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1. O BAIRRO DE PERUS E A REESTRUTURAÇÃO IMOBILIÁRIA

1.6. O papel dos créditos de carbono na reestruturação imobiliária

Não é possível decifrar o papel da sustentabilidade na reestruturação imobiliária de Perus sem compreender a relação entre o bairro e o Aterro Sanitário Bandeirantes. Desde sua fundação, em 1979, esse receptáculo de resíduos domésticos foi sempre um estorvo na vida dos habitantes de Perus. Além do mau cheiro, da presença de insetos e ratos, o lixão trouxe uma série de doenças respiratórias e de pele para os moradores. A

113 Essa inferência sobre esses proprietários só se aplica às suas ações na região noroeste da RMSP. Não

comida cozinhada tinha logo que ser guardada, caso contrário, as várias moscas poderiam pousar sobre ela.

Do ponto de vista da tecnocracia gestora do espaço metropolitano, a situação

geográfica de Perus é favorável para a instalação de Aterros Sanitários: está nas

margens de duas rodovias, tem ampla disponibilidade de terrenos para acumular resíduos, está próxima do grande produtor de resíduos (a cidade de São Paulo), além de estar distante dos espaços frequentados pelas elites. A redefinição espacial proposta pelo Rodoanel tornou a região noroeste ainda mais propícia para sediar aterros, devido à facilitação para chegada de caminhões de diversas regiões. Afinal, a gestão de resíduos de uma grande cidade é também uma questão logística. Se são necessários espaços bem localizados para distribuir a infinidade de mercadorias consumidas, também o são para descartar seus restos.

O processo de metropolização e o crescimento constante da produção de lixo fez com que a gestão desses materiais se tornasse uma potencial atividade lucrativa, sendo parte constituinte de um novo tipo de indústria, que surgiu nas últimas décadas do século XX, a indústria da despoluição (SEABRA, 2003b). Como veremos mais adiante, é inerente à lógica capitalista transformar um problema social em um negócio potencialmente lucrativo. Isso se verificou em São Paulo, por exemplo, através da terceirização da gestão do Aterro Bandeirante, repassada da PMSP para a Loga114.

No início da década de 2000, esse Aterro já mostrava estar no fim de sua vida útil. A partir de então, dada a raridade do espaço, diferentes terrenos da região noroeste passaram a ser objetos de interesse do Estado e de empresas para receber mais um aterro sanitário, totalmente privado. A Ecolar Ecologia, Ambiente e Resíduos115 era a empresa

interessada em realizar esse empreendimento em Perus. Alguns terrenos vagos foram especulados para sediar o novo aterro, dentre eles: um ao lado do Parque Anhanguera, outro ao norte do distrito de Perus (onde hoje está previsto para ser o Nesp), além de outro no distrito de Anhanguera (ao lado do acampamento Irmã Alberta).

Entre os anos 2000 e 2006, houve diversas situações em que a população de Perus se organizou e insurgiu contra a instalação de mais um Aterro Sanitário e, também, pelo fechamento do já existente. Sem dúvida, a identidade de lutas incrustadas na história de lutas do bairro foi decisiva para essas grandes mobilizações, que

114 Empresa do grupo transnacional Solví, que por sua vez é uma holding controladora de mais de 30

empresas nos segmentos de Resíduos, Saneamento, Energia e Engenharia.

115 Empresa do grupo Vega, que na época pertencia à transnacional francesa Situ. Anos mais tarde seria

conseguiram bravamente barrar todos os projetos de novos Aterros para Perus, através da pressão popular, exercida em um novo momento de união de grupos do bairro. Por meio dos movimentos “Lixão, mais um não”, “SOS Fora Lixão” entre outros, a população se organizou e lutou, realizando trabalho de base, manifestações em avenidas e rodovias, abaixo-assinados e até um acorrentamento no portão do Aterro Bandeirantes. Esse último evento, já em 2006, foi para pressionar o fechamento desse aterro, o que, de fato, veio a se confirmar. Nessas situações a população de Perus reviveu seus melhores dias de lutas por melhores condições de vida urbana116.

Contudo, o novo Aterro Sanitário foi realmente construído na região noroeste, só que no município de Caieiras. Por lá também houve mobilização contra esse projeto, no entanto, insuficiente para barrá-lo. De modo que, desde 2003, está em operação uma área receptora de resíduos, totalmente privada, gerida pela empresa Essencis Soluções Ambientais – que também era integrante do grupo Situ e, posteriormente, Solví.

