• Nenhum resultado encontrado

Apontamentos sobre o conceito de natureza na urbanização da sociedade

2. NOTAS SOBRE O AMBIENTALISMO E OS NOVOS NEGÓCIOS “VERDES”

2.1. Apontamentos sobre o conceito de natureza na urbanização da sociedade

abordagem da ideia de natureza e do seu desdobramento prático: “O que é a natureza? Como reaprendê-la antes da intervenção, antes da presença dos homens e de seus instrumentos devastadores? A natureza, esse mito poderoso, transforma-se em ficção, em utopia negativa (...)” (LEFEBVRE, 2006, cap. 1, p. 36).

Provavelmente Lefebvre, ao escrever esse texto, ainda não tinha ideia do quão potente ia se tornar a expressão “mito poderoso” para definir a natureza, principalmente após o advento da “economia verde”, que tem nessa “utopia negativa” um baluarte para uma ampla gama de negócios.

As compreensões contemporâneas sobre a natureza surgem com a emergência do capitalismo industrial. A partir desse momento histórico se conformam conceitualizações de acordo com as condições materiais desse modo de produção. É possível afirmar que não há uma concepção e, sim, concepções sobre o tema, que podem ser separadas em duas, mais gerais.

Um primeiro entendimento da natureza a vê como externa ao ser humano (sociedade), ou seja, se define pela contradição em relação ao que é social. A “natureza natural” (SEABRA, 2003b), uma realidade autônoma à sociedade. Essa, por sua vez, está em busca de compreendê-la e dominá-la, para incorporá-la no processo de produção. Trata-se da natureza vista enquanto “recurso natural”, matéria prima, uma expressão do processo de mercantilização da natureza em curso.

A segunda concepção trata o ser humano e, seu comportamento, como sendo naturais, assim como o de qualquer outra espécie. Essa visão internaliza a sociedade: humano e não humano são a natureza. Trata-se, portanto, uma concepção universal. A ciência moderna colabora para essa concepção a partir da compreensão da totalidade

baseada nos conhecimentos da física, que se desdobram nos preceitos da química e, consequentemente da biologia. Essa universalidade tecida pela ciência desemboca até mesmo em uma “sociobiologia134”. Há que se destacar que a concepção universal da natureza, bem anterior a ciência moderna, origina-se em uma compreensão teológica do mundo.

Por mais que essas duas concepções pareçam inconciliáveis, no desenrolar da sociedade capitalista, ambos os entendimentos aparecem sistematicamente misturados e confundidos, sendo, de certa forma, complementares na percepção comum que se tem, atualmente, do conceito de natureza. Para Lefebvre (1969) a unidade possível da definição de natureza é dada, somente, pela confusão e, a ausência de uma estrutura de conceito torna a natureza uma “imagem conceito”: “A natureza, na sua confusão, une essas duas determinações. Ela as une apenas na confusão, o que significa que a unidade dessas duas determinações não é completada teoricamente ou praticamente, lúcida e transparente” (Ibid, p. 157).

Mesmo tendo consciência de que Karl Marx não estudou esse conceito diretamente, nos apoiaremos em outros autores que buscaram, através de fragmentos de sua obra, identificar uma concepção de natureza (SMITH, 1988; LEFEBVRE, 1969; SEABRA, 2003b). Marx não partilhava da ideia de natureza como exteriorizada, ou seja, de uma dualidade entre sociedade e natureza. Tampouco, sua visão se assemelhava a uma concepção universalizante de natureza que abrangesse o ser humano de um ponto de vista biológico do processo social, segundo a qual a “natureza humana é simplesmente um subconjunto da natureza biológica” (SMITH, 1988, p. 34). É possível afirmar, a partir dos comentadores de Marx, que há sim uma unidade entre sociedade e natureza, mas que parte de uma prioridade social, visto que o conceito de natureza surge da história humana e é, cada vez mais incorporado socialmente. Ou seja, é a partir de uma perspectiva histórico social que se pode refletir sobre a ideia de natureza. Diante dessa perspectiva Smith se esforça em propor uma base teórica marxista para esse conceito, através da ideia de produção da natureza (1988). Segundo essa teoria:

Tão logo os seres humanos se separaram dos animais, começando a produzir seus próprios meios de subsistência, eles começaram a mover-se mais e mais próximos ao centro da natureza. Através do trabalho humano e da produção da natureza na escala global, a sociedade humana colocou-se no centro da natureza (Ibid., p.107).

