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Patrick Troude-Chastenet2

Partiremos do postulado banal segundo o qual não se pode compreender um pensamento político abstraindo-se o contexto no qual ele nasceu. No caso de Jacques Ellul, esse contexto é ao mes- mo tempo rico e trágico. Dizer que ele nasceu em Bordeaux, em 6 de janeiro de 1912, interessa somente aos historiadores. Entretanto, não se pode impedir de notar que o autor de A técnica e o desaio

do século nasceu seis meses antes do naufrágio do maior navio do

mundo, dito insubmergível! Sob o ângulo dos efeitos sobre a opinião pública, a catástrofe do Titanic (2.196 vítimas) pode perfeitamente ser assimilada a um tipo de 11 de setembro aquático... O naufrágio acontece em uma época de fé cega no progresso técnico que suscitará bem rapidamente suas primeiras e duras desilusões... No mais, Ellul

1 Tradução de Caio Moretto Ribeiro.

2 Patrick Troude-Chastenet é professor de Ciência Política da Université Montesquieu Bordeaux IV; presidente da Association Internationale Jacques Ellul; diretor dos Cahiers Jacques Ellul; e membro do Conselho de Administração da The International Jacques Ellul Society.

conheceu duas guerras mundiais, a Crise de 1929, as agitações do 6 de fevereiro de 1934, a Guerra Civil espanhola, a frente popular, a ocupação, o holocausto, a resistência, a libertação, e o expurgo, a Guerra Fria, a Quarta República, a Crise do 13 de maio de 1958, o gaullismo no poder, os acontecimentos de maio de 68 etc.

Se nos aprofundamos no que pôde constituir a matriz de sua vi- são política, que qualiicaremos provisoriamente de “compromisso com o desapego” [engagementdansledétachement] (Troude-Chaste- net, 1992, p.185), o que devemos reter?

De seus anos de colégio, ele conservou uma forte alergia ao na- cionalismo xenófobo que viu se exprimir brutalmente sob seus olhos. Suas origens “cosmopolitas” – uma mãe franco-portuguesa nascida em Mendes, um pai ítalo-sérvio nascido em Viena – o imunizavam contra o vírus nacionalista bem disseminado em seu tempo. Na Fa- culdade de Direito, onde uma signiicativa maioria de seus condis- cípulos simpatiza com a extrema direita e reclama “a França para os Franceses!”, por relexo individualista, ele demonstra sua diferença. Desde o começo dos anos 1930, Jacques Ellul teve experiência com movimentos minoritários, uma vez que, nessa data – da qual falare- mos mais adiante –, ele já está engajado na aventura personalista. É precisamente porque ele se encontra na busca por uma terceira via, entre o individualismo liberal à americana e a fábrica de “soldados políticos” rotulados fascistas ou comunistas, que ele nunca entrou para a linha do PCF, como se pode ler frequentemente.

Na realidade, a grande crise econômica deixou sua família em necessidade. É, de fato, em 1929, na universidade, que ele ouve fa- lar de Marx pela primeira vez. O jovem Ellul encontra em sua obra, que ele começa a devorar, a explicação teórica da perda de emprego de seu pai: o capitalismo como fator de crises, regime condenável e condenado pela História. Ele se entusiasma com a leitura de A

ideologia alemã e toma contato com trabalhadores comunistas que

ele descobre, para sua grande decepção, mais preocupados com a linha do Partido do que com a hermenêutica marxista. Ellul se tor- nou, assim, não marxista, mas marxiano, pelo seu método de pen- samento. Ademais, ele sempre airmou que era Marx que colocava

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as boas perguntas e que ele lhe devia (juntamente a Kierkegaard e Barth) a essencialidade de seu desenvolvimento intelectual. Se Ellul nunca aderiu ao PC, em contrapartida, frequentou militantes socialistas e votou na Frente Popular [Front populaire] nas eleições legislativas de 1936, a única vez que admite ter votado em sua vida. Com sua esposa e alguns camaradas bordelenses, ele trabalha em favor dos republicanos espanhóis tentando conseguir-lhes armas, ainda que desaprovasse a violência “interna” que opunha anar- quistas e comunistas.

Sob “A Ocupação” [“L’Occupation”], quando a Faculdade de Estrasburgo estava submetida à Clermont-Ferrand, Ellul critica Pétain. Ele é, então, denunciado à polícia francesa por um de seus estudantes, mas é pela qualidade de ilho de estrangeiro que ele será destituído por Vichy, em virtude de uma lei que “afrancesa” a ad- ministração.3 De retorno à Gironda desde o verão de 1940, ele se

instala em uma pequena cidade onde se dedica a uma agricultura de subsistência e à preparação para o exame de agregação de Direito romano.4 Ele também ajuda a Resistência. Em sua casa, ele esconde

prisioneiros foragidos e famílias judias, fornece documentos falsos, serve de caixa de correio para os maquis da Gironda e de transporte até a linha de demarcação situada nas proximidades. Ele estabelece contatos com o movimento Combat, cuja palavra de ordem muito lhe agrada: “Da Resistência à revolução”.

Durante a Libertação [“Libération”], ele atua em vários proces- sos de colaboração e o faz de modo que o Expurgo [“l’épuration”] não dê lugar a nenhum excesso. Ele participa da delegação munici- pal de Bordeaux presidida pelo socialista Audeguil. A experiência dura somente seis meses, de outubro de 1944 a abril de 1945, mas é essencial para compreender sua percepção do campo político. De sua breve passagem na prefeitura de Bordeaux, ele conservará dei- nitivamente a ideia de que os eleitos estão à mercê dos burocratas e

3 O avô paterno de Jacques Ellul nascera em Malta, e Joseph, o pai de Jacques, era titular de um passaporte britânico.

4 Concurso de agregação de direito, na França, são os exames que servem para selecionar professores universitários para as faculdades de Direito. (N. T.)

de que os proissionais da política são impotentes frente à tecnocra- cia, ao poder da administração e dos especialistas. Essa conclusão explica seu absenteísmo nas seções públicas dos conselhos munici- pais (as decisões são tomadas em outros lugares!) e seu absenteísmo militante (por que votar em um sistema no qual não são os eleitos que governam e no qual o cidadão não pode exercer nenhum contro- le sobre o sistema de tomada de decisão?).

Entretanto, se ele recusa se apresentar na lista socialista para as eleições municipais da primavera de 1945, Ellul intervém ativamente nas eleições gerais de outubro de 1945. Trata-se, no mais, de sua úni- ca participação na política partidária.Ele igura na terceira posição na lista de União Democrática e Socialista da Resistência.5 Ele engaja-se

a fundo nessa campanha eleitoral. Os resultados não estão à altura dos esforços utilizados. A UDSR obtém na Gironda menos de 5% dos votos válidos e nem sequer um deputado. Com 33 anos, ele as- siste, impotente, ao retorno forçado dos velhos partidos da Terceira República. Ele guardará dessas experiências uma profunda descon- iança em relação à política que o fará notadamente recusar o posto de companheiro de chapa de Chaban-Delmas nas eleições municipais de 1947. Mas a sua desconiança é, na realidade, do poder (político) em geral, desconiança que o conduzirá a recusar um cargo de chefe de departamento [préfet] no norte. Deinitivamente, Ellul escolheu uma via oblíqua, já tomada quando dos anos personalistas...