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M ACROBIOÉTICA E TUTELA DOS DIREITOS HUMANOS NA CIVILIZAÇÃO

TÉCNICA

Roberto Galvão Faleiros Júnior1 e Paulo César Corrêa Borges2

O desenvolvimento da sociedade humana comportou inúmeros avanços e retrocessos. Podemos visualizar, especiicamente, diver- sos campos que objetivaram progressos para o bem-estar da vida humana concreta. De outro lado, percebe-se a desconsideração de pontos importantes para o pleno desenvolvimento das potencialida- des das manifestações humanas.

As necessidades biológicas direcionaram o esforço civilizató- rio para uma permanente tentativa de acúmulo de energia e otimi- zação do tempo, numa potencialização do trabalho com todas as

1 Roberto Galvão Faleiros Júnior é mestre em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Unesp, campus de Franca. Integrante do Núcleo de Estudos da Tutela Penal e Educação em Direitos Humanos e do Observatório de Bioética e Direito, ambos da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Unesp, campus de Franca, SP.

2 Paulo César Corrêa Borges é professor doutor da graduação e da pós-graduação em Direito; coordenador da pós-graduação em Direito na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Unesp, campus de Franca; coordenador do Núcleo de Estudos da Tutela Penal e Educação em Direitos Humanos – NETPDH; promotor de justiça em Franca.

nuances prementes. De forma ampliicada, Jacques Ellul enten- deu essas inluências no mundo social, na saúde e na política como “técnica”, direcionada em múltiplos recursos materiais invocados para uma constante eiciência, perpassando também pelo desen- volvimento econômico.

A constatação dos benefícios da técnica é visualizada com o pró- prio desenvolvimento social. É notória a criação de elementos que permitem uma vida mais cômoda, com facilidades para o transporte, prolongamento da vida com o avanço da medicina ocidental, acarre- tando em profícuas mudanças na vida do ser humano. No entanto, de forma lúcida, Ellul airma e demonstra que o industrialismo e a técnica sempre acompanham aspectos nebulosos e acabam tendo um valor essencialmente militar, numa busca pela sobrevivência desmedida do ser humano (Ellul, 1968, p.113).

Esse relevante aspecto demonstra a ínima importância atri- buída ao ser humano, tanto no desenvolvimento da ciência como no processo industrial. Dentro do mundo do trabalho, Ellul iden- tiica a proletarização e massiicação dos trabalhadores, escamo- teando a individualidade e a intervenção humana na esfera deste processo técnico.

Assim, Jacques Ellul, na tentativa de dissecar esses fenômenos, identiica a técnica contemporânea a partir de determinadas caracte- rísticas: pelo automatismo, autocrescimento, autonomia, universa- lismo, ambivalência e unicidade.

Todos esses aspectos inluenciam e desembocam transforma- ções políticas, sociais e até mesmo econômicas. O detalhamento desenvolvido pelo autor demonstra o aperfeiçoamento da civiliza- ção técnica na constante tentativa de formulação de novos métodos e processos desenvolvimentistas com o claro objetivo da máxima eicácia, numa racionalidade instrumental. Assim, é inerente a esse desenvolvimento a busca da eiciência e dos resultados propostos.

O automatismo da técnica moderna evidencia que o ser huma- no passa a não ser mais o sujeito da escolha. As variantes da técnica são efetuadas por si mesmas; assim, a relação ocorre e se desenvolve entre um meio técnico e um meio não técnico. Portanto, com a incu-

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bação da técnica, o meio todo é contaminado, e durante a evolução histórica ocorre a eliminação de tudo aquilo que não é técnico.

A escolha entre as várias técnicas é inviabilizada, pois a busca pela eicácia é priorizada em suspensão a outros importantes parâ- metros. Nesse sentido, Ellul considera ser necessária uma raciona- lidade na adequação dos meios expostos aos ins estabelecidos pela sociedade que se utiliza do instrumental técnico. Assim, o método ganha enorme relevância, pois permite que soluções mais convin- centes e que produzam melhores resultados possam ser escolhidas em detrimento de outras em razão de suas desvantagens.

Tal processo acaba direcionando ao que Ellul denominou de au- tocrescimento da técnica. Antes, pressuporiam que, com o desenvol- vimento técnico, ocorreria um amortecimento no seu desenrolar. No entanto, ele propõe e demonstra que, na realidade, o progresso técni- co é irreversível e de forma característica, efetuando-se em progres- são geométrica. Nesse viés, alerta que, com o desenvolvimento da técnica e o surgimento de diversos problemas, sua potencial solução só poderá ser concretizada com outra técnica, desencadeando em um novo progresso que gera outros inconvenientes, e assim por diante.

Dessa maneira, a caracterização do autocrescimento da técnica funda-se em si mesma, sendo sua gênese e próprio desenvolvimen- to. Esse desdobramento acaba consumindo inindáveis recursos na- turais, sobretudo em busca de energia para a sustentação do proces- so, o que, em vez de ediicar riqueza e independência, gera pobreza e subordinação. A técnica não se desenvolve para um im especíico, ela formula-se de forma autônoma, causal, desvinculada das neces- sidades humanas.

Ellul ressalta que a técnica nunca regride, sempre progride no intuito permanente de aumentar a eiciência de seus resultados, al- mejando poupar esforços.