A influência do Aterro Sanitário Bandeirantes sobre o bairro de Perus não acabou quando esse parou de receber resíduos. Isso porque essa estrutura – que durante muitos anos era considerada como uma externalidade negativa117 do processo de produção – foi ressignificada com a ascensão da chamada economia verde118 e da

indústria da despoluição, de modo que, essa verdadeira montanha de lixo, passou a

atrair atenção dos investidores, pois poderia produzir uma modalidade de “energia limpa”, além de poder gerar ativos financeiros – os chamados créditos de carbono.

Essa ressignificação foi decisiva para o bairro de Perus, pois o dinheiro arrecadado pela venda dos créditos de carbono acabaria sendo reinvestido na região, através da projetos de “urbanismo sustentável”. Observemos esse complexo processo passo a passo.

O Aterro Bandeirantes foi durante 25 anos um dos principais destinos de resíduos da cidade de São Paulo, recebendo 35 milhões de toneladas nesse período em uma área aproximada de 140 hectares. Quando de sua desativação, no início de 2007,

116 Deve-se destacar que em 1995, o ex-prefeito Paulo Maluf chegou a desapropriar 34 mil metros

quadrados, de um total de 400 mil metros quadrados, para instalar um incinerador de lixo. O local também ficava próximo ao parque Anhanguera, mas o projeto não saiu do papel, pois, na época, os moradores fizeram veemente protesto paralisando as rodovias, avenidas e até a estação de trem.

117 Termo da economia política para se referir consequências da produção que são negativas para

terceiros, como, por exemplo, uma fábrica que polui a atmosfera ou a água.

118 Trata-se de um novo ramo de negócios surgido a partir da crise econômica dos anos 1970. A partir da

quantificação e mercantilização de algumas externalidades negativas da produção, é estabelecido um novo mercado. Ele é parte integrante do processo de reestruturação produtiva. Uma análise mais aprofundada sobre o tema será realizada no capítulo 2.

recebia aproximadamente sete mil toneladas diárias, ou seja, a quantidade equivalente à metade do lixo produzido na cidade (Rizzi, 2011). Os resíduos orgânicos acumulados no solo passam anos em processo de decomposição, liberando à atmosfera gases como o metano, que acentua o efeito estufa antropogênico. Esses gases, se queimados, podem ser utilizados como combustível para a produção de energia. Dessa forma, o aterro deixa de ser só um acumulo indesejado de resíduos e passa a ser visto como uma grande reserva de combustível. No entanto, o investimento na transformação desse gás em energia elétrica é mais caro se comparado a outras matrizes energéticas. O que o torna rentável é também poder gerar outra mercadoria, o crédito de carbono.

Esse tipo de produção de energia “sustentável” é considerado pela Organização das Nações Unidas (ONU) – de acordo com os termos Protocolo de Quioto119 – um Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) e que, por isso, gera créditos de carbono: um certificado de não-emissão para a atmosfera dos gases que podem intensificar o efeito estufa antropogênico. Esse certificado tem preço e pode ser vendido a quem tiver interesse de comprar. As compradoras são, normalmente, empresas que extrapolam os limites de emissão de Gases de Efeito Estufa (GEE) – estabelecidos a partir de Quioto – na produção de suas mercadorias e, por isso, adquirem créditos de empresas que “limpam” a atmosfera desses gases. Também atores do mercado financeiro, são potenciais compradores desse tipo de ativo, com a finalidade de revendê- lo posteriormente, em um momento de aumento do preço, funcionando, assim, como uma ação qualquer da bolsa de valores. Segundo o Protocolo de Quioto, os chamados países desenvolvidos são os que têm que bater metas de diminuição de emissão de GEE:

O MDL parte do compromisso de redução de emissão de CO² dos países desenvolvidos e pode ser realizado nos países em desenvolvimento. O princípio adotado é que, embora as emissões dos gases sejam feitas localmente a sua grande dispersão na atmosfera tem efeitos globais, criando a possibilidade de comércio de emissões entre países (CONEJERO, 2006, p. 10 apud RIZZI, 2011).

