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A técnica e a Palavra Humilhada

A sobreposição da experiência visual estaria, no diagnóstico de Ellul, diretamente atrelada à eterna necessidade do homem de domi- nar e subjugar a natureza, pois o olhar é capaz de apreender o espaço

e se apropriar da amplidão, colocando o sujeito no centro do univer- so; combinando tais imagens, esse sujeito incorpora-se à realidade pelo olhar, mas não como mero coadjuvante – é o protagonista da realidade, o ponto a partir do qual se ordenam o universo e o espaço, tornando-se constitutivo de todo o cosmos, isto é, “o centro do mun- do” (idem, ibidem, p.9). Tal dominação visual do entorno é também o fundamento da técnica, diretamente atrelada à eicácia. Assim,

A vista do homem engaja a técnica. A imagem visual indica a totalidade de minha possibilidade de vida num mundo onde sou senhor e vassalo. Qualquer técnica funda-se na visualização e a supõe. Se não podemos transformar um fenômeno em visual, ele nunca será objeto de uma téc- nica. E a coincidência ica mais marcada pela eicácia. A vista é o órgão da eiciência. Reciprocamente, servir-se de imagens é eicaz (Ellul, ibi- dem, p.15).

Jacques Ellul concebe a técnica como um ente abstrato, a partir do momento que intermedeia todos os acontecimentos no mundo, operando como um espectro invísivel que nos domina a todos, sem termos como dele escapar, seja qual for a estratégia que adotemos, pois qualquer uma delas será também técnica em sua essência.

A ciência paradoxal, vacilante e crítica da modernidade, assim o é por estar condicionada a uma racionalidade técnica totalitária e ins- trumentalizada, e o progresso a que ela se destina está desvinculado de valores elevados. Esse progresso não implica o desenvolvimento humano em suas potencialidades profundas, mas coloca o homem a serviço de um projeto exterior, autoritário e coercitivo.

Desde os primórdios do desenvolvimento da cultura, o ser hu- mano utiliza a razão como estratégia de sobrevivência, por meio de técnicas para ultrapassar limitações físicas ou maximizar resultados pretendidos. Com o decorrer do tempo, a técnica passou, então, a ser uma expressão manifesta da racionalidade, mediando todas as relações do homem com seu entorno, desde as relações com natureza até aquelas estabelecidas com as instituições, com o poder, a ordem, o conhecimento, a produção de riquezas e a sociabilidade. Assim, de

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uma estratégia de sobrevivência, a técnica assumiu um caráter me- tafísico e inexorável, à medida que se subsumiu num dado objetivo da realidade, sem a qual nada pode ser concebido ou concretizado.

Na modernidade, esse caráter absoluto da técnica foi assumido e fortalecido pela supremacia de uma razão totalizante, que nega qual- quer possibilidade de compreensão do mundo fora de seus limites. A técnica passa não somente a ter propriedades independentes do homem, como o suplanta enquanto im da sua própria reprodução, e passa a operar a serviço de si mesma. A técnica moderna caracteriza- -se por sua propagação, ou seja, as muitas técnicas existentes criam um ambiente propício para que outras apareçam. Essa lógica técni- ca, transportada para a ciência moderna, forja a consagração abso- luta dos paradigmas como verdades, que vigorou muito tempo no pensamento cientíico e ainda reluta em se modiicar, pois, apoiados na estrutura metodológica da racionalidade moderna, os paradigmas cientíicos, políticos, econômicos e sociais se constituem e se perpe- tuam por estratégias idiossincráticas e entrópicas que os reforçam a alimentam continuamente.

O progresso técnico nunca regride, avança irrefreável e voraz, alijando tudo aquilo que a ele não se coaduna. Conquanto, não ne- cessariamente esse progresso está pautado pela ordem, como clama- va o dístico positivista; muitas vezes, essa voracidade totalitária é capaz de trazer o caos.

Para Ellul (1968, p.86), esse progresso não é simplesmente uma possibilidade, mas uma necessidade:

Os diversos sistemas técnicos invadiram a tal ponto todos os domínios, que em toda parte se encontram com modos de vida que, anteriormen- te, não eram técnicos; a vida humana, em seu conjunto, estava afogada pelas técnicas e propiciava atividades não reguladas racional ou sistema- ticamente. Ora, o encontro com a técnica revela-se catastróico para as atividades espontâneas. A atividade técnica elimina automaticamente, sem que haja esforço nesse sentido nem vontade diretora, toda atividade não técnica, ou então a transforma em atividade técnica.