134 As concepções universais e externas da natureza podem assumir diferentes aparências e conter várias

Ao transformar suas forças essenciais em forças produtivas que se apropriam universalmente da natureza – uma apropriação física e também espiritual135

(objetiva e subjetiva) –, o ser humano pode criar um mundo para-si. Esse ato histórico faz com que a natureza se torne histórica e social (...) o que não implica dizer que a natureza só exista em função do ser humano, mas que ele a transforma ao objetivar suas forças para satisfazer suas necessidades – “do estômago ou da fantasia” - e, com isso, atribui historicidade a ela (FARIA, 2017, p. 14).

Através do desenvolvimento das forças produtivas o ser humano é capaz de criar suas próprias condições de “natureza”, por isso a ideia de produção da natureza. Isto é, observado através do desenvolvimento histórico, o substrato natural aparece cada vez mais como sendo socialmente produzido. A produção da natureza se torna a base de todo o mundo sensitivo como agora existe (SMITH, 1988). Mesmo para espaços que estão em nosso imaginário como “totalmente naturais” existem estudos que comprovam a decisiva influência histórica social na conformação de sua paisagem, como por exemplo, a floresta amazônica interpretada como uma floresta culturalmente produzida (FURLAN, 2006). Cada vez tem menos sentido a cisão conceitual do espaço entre “natural” e “produzido”, ainda mais diante do modo de produção capitalista:

A provisão social de sustento sempre envolveu uma certa "produção da natureza”. Nas sociedades capitalistas, entretanto, a produção da natureza muda de uma realidade incidental e fragmentada para uma condição sistêmica de existência social, de uma singularidade local para uma ambição global. (SMITH, 2006, p. 23, tradução nossa)

Não se trata, entretanto, de um completo e racional controle da natureza, pois nem tudo cabe dentro da lógica de produção e, nem essa lógica se mostra racional quanto às suas consequências, pelo contrário. Dito de outra maneira, a existência de eventos naturais extremos e incontroláveis impedem o ser humano de ser absoluto na

produção da natureza136. Além disso, a própria irracionalidade do processo capitalista impossibilita a dominação da completa produção da natureza, através de ocorrência de fatos indesejáveis e destrutivos como, por exemplo, a emissão de poluentes atmosféricos, ou a escassez de água potável137.

Portanto, a partir da noção de produção da natureza, a ideia de natureza externa é conceitualmente incoerente, já que impossibilita a compreensão do lugar

135 A apropriação da natureza por e para o humano é simultaneamente a apropriação do humano de sua

própria natureza humana (interior). Ao produzir o mundo exterior, o ser humana recria (produz) a si próprio (LEFEBVRE, 1969).

136 “Se vivemos agora em meio à "natureza social", isso não nega de maneira alguma o poder ou a

existência de processos "naturais". Gravidade, processo biológico, químico e a mudança geológica não podem ser sumariamente suspensas, e de modo algum devem suas origens ou operação contínua ao trabalho social, por mais que seus efeitos possam, de várias formas limitadas, ser revogadas, alteradas, reencaminhadas ou projetadas diferentemente” (SMITH, 2006, p. 23, tradução nossa)

137 Para conhecer uma descrição detalhada sobre a gênese e desenvolvimento do conceito de Produção da natureza, ver Cornetta (2017), capítulo 2.

humanidade e da historicidade na natureza. Esse problema conceitual se desdobra, pois a partir dele, os problemas reais são interpretados de forma fragmentada, o que, segundo o Cornetta, torna essa concepção “politicamente problemática porque traduzido em problemas ambientais, passíveis de serem solucionados tecnicamente, tiram o foco da história eliminando a possibilidade de um entendimento social e das relações políticas que moldam o ambiente.” (2010, p. 133) Inversamente, é eficaz a ideia de natureza natural, enquanto fetiche do natural/natureza, obscurecendo os fundamentos sociais de sua produção. Trata-se da realidade problemática da fetichização.

