômico existe uma controladora que assume o planejamento e supervisão das demais sociedades. Nas palavras de Munhoz116:

Os ativos e passivos de cada sociedade transformam-se em ativos e passivos de todo o grupo, sendo transferidos e alocados entre seus diversos integrantes, no exclusivo interesse deste, segundo a estratégia empresarial globalmente concebida para enfrentar as exigências econômicas de cada momento.

113 TOMAZETTE, 2020, p. 292.

114 RAMOS, 2020, p. 525.

115 BRASIL. Código Civil Brasileiro. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm>. Acesso em: 02 dez. 2020.

116 MUNHOZ, Eduardo Secchi. Empresa Contemporânea e Direito Societário: Poder de Controle e Grupos de Sociedade. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002. p. 134.

Assim, conforme entende Tomazette “a constituição de um grupo societário é um mecanismo legítimo de expansão empresarial”117. Portanto, não basta a mera alegação de que a pessoa jurídica compõe um grupo econômico para ser desconsiderada, devem estar presentes os requisitos da confusão patrimonial ou do desvio da finalidade.

Isso posto, mais uma vez a Lei da Liberdade Econômica positivou um tema que já era consolidado pelo STJ, conforme se verifica no julgamento do Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial de nº 441.465/PR118:

Reconhecido o grupo econômico e verificada confusão patrimonial, é possível desconsiderar a personalidade jurídica de uma empresa para responder por dívidas de outra, inclusive em cumprimento de sentença, sem ofensa à coisa julgada. Rever a conclusão no caso dos autos é inviável por incidir a Súmula n° 7/STJ.

Em suma, Tartuce acredita que com essa disposição “foi positivada, portanto, a viabilidade jurídica do uso da desconsideração da personalidade jurídica para atingir outra pessoa jurídica, o que se denomina como desconsideração econômica, indireta ou sucessão entre empresas”119.

Concluída a análise demasiada dos requisitos da desconsideração da personalidade jurídica, positivados no artigo 50 do Código Civil, passe-se a verificar os aspectos processuais desse instituto.

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