Uma vez que a técnica se desenvolve trazendo problemas que só

podem ser resolvidos por ela, sua perpetuação é necessária. Porque o progresso técnico avança incessantemente, a evolução da técnica ocorre quando um homem, tendo o conhecimento de várias técnicas, une-as e cria uma nova técnica que possibilita os resultados espera- dos. O conhecimento de várias técnicas é adquirido, e, por isso, não é necessária uma inteligência particular para que ocorra um grande avanço técnico; assim, o progresso é a soma de diversos outros ante- riores, aperfeiçoando o conjunto. Quando uma nova técnica surge, faz-se acompanhar de algumas distorções e problemas inesperados também. Para liquidar esses problemas, novas técnicas aparecem e, novamente, novos problemas, os quais serão solucionados pela mes- ma técnica. É isso que possibilita o progresso cientíico, ou, nas pala- vras de Ellul (ibidem, p.88), o autocrescimento da técnica. Todas as descobertas da ciência não podem ser consideradas fatores isolados, localizados no tempo e no espaço, ou atribuídas somente a um pes- quisador, pois são frutos ou da evolução da multiplicidade potencial de um paradigma, ou da identiicação de uma anomalia decorrente da sua rigidez forjada por outros cientistas. O autocrescimento da técnica, portanto, ocorre também pelo esforço de todos os homens, completamente apaixonados por ela – daí sua outra característica: a unicidade (idem, ibidem, p.98).

Nesse contexto, a supremacia da imagem em nossos tempos não apenas deriva da técnica, como é impulsionada por ela e se presta ao seu projeto de desumanização dos seres humanos. É justamente porque existem os aparelhos técnicos que se pode por eles projetar as imagens, garantindo o seu triunfo. “A técnica é o meio da imagem, explica a possibilidade de sua difusão de um lado, de sua multiplici- dade de outro. E isso já comporta em si, como tentamos demonstrar, uma determinada lógica de desenvolvimento; quando o aparelho existe é preciso fazer uso dele” (Ellul, 1984a, p.149).

A técnica expurga o discurso porque precisa de um indivíduo visual. O progresso técnico não se explica pela palavra com a mes- ma eiciência como ocorre com um desenho, um gráico ou uma fotograia. O homem formado pelo meio técnico necessita viver de

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imagens. “A progressão técnica é coextensiva à representação visual. Urge que o homem seja polarizado pelo visual para tornar-se um ho- mem técnico.” (idem, ibidem, p.150). Assim, o império da imagem é construído na esteira do totalitarismo da racionalidade instrumen- tal, que destitui o valor de tudo o que não tem um im externo a si, pois o desinteresse pela literatura e a negação da ilosoia também passam pela impossibilidade de transformá-las em diagramas, em imagens acessíveis e apreensíveis.

Tornar a palavra visualizável através de um esquema que infor- me a língua e o discurso é fazer da palavra um objeto da técnica. Por isso, segundo Ellul (ibidem, p.154), o processo moderno de eliminar tudo que não era redutível à compreensão cientíica e à esquemati- zação visual não manifesta de maneira nenhuma um espírito livre, mas, ao contrário, um conformismo rigoroso de universalização da imagem e uma obediência à tecnicização generalizada. O visual presta-se a eliminar as ambiguidades, atendendo às exigências de uma razão totalitária. Essas constatações aproximam-se do diagnós- tico de Adorno e Horkheimer (op. cit., p.104), que dizem:

A unidade evidente do macrocosmo e do microcosmo demonstra para os homens o modelo de sua cultura: a falsa identidade do universal e do particular. Sob o poder do monopólio, toda cultura de massa é idêntica, e seu esqueleto, a ossatura conceitual fabricada por aquele, começa a se delinear. [...] O mundo inteiro é forçado a passar pelo iltro da indústria cultural. A velha experiência do espectador de cinema, que percebe a rua como um prolongamento do ilme que acabou de ver, porque este pretende ele próprio reproduzir rigorosamente o mundo da percepção quotidiana, tornou-se a norma da produção. Quanto maior a perfeição com que suas técnicas duplicam os objetos empíricos, mais fácil se tor- na hoje obter a ilusão de que o mundo exterior é o prolongamento sem ruptura do mundo que se descobre no ilme.

A invasão da palavra pela imagem e sua subordinação a esta úl- tima denotam uma importante faceta da sociedade moderna. Para Ellul, a situação da palavra é lamentável em nossa sociedade, tor- nando-se dispensável, pelo engendramento de uma cultura de inuti-

lidade do discurso. Esse desprezo, segundo ele, deve-se não apenas à supressão da palavra, mas, principalmente, ao excesso de discursos vãos e ocos, que esteriliza todos os conteúdos. Ellul (op. cit., p.155) assinala que esse é um processo moderno, uma vez que na Idade Média a palavra era extremamente valorizada.

A ruptura entre o ser falante e sua palavra é, então, emblemática. Não mais importa se o emissor realiza aquilo que professa, pois a palavra se torna anônima e se descola do vivido. Diz Ellul (ibidem, p.158) que o apogeu da palavra esvaziada de si mesma é o slogan, uma palavra “prostituída” a serviço de um aparelho, não importa qual seja.