Da mesma forma que é ineficaz pensar uma dualidade entre sociedade e natureza, coloca-se a necessidade de rejeitar uma “biologização/naturalização” do processo social, que pode se desdobrar da concepção universal. Há que se ter consciência da natureza social do mundo que vivemos138 (SEABRA, 2003b). Ou seja, diante da confusão da imagem conceito natureza dispersada nas representações sociais, nos parece necessário enfatizar a negação de uma concepção universal de natureza, ancorada na biologia, visto que ela se desdobra em uma naturalização do processo social, que é ideológica pois acaba por mascarar certos comportamentos e legitimar injustiças sociais, como se fossem fenômenos naturais: “A competição, o lucro, a guerra, a propriedade privada, o erotismo, o heterossexualismo, o racismo, a existência de ricos e de despossuídos (…) tudo isso é considerado natural” (SMITH, 1988, p. 46).

A partir dessa breve exposição, cabe-nos pensar sobre como a imagem conceito de natureza se desdobra no atual processo de urbanização – dada a importância do aspecto simbólico para a produção do espaço. No imaginário social predomina uma visão que oscila entre universal e externa e que mescla uma visão científica com uma visão romântica da natureza. Essa última passou a ter relevância na medida em que a natureza deixou de ser ameaçadora e se tornou “domada”, ao longo do processo de modernização. A crescente urbanização da população levou os sujeitos a viverem suas experiências sensíveis diante da segunda natureza139, da grande cidade, sendo pautados pelo tempo abstrato da produção. Essa experiência, nem sempre agradável – porque opressora –, criou a carência social romantizada de uma “paisagem natural intocada”. Do ponto de vista do cidadão urbano, o “espaço natural” deixa de ser algo ameaçador ao

138 “(...) alguém digita o interruptor não precisa ter a menor idéia de que está tendo uma relação com um

rio ou outra força objetivada do mundo. E assim que acontece a relação simbiótica entre natureza e sociedade. A natureza participa de nossa vida em fragmentos, como obra humana. Isto define uma natureza social do mundo” (SEABRA , 1995, apud TOMÁS, 1996 :174).

139 A estrutura mercantil das coisas aparece como “lei natural”. A sociedade torna-se, assim, a realidade

ser humano e se torna algo belo, lúdico, poético. Algo para ser contemplado. Esse tipo de visão sobre a natureza surge exatamente dos habitantes da cidade, distanciados do que seria a natureza natural. O que de certa forma, expressa o mal estar do espaço urbano industrial, através de uma projeção do que poderia ser o seu outro.

Desse modo, segundo Smith (1988), o movimento de louvação e de “volta à natureza” ganha força – já no fim do século XIX (nos EUA) – especificamente entre os habitantes urbanos. Inicialmente, esse movimento aparece como uma necessidade da classe média, mas progressivamente se difunde para as classes mais pobres – pelo menos enquanto representação, pois não necessariamente se realiza na prática. Essa noção se difundiu tanto nos últimos anos, a ponto de se apresentar “em termos de novos valores envoltos em misticismos diversos, quase sempre relacionados à pregação de retorno ao natural como se fosse possível pensar e atuar com uma natureza primeira.” (SEABRA, 2013, p. 3) De certa forma, se trata de uma busca, momentânea, de “fuga” da lógica social do tempo-espaço abstrato da cidade capitalista. Da incompletude que a vida urbana gera se desdobram novas necessidades que – eventualmente – são remediadas pela possibilidade do consumo de mercadorias “naturais”. Observa-se que o “tempo livre” também se torna meio de reprodução das relações sociais de produção e do próprio capital.