Dessa forma, uma empresa poluidora de um “país desenvolvido” – com metas de redução de gases poluentes – compra Reduções Certificadas de Emissões (RCE), os créditos de carbono, de empresas de “países em desenvolvimento”, controlando a

119 O Protocolo de Quioto é um tratado internacional, ratificado em 1999. Os países signatários

assumiram compromisso para a redução da emissão dos gases que agravam o efeito estufa antropogênico. Para isso, foram institucionalizados mecanismos de mitigação das mudanças climáticas, como a comercialização de “cotas de carbono”. O Protocolo de Quioto foi renovado em 2012, porém, como nenhum dos países centrais da economia mundial ratificou o tratado, ele perdeu sua efetividade, de modo que o mercado internacional de créditos de carbono diminuiu significativamente a partir de então.

emissão global desses gases na atmosfera120. As vistorias dos projetos de MDL, assim

como das transações financeiras, ocorrem sob o referendo da ONU e do Banco Mundial, que garantem a institucionalização da comercialização de moléculas da atmosfera global. Dessa maneira, uma empresa transfere para a outra o direito de propriedade de um certificado que a desobriga de diminuir seus índices de poluição atmosférica. Em outras palavras, a compra de RCE autoriza a empresa a emitir GEE. A transação desse papel financeiro pode mobilizar montantes de capital de ordem milionária.

Por conta dos termos estabelecidos pelo Protocolo de Quioto, um Aterro Sanitário deixa de ser – do ponto de vista do capital – uma externalidade negativa e se torna um ativo financeiro. Assim, em 2003, a PMSP firmou um acordo com a Biogás Energia Ambiental S.A. e o Unibanco S.A. para explorar os 2,4 bilhões de metros cúbicos de biogás (nome dado ao gás oriundo da decomposição dos resíduos orgânicos) contido no solo do Aterro. Através do “Projeto Bandeirantes de Gás de Aterro e Geração de Energia”, estabeleceram-se as bases para a construção de uma usina termoelétrica em Perus. Segundo o projeto121, referendado pela ONU, esse empreendimento pode gerar 22 megawatt de energia elétrica e, também, ser uma solução ambiental e financeira para evitar que o gás do aterro atinja em grande monta a atmosfera, evitando o agravamento do efeito estufa antropogênico122.

Os termos do acordo foram os seguintes: o Unibanco S.A.123 foi responsável por financiar a elaboração do projeto e, também, por viabilizar a maior parte do montante necessário para a construção da planta industrial da usina termoelétrica. Parte dos recursos veio através de um convênio com o Banco do Japão para Cooperação Internacional, em um total de US$50 milhões. O Unibanco, também, contratou a empresa Sotreq, representante da estadunidense Caterpillar, para fornecer os moto- geradores da Usina.

A Biogás Energia Ambiental S.A.124, por sua vez, investiu uma quantia menor

que o Unibanco em capital constante. Porém, é essa empresa a responsável por gerir a

120 É importante destacar que esse tipo de tratado internacional aprofunda o desenvolvimento desigual. 121 Para visualização integral do projeto, ver: <http://cdm.unfccc.int/Projects/DB/DNV-

CUK1134130255.56/view>. Acessado em 05 de agosto 2016.

122 O processo de queima do gás metano tem como produto final o gás carbônico, que é emitido à

atmosfera. No entanto, o metano é considerado 21 vezes mais impactante que o gás carbônico para o agravamento do efeito estufa antropogênico. Por isso, seu valor no mercado de créditos carbono é proporcionalmente superior. Também por isso a Termoelétrica é considerada um MDL.

123 Posteriormente comprado pelo Banco Itaú, transformando-se em Unibanco-Itaú e depois em Itaú. 124 “Consórcio formado pela Arcadis Logos Engenharia, da área de projetos energéticos do grupo Logos

Engenharia, pela Heleno & Fonseca, construtora e operadora do aterro Bandeirantes e pela holandesa Van Der Wiel, especializada em projetos de desgaseificação” (Revista Elo, 2005 apud RIZZI, 2011a)

produção de energia através da combustão do biogás. A PMSP, por sua vez, entra no acordo, pois é proprietária do terreno do Aterro e, por isso, tem direito a 50% dos créditos de carbono produzidos. Os outros 50% são de propriedade da Biogás S.A.125

Ao Unibanco, precursor e principal investidor do projeto, destina-se a produção de energia elétrica da usina: em um acordo ratificado em 2005 entre o banco, a PMSP e a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), foi concedida isenção de custos com energia elétrica para as agências na cidade de São Paulo, para as sedes corporativas e, também, para outras empresas agregadas ao grupo126. O acordo previu a isenção durante

uma década. Segundo o projeto, a Termoelétrica Bandeirantes pode gerar energia elétrica para abastecer uma cidade de até 300 mil habitantes. Contudo, na prática, grande parte dessa capacidade foi direcionada para o consumo do Unibanco (e posteriormente do banco Itaú)127 (Rizzi, 2011a).