Há um esforço da ideologia em se dissociar o sentido da pala- vra, pois “o homem das imagens é um homem sem passado” (idem, ibidem, p.159), ou seja, um sujeito a-histórico, incapaz de tecer crí- ticas, cuja palavra tornou-se uma eterna serva sem senhor. Nesse ponto, para ele, a palavra escrita é ainda mais refém, pois mostra-se equívoca e defensiva, submetida à arbitrariedade de um signiicante que não guarda qualquer relação com o signiicado que representa. Esclarece Ellul (ibidem, p.160):

A palavra privada de sentido no uso efetivo que dela se faz é assim trans- formada em algo que não é ela mesma. E a tentação era grande desde o início da escrita, por ser equivalente à imagem. A distorção aparece com clareza quando, numa mesma sociedade, há a redução de um si- nal representativo a uma sílaba ou a uma letra para o mesmo signo: por exemplo, um sinal que representa o mar acaba por ser uma letra ou uma sílaba sem nenhuma consonância com a palavra “mar”; o mesmo sinal pode, pois, ser lido de duas maneiras: uma vez, pronunciando a pala- vra “mar”, outra vez, pronunciando a letra “a”. Desse modo, a palavra torna-se incerta e mutável.

Para o pensador francês, tanto o aspecto arbitrário da lingua- gem quanto a supervalorização do signiicante conjugam-se para o desprezo do discurso. Em sua opinião, teorizar que a linguagem é uma criação artiicial, como fez a linguística moderna, é a ruína da

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linguagem e da palavra (idem, ibidem, p.166). Aqui, novamente, seu raciocínio encontra a ilosoia de Adorno e Horkheimer (op. cit., p.136):

[...] quanto mais completamente a linguagem se absorve na comunicação, quanto mais palavras se convertem em veículos substanciais do signiica- do em signos destituídos de qualidade, quanto maior a pureza e a trans- parência com que transmitem o que se quer dizer, mais impenetráveis elas se tornam. A desmitologização da linguagem, enquanto elemento do processo total de esclarecimento, é uma recaída na magia. Distintos e inseparáveis, a palavra e o conteúdo estavam associados um ao outro. [...] a decisão de separar o texto literal como contingente e a correlação com o objeto como arbitrária acaba com a mistura supersticiosa da palavra e da coisa. O que, numa sucessão determinada de letras, vai além da correlação com o evento é proscrito como obscuro e como verbalismo metafísico. Mas deste modo a palavra, que não deve signiicar mais nada e agora só pode designar, ica tão ixada na coisa que ela se torna uma fórmula petri- icada. Isto afeta tanto a linguagem quanto o objeto.

Então, Ellul airma que o último exemplo da perda de valor da palavra vem do computador, que trabalha com dados exatos e não aceita linguagem conotativa. A palavra encontra o absoluto despre- zo dos técnicos, que desconiam de um discurso falho, ávidos por torná-lo monovalente, eliminar as incertezas e fazer da linguagem apenas um acessório, um apêndice demonstrativo. Ellul (1984a, p.162) argumenta que essa concepção torna-se hegemônica na me- dida em que os grandes técnicos de nossa sociedade, entre os quais situa os administradores, os juristas, os economistas, os físicos, os químicos, os empresários, os médicos, os engenheiros, os psicólo- gos, os publicitários, os cineastas e os programadores, são os maiores detentores da linguagem e formadores de opinião.

A ciência, a burocracia e a máquina são as molas propulsoras da técnica, da razão esclarecida e do esvaziamento da palavra. Tudo isso está concatenado num mesmo projeto. Por isso, Ellul (1968, p.2) distingue a técnica da máquina. A máquina funciona como um ponto de partida para a técnica, a qual assumiu uma autonomia

quase completa em relação à primeira, e se aplica a domínios muito além da vida industrial, a serviço de uma razão vazia de ontologia. A necessidade que o homem sente em possuir técnicas cada vez mais avançadas torna-o parte da técnica; porém, acompanhando Hor- kheimer (2007, p.7), ao passo que o conhecimento técnico expandiu os horizontes da atividade e do pensamento humanos, a autonomia do homem enquanto indivíduo, bem como sua capacidade de opor resistência, de imaginar, elucubrar e tecer críticas, sofreu notória re- dução. O avanço dos recursos técnicos de informação fez-se acom- panhar de um processo de paulatina desumanização.

Seguindo esse raciocínio, a televisão, ao lado do rádio e do compu- tador, subsume-se no ícone da máquina a serviço da técnica. Quan- to mais avançada sua tecnologia, mais possibilidades de projeção de imagens capazes de constituir uma pseudorrealidade alienante ela se torna, e seu poder é assombroso. Ainal, segundo Ellul, se o aparelho existe, deve ser utilizado, e seu uso será também determinado pela técnica. Daí, decorre um brutal processo de alienação, que apassiva o sujeito, retirando-lhe qualquer possibilidade de escolha e crítica.

No âmbito da sociedade de consumo capitalista, torna-se um su- jeito unidimensional, ou seja, sua única possibilidade de interação com outros, o seu colocar-se no mundo só pode se dar através do consumo orquestrado pela indústria cultural. Aí vemos a absoluta derrocada, não só da palavra, mas de tudo o que possa reavivar a crítica, o ethos ou o ontos da subjetividade. Por isso, faz-se imprescindível compreender as relexões de Ellul acerca da televisão a partir do conceito frankfur- tiano de indústria cultural, e do conceito marxista de alienação.