Esse desenvolvimento técnico e sua condicional necessidade le- vam ao entendimento de outro aspecto, o da autonomia. Assim, a partir da autonomia da técnica em relação aos poderes instituídos, é possível as constatações de transformações sociais importantes. A tentativa de superação de obstáculos naturais evidencia a predispo-

sição da técnica para a superação destes ou também pela incorpora- ção, transmutando o organismo natural em artiicial, em máquina utilizável pelo homem. É nesse sentido que Ellul alertava para a relação entre homem e máquina, natural e artiicial, autonomia e desenvolvimento e a eliminação de imprevisões e variações.

Dentro desse processo, constata-se o universalismo técnico, pois a área de inluência e desenvolvimento não se restringe a alguns países. Com o processo de encurtamento do tempo e da distância, a questão geográica é alçada a relevante papel e ressalta que diversos países acabam aplicando parecidos processos técnicos. Essa consta- tação relevante leva alguns autores a relacionar a técnica como um aspecto da globalização, implicando em uniicação dos caminhos percorridos pelos países. De qualquer maneira, essa percepção não é apropriada automaticamente, pois percebe-se uma universalização da forma técnica, não do conteúdo produzido.

No entanto, tal expansão desmedida leva a dilacerações cul- turais irrevogáveis, acarretando numa sobreposição de valores ci- vilizatórios, o que forma perigosos desequilíbrios socioculturais. Os principais artíices desse processo são o comércio e a guerra. Paradoxalmente, essa desagregação acaba não formando novas or- ganizações sociais. Conscientemente, nota-se que em nome de um pretenso desenvolvimento técnico subordinam-se povos e países numa servidão irracional. O processo político acaba sendo parte desse processo avassalador e engendra novos tipos de sujeição.

É interessante a percepção de Jacques Ellul da relevância da preservação cultural e religiosa de diversos povos, em uma época na qual quase não se debatia o multiculturalismo ou o respeito entre as sociedades humanas. Relacionava a técnica, capital e trabalho e a coisiicação do ser humano.

Ocorre, também, que diante da criação e do uso da técnica, inúmeros problemas e malefícios acontecem, o que evidencia o seu aspecto de ambivalência, pois aumenta custos sociais e econômicos diante do seu desenvolvimento. Essas externalidades por vezes são escamoteadas, afastadas da própria compreensão do fenômeno téc- nico e também dos resultados propalados.

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Apesar disso, Ellul constata que a técnica como apreensão do concreto meio social acaba por desprezar a diferença individualizan- te dos sujeitos, tornando-se praticamente objetiva. É desse modo que ela acaba exercendo rupturas e construindo relações entre os ho- mens, comunicando-se na percepção universal da tecniicação. Um exemplo desse processo é o mundo cibernético e a forma de media- ção evidenciada entre os sujeitos.

Jacques Ellul preocupa-se ainda com outras dimensões da vida social em que o fenômeno técnico se desenrola: na economia, nas instituições, nas formulações políticas. De forma gradativa, acaba percebendo a constante relação entre a economia com desenvolvi- mento técnico.

Essas formulações ressaltam a situação umbilical que envolve a técnica e a civilização e detalhada por Jacques Ellul (ibidem, p.130):

Eis então a espantosa reviravolta à qual assistimos: vimos que ao lon- go de todo o curso da história, sem exceção, a técnica pertenceu a uma

civilização; era um elemento da civilização, englobada em uma mul-

tidão de atividades não técnicas. Atualmente, a técnica englobou toda

a civilização.

A unicidade da técnica engloba-se em um conjunto e constitui- -se numa totalidade que, relacionando-se com o universalismo, evi- dencia que o fenômeno técnico é único.

A profunda relação entre o fenômeno técnico e a organização social indica nuances objetivas e subjetivas. A necessidade constan- te de separar os elementos da técnica em diversos momentos é pro- fundamente criticada por Ellul, que ressalta a impossibilidade dessa dissociação e reairma a unicidade.

Nesse viés, portanto, que diante da constatação da unicidade, Jacques Ellul (ibidem, p.129) formula o entendimento da “civiliza- ção técnica”, ao airmar:

Isso signiica que a técnica que toma o homem por objeto se encontra bem no centro da civilização, e vemos esse extraordinário acontecimen-

to que a ninguém parece surpreender, formulado frequentemente pela designação de “civilização técnica”. A fórmula é exata, e é preciso ava- liar sua importância: civilização técnica, isso signiica que nossa civiliza- ção é construída pela técnica (faz parte da civilização unicamente o que é objeto de técnica), que é construída para a técnica (tudo o que está nessa civilização deve servir a um im técnico), que é exclusivamente técnica (exclui tudo o que não o é ou o reduz à sua forma técnica).

Assim, a própria civilização é englobada pela técnica e várias di- mensões, como a moral e a artística, passam a ser parte da própria técnica. Ainda mais, a compreensão dessa civilização seria realizada com a conjugação de cinco fenômenos, diz ele:

Acredito que essa transformação da civilização se explique pela conjun- ção, no mesmo momento, de cinco fenômenos: o desfecho de uma longa experiência técnica, o crescimento demográico, a aptidão do meio eco- nômico, a plasticidade do meio social interior, o aparecimento de uma clara intenção técnica (ibidem, p.49).

Percebe-se, portanto, que o autor francês preocupou-se em identiicar aspectos objetivos e subjetivos que possibilitariam o sur- gimento de uma civilização técnica, plural, globalizada. De certa forma, um aspecto importante para a compreensão da realidade so- cial desenvolvido por sujeitos concretos.

Portanto, a partir da construção de Jacques Ellul, dentro dessa civilização técnica, globalizada, moderna e ocidental, buscaremos retratar as crises paradigmáticas e a fragilização dos direitos huma- nos, em especial da macrobioética.