Gozar férias no interior bruto tornou-se moda, especialmente depois que a fotografia permitiu a representação realista da paisagem (…) Nessas atividades e na onipresente “fuga” da cidade nos fins de semana, a visão de natureza inerente ao movimento de “volta à natureza” encontra sua expressão contemporânea (SMITH, 1988, p. 38)

A grande indústria se encarrega de oferecer produtos concernentes a essa representação da natureza. Destaca-se, especialmente, uma aproximação entre a ideologia de “volta à natureza” e a colonização dos tempos “livres”, que desemboca em uma atitude visual e contemplativa perante espaços que simulam uma suposta “paisagem natural intocada” (SANTANA, 1999).

Através dessa concepção de natureza externa e bela, se constitui um discurso que justifica, simbolicamente, a reestruturação espacial das cidades. Se propõe na própria área urbana “simulacros de natureza”: tentativas pontuais de se reatar relações harmoniosas com a natureza, “perdidas” no cotidiano urbano140.

140 Nesse sentido, há uma tendência a “museificação” e espetacularização do lugar “natural”,

transformando esse espaço em cenário e escondendo as relações sociais ali existentes no presente ou no passado. Casos como esses são muito comuns no chamado ecoturismo. Também podemos pensar assim sobre o Parque Anhanguera e os eucaliptais de entorno, antigos locais de silvicultura, cuja paisagem foi produzida através dos trabalhos dos lenheiros. Esses que inclusive participaram da histórica greve de

Na experiência urbana a natureza aparece como o “outro”, uma exterioridade que pode ser compensada no “tempo livre”: “A exterioridade é substituída pela universalidade, pelo menos no fim de semana” (SMITH, 1988). A “busca pela natureza perdida” como algo aparentemente diferente do urbano se caracteriza por ser um desligamento temporário do ritmo do trabalho, uma espécie de “fuga” e também de crítica ao cotidiano. No entanto, já é fato notório que o lazer e o turismo se configuram como uma forma de colonização do tempo de ócio, de modo que a “fuga” do trabalho acaba por se constituir somente no nível das aparências, visto que há uma reiteração das relações sociais de produção durante o “tempo livre” em contato com o que se crê “espaço natural”.

Dada as condições de uma sociedade urbana industrial, os elementos “naturais” são transformados em necessidades históricas e sociais (novas raridades), entretanto, esses são na verdade uma nova mediação para a produção, repartição e distribuição de riqueza.

“A volta à natureza” é, portanto, uma nova vertente da visão universal da natureza, que se constitui a partir do simulacro de movimento da exterioridade em busca da universalidade. É uma tentativa de resposta à objetivação da natureza dada pelo progresso industrial, que se apega a misticismos e simbolismos para uma possível conciliação com o cosmos perdido. Essa concepção imprecisa se aproxima mais da universalidade teológica do que da científica (biológica). Sua consumação se dá através da forma mercadoria, pelo “espetáculo” (DEBORD, 1997) re-união sociedade natureza, que ocorre pela justaposição lado a lado do humano e do “natural”, pelo consumo visual daquilo que se crê natureza, pela compra de mercadorias verdes... A imagem conceito de natureza é preenchida por simbolismos diversos, que acabam reproduzindo as relações sociais de produção141. “O cotidiano é percorrido à maneira do imaginário e o

imaginário distingue-se pouco do cotidiano. Mistura informe, que se crê natureza ou volta à grande Natureza” (LEFEBVRE, 1969, p. 181).

1962 da CBCPP e acabaram demitidos pelo “mau patrão”, que nunca os havia registrado formalmente (JESUS, 1992).

141 “Tudo passa a ser “meio ambiente”, não só a feiura, a sujeira, o barulho, como também os estados

psicofisiológicos possivelmente resultantes, tais como a fadiga ou a enfermidade (particularmente as enfermidades psicossomáticas). É preciso escapar a esse quadro, e escapar significa ingressar num novo sistema de consumo: o consumo dos lazeres no campo ou na montanha, consumo de “clorofila”, consumo de cores (e arrasamento dos velhos imóveis” (GEORGE, 1973: 8-9).

Tendo em vista essa breve reflexão sobre a imagem conceito de natureza na sociedade urbano industrial, se buscará contextualizar como se formou o atual ramo de negócios verdes a partir da distorção e desvio do movimento ambientalista.

2.2. A decomposição do ambientalismo: da contestação à ideologia e ao mercado