O Aterro Bandeirantes gerou milhões de toneladas de Reduções Certificadas de Carbono, que foram acumuladas e negociadas em seguida. Os créditos pertencentes à Biogás são negociados diretamente com o Banco Alemão KfW Group128, desde 2006.

Os valores não são divulgados, mas têm como base o preço médio da RCE no mercado europeu.

A Prefeitura de São Paulo optou por vender seus créditos na BM&F Bovespa em três leilões diferentes. No primeiro, em 2007, arrecadou R$ 34,7 milhões com a venda de 808.450 RCE para o banco belgo-holandês Fortis. Em 2008, vendeu mais 713.000 RCE à empresa suíça Mercuria Energy Trading129, sendo 454.343 certificações

correspondentes ao Aterro Bandeirantes e 258.657 ao Aterro São João. O valor total arrecadado foi de cerca de R$37 milhões. De 2008 a 2012, a PMSP não leiloou créditos de carbono devido à crise financeira global, que rebaixou muito os preços das certificações. Em 2012, no terceiro e último leilão, a arrecadação foi muito menor: R$4,4 milhões por aproximadamente 530.000 RCE, também vendidas à Mercuria

125 A PMSP com a Biogás também tem parceria na produção de energia no Aterro São João, na zona

Leste de São Paulo.

126 Despacho nº 321 registrado pela ANEEL de 14 de março de 2005.

127 A energia gerada pela Termoelétrica é administrada pela Biogeração S.A., que pertence ao banco. Ela

revende o excedente de energia produzida para outros consumidores. Na prática, a Biogeração passa toda a energia produzida para a rede da cidade e a Eletropaulo credita para a empresa do Unibanco o mesmo volume fornecido.

128 Trata-se de um banco público alemão criado em 1948 para gerir os recursos do Plano Marshall.

Atualmente atua, sobretudo, como interface do governo alemão com os países em desenvolvimento, tendo foco em projetos voltados para sustentabilidade. Retirado de < https://www.kfw.de/KfW-Group/About- KfW/?kfwmc=kfw-stories > em 10 de outubro de 2015.

129 Empresa que tem atuação centrada no comércio mundial de petróleo, mas que atua com diversos tipos

Energy Trading. No último leilão, o preço de cada RCE foi de 3,30 euros, muito menor

do que os 19,20 euros do segundo leilão ou 16,20 euros do primeiro.

Tabela 4 - Arrecadação da PMSP com os leilões dos créditos de carbono ANO Quantidade de toneladas

de carbono negociadas

Valor aproximado arrecadado (em milhões de reais)

Preço da tonelada de carbono (em euros)

2007 808.450 34,05 16,20

2008 713.000 37 19,20

2012 530.000 4,5 3,30

Fonte: Prefeitura Municipal de São Paulo130

Desde então, a produção de energia e de créditos de carbono no Aterro Bandeirantes continua. Entretanto, nenhuma outra venda foi feita pela PMSP, que segue acumulando RCE, à espera de que o preço dessa mercadoria aumente nos próximos anos. Soma-se à crise econômica global, o fato do Protocolo de Quioto ter sido renovado sem a participação dos países com as principais economias do mundo, de modo que os preços dos créditos de carbono têm estado abaixo do que a PMSP considera razoável para vendê-los.

Nota-se, portanto, que a ascensão da indústria da despoluição gerou a possibilidade de extração de uma maior renda fundiária no terreno do Aterro, que se traduziu em créditos de carbono para a PMSP. A gestão municipal reverteu esse dinheiro em projetos urbanísticos “sustentáveis” na região noroeste. Essa foi uma iniciativa inédita de uma prefeitura, ao captar recursos no mercado financeiro internacional, através da comercialização de RCE, e aplicá-los em obras urbanas. Esses investimentos foram apresentados e propagandeados como algo que poderia sanar uma série de problemas existentes no bairro periférico de Perus e, mais do que isso, seria um meio de resgatar parte da dívida social com a comunidade, por conta dos anos convivendo com o lixão.

130 Créditos de carbono da Prefeitura são arrematados em leilão por R$ 34,05 milhões, PMSP, set/2007.

Disponível em < https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/comunicacao/noticias/?p=132347 > 23 de out. de 2018; Prefeitura arrecada R$ 37 milhões no 2º Leilão de Créditos de Carbono, PMSP, set/2008. Disponível em < https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/fazenda/noticias/?p=5293 > acessado em: 23 de out. de 2018; Prefeitura arrecada R$ 4,5 milhões em leilão de créditos de carbono,

PMSP, jun/2012. Disponível em <

https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/comunicacao/noticias/?p=106989 > 23 de out. de 2018.