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A política nas sociedades técnicas

Quais são as consequências, no campo político, da procura da eicácia, a qualquer custo, da primazia dos meios sobre os ins? Qual é o resultado provocado pela combinação do Estado e da potência técnica? Na sociedade técnica, o homem crê servir-se da técnica, mas é ele quem a serve. O homem moderno tornou-se instrumento de seus instrumentos. O meio transformou-se em im, à necessidade atribui-se o caráter de virtude! Nós vivemos não em uma sociedade “pós-moderna” mas em uma sociedade “técnica”, isto é, em uma sociedade na qual um sistema técnico se instalou. Ora, essa socieda- de viva tende cada vez mais a se confundir com o “sistema técnico”: produto da conjunção do fenômeno técnico e do progresso técnico. Mas é necessário precisar que, para Ellul, a sociedade técnica não é redutível ao sistema técnico e que existem tensões entre os dois. O “sistema” técnico é para a sociedade técnica o que o câncer é para o organismo humano. A existência dessas tensões permitem justa- mente ter esperança em uma mudança possível... Mudança radical, mas que não tomaria as vias da ilusão política, quer dizer aquelas da política tradicional! “L’engagement, c’estlamiseeengage”,7 resume

ele com uma fórmula de inspiração anarquista (Ellul, 1977, p.239). O ativismo partidário depende mais da coagulação sociológica do que a liberdade pessoal.

Na sociedade técnica, a política realça o necessário e o efêmero. Os governantes se esforçam para conservar as aparências de uma

7 A expressão forma um jogo de palavras em francês. É possível traduzi-la, tentando-se manter a relação, por “o engajamento é o ato de se engajar” ou “o compromisso é ato de se comprometer” (N. T.)

iniciativa, abandonada, na verdade, aos especialistas. Com acentua- ção weberiana, Ellul estigmatiza a evacuação da política pelo fato burocrático. Ele constata a inversão do modelo democrático de uma administração submissa à autoridade dos eleitos, doravante com a eicácia como único critério de legitimação. A sociedade técnica im- plica, além disso, em uma confusão do político com o social. Tudo é político, mas a política não passa de ilusão! A política substituiu a religião, o Estado moderno tomou o lugar de Deus! “Tudo é políti- co”, torna-se expressão ao mesmo tempo “de uma ideologia e desta realidade”, segundo a qual o corpo social inteiro está absorvido pelo político. Essa politização do social conduz necessariamente ao tota- litarismo do Estado. O Estado é totalitário, por essência, qual seja a sua forma.“O Estado dirige autoritariamente a vida total do homem e julga a verdade; ele assume todas as funções. Ele penetra no mais profundo das consciências... e ele deine o Bem...” (idem, 1966a, p.110). O poder do Estado é tão mais absoluto que ele recusa todo limite de ordem jurídica ou moral. Na verdade, não somente o Esta- do não está subordinado ao Direito, como ele reescreve o Direito da maneira como bem entende...

Essa desconiança sistemática contra o Estado igura como uma das principais constantes do discurso elluliano. Em uma sociedade técnica, a soberania popular não passa de um mito e o sufrágio uni- versal prova-se incapaz de selecionar bons governantes e de contro- lar suas ações. Também é tão ilusório crer no controle do povo sobre seus representantes quanto naquele exercido pelos eleitos sobre a administração e os especialistas. O Estado técnico é totalitário por natureza, independentemente de sua forma jurídico-institucional e de sua cobertura ideológico-política. À noite, todos os gatos são par- dos! Verdadeiro leitmotiv de Ellul desde os anos 1930... De onde vêm a sua indiferença (relativa) em relação ao conlito Leste/Oeste e a sua recusa de escolher uma forma de ditadura em detrimento de ou- tra, uma vez que todos os regimes perseguem ins idênticos: eicácia, potência... Dito de outra maneira, a combinação do Estado moderno com a ideologia técnica torna a política não só ilusória, mas perigo- sa... Contudo, longe de uma defesa em favor do apolitismo – igual-

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mente ilusório –, que não teria outra consequência senão reforçar a empreitada do Estado, a mensagem de Ellul visa a reabilitar as vir- tudes da resistência pessoal face ao Leviatã. Para o homem, existir é resistir! É necessário, então, desenvolver tensões (uma das palavras- -chave do discurso personalista), encorajar as tensões contra todas as tentativas de integração social. Convém, em suma, reinventar uma democracia que “há tempos desapareceu”. E tocamos, aqui, em um dos aspectos mais problemáticos de sua relação com a política.

Só podemos nos juntar a ele quando ele insiste na fragilidade intrínseca da democracia: formidável conquista permanente e não “regime normal, natural, espontâneo.” Porém, apesar de sempre ter reivindicado um realismo político “pé no chão”, ele reproduz o mes- mo erro de todos os idealistas desde Rousseau: por causa de uma visão muito exigente da democracia, ele renuncia a distinguir suas manifestações empíricas – necessariamente imperfeitas – dos regi- mes perfeitamente totalitários. Em vez de admitir com R. Dahl a dimensão potencialmente revolucionária da doutrina democrática, já que nunca plenamente realizada, ou ainda no lugar de sublinhar como C. Lefort seu caráter essencial de indeterminação, sua inven- ção permanente, seu acabamento estrutural, ele parece considerar as poliarquias, isto é, as democracias pluralistas, como ditaduras mascaradas. A verdade da democracia moderna se desnuda diante de seus olhos!

Na verdade, o que Ellul recusa, no mais profundo de si, é a parte de violência contida em toda forma de poder político, aí compreendi- da, uma vez que essa violência tem pretensões de legitimidade, como aquela do Estado moderno segundo a deinição realista de Weber. Ele não quis aprender nada sobre esse tema, nem do grande sociólogo ale- mão nem do deão da Faculdade de Direito de Bordeaux Léon Duguit. Ellul recusa a violência como meio especíico, como ultima ratio, não somente do Estado, mas da política como um todo. A política que, como nos lembra ainda Weber, tem por único papel o poder; a política que obedece a leis impiedosas, as quais é perigoso ignorar enquanto au- tor, e ingênuo negar enquanto observador... Ellul, que insiste na fun- ção catalítica dos cristãos, no papel singular do cordeiro no meio dos

lobos, Ellul, que prega não somente a não violência mas o não poder, não poderia jamais partilhar a admiração de Weber pelo personagem de

HistoiresFlorentines, que declara que seria necessário felicitar aqueles

que preferiram a grandiosidade de sua cidade à salvação de suas al- mas. Na verdade, se Ellul vira as costas para Weber, ele está ainda mais longe de um outro realista não menos ilustre: Maquiavel. Para Ellul, não se pode decididamente criar uma sociedade justa com meios injus- tos. O Mal não poderia engendrar o Bem, nem na política... Por quê? Bom, simplesmente porque ele colocou sua fé, de uma vez por todas, no Inconhecível, na revelação de Deus em Jesus Cristo. A todos aqueles que acham muito cômodo ignorar a vertente teológica de sua obra, vale lembrar que o próprio Ellul invoca suas convicções cristãs em alguns de seus livros de sociologia.8 Se desejamos esclarecer sua relação com a

política, é necessário, então, questionar mais profundamente seu siste- ma de valores. Como o observam justamente os pioneiros de Mélanges: “o conceito de totalitarismo aplicado a todos os Estados só tem sentido, no autor, quando relacionada a uma convicção religiosa [...].”(Dravasa; Emeri; Seurin, 1983, p.XIII).