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4. DA CIDADE SAUDÁVEL À CIDADE “SUSTENTÁVEL”: HIGIENISMO,

4.2. Considerações sobre o higienismo na cidade de São Paulo

A partir da noção mais geral de higienismo apresentada no item anterior buscaremos fazer uma breve descrição histórica da prática higienista na cidade de São Paulo, percurso necessário para a compreensão do ambientalismo atual nessa cidade.

270 Afinal são os interesses de valorização de valor que indicam a prática real da modernização e, não, o

As ideias higienistas chegaram ao Brasil com a corte portuguesa, em 1808, antes mesmo de existir por aqui uma sociedade urbana industrial. Os médicos e engenheiros portugueses e brasileiros marcaram presença nos congressos ocorridos na Europa ao longo do século XIX e trouxeram novas ideias a respeito das questões sanitárias. Apesar de uma realidade completamente diferente, os modelos higienistas europeus foram sendo transpostos sem aprofundadas adaptações às especificidades ambientais e sociais das cidades brasileiras. Ideais fora do lugar (SCHWARZ, 1994) para um país rural, escravocrata, sem indústrias e com um ambiente completamente distinto do europeu271.

Na capital paulista, a partir da metade do século XIX, se definem mais claramente ações higienistas. O grande crescimento populacional da cidade – causado, especialmente, pela chegada de imigrantes, escravos/ex-escravos e fazendeiros – e a modernização – associada ao café, às indústrias de bens de consumo e ao imperialismo – foram as condições fundantes do higienismo em São Paulo.

O núcleo urbano colonial assentava-se sobre a colina, entre os rios Anhangabaú e Tamanduateí. As várzeas não eram utilizadas para construções e, de certa forma, barravam a expansão desse núcleo. Em 1848 começaram as primeiras obras de retificação e drenagem no rio Tamanduateí, um projeto para domesticar a dinâmica desse rio meandrante, de águas lentas, que causava enchentes indesejadas, “problema” não resolvido com essa ação. Desde então diversas outras intervenções nesse sentido foram realizadas nesse rio.

As várzeas de diferentes rios próximos ao centro urbano – em constante expansão – foram consideradas importantes focos de pestilências. Buscava-se sanear os rios cujas águas recebiam maior quantidade de esgoto e resíduos, pois, com avanço da urbanização, existiam riscos à saúde pública. Além disso, interessava às indústrias a domesticação dos rios para poder utilizá-los como força produtiva e, também ao mercado imobiliário, que vislumbrava novos espaços para valorização272.

Até então as várzeas, que eram espaços de lazer ou uso cotidiano, foram se transformando, recebendo novos usos, tornando-se ambientes inóspitos. A nova

271 Nessa sociedade, predominantemente, negra, e de elites brancas, a transposição de ideias eugênicas

ganhou força para justificar a dominação racial pós-abolição, de modo que a higienização social teve importante traço de higienização racial – especialmente em São Paulo, como veremos mais adiante.

272 A aprovação da Lei de Terras, em 1850, foi fator essencial para alavancar intervenções sanitaristas

sobre as várzeas, pois, a partir dela, a terra se tornou uma mercadoria no país. A situação geográfica cidade de São Paulo, centralidade financeiro comercial do Brasil, gerou um valorização exponencial para as novas mercadorias imobiliárias e fundiárias.

ocupação dessas terras fluviais era associada diretamente aos trabalhadores mais pobres e à desordem.

As campinas verdejantes das várzeas, onde animais pastavam bucolicamente – e onde os paulistanos namoravam e passeavam, ou se banhavam e lavavam a roupa, conforme a ocasião - eram lugares que os rios requisitavam para suas águas, na época das chuvas. Com o súbito crescimento de São Paulo, esses lugares foram sendo rapidamente transfigurados. As antigas campinas das várzeas logo passariam a condição de “terrenos insalubres, infectos; lugar inseguro e de frequentação suspeita”. (TOMÁS, 1996, p. 83)

Às obras sanitaristas de domesticação dos rios atingiram o Anhangabaú, o Tamanduateí273 e outros córregos por onde a malha urbana se expandia, no final do século XIX e começo do XX. A normatização higienista se consolidou através do Código de Posturas de 1886 e do Código Sanitário do Estado de 1894, que impuseram uma série de novas normas das quais merecem destaque a proibição de cortiços no centro da cidade (até então principal modo de morar da classe trabalhadora de São Paulo) e a proibição de costumes negros que, supostamente, significavam uma afronta à cultura e à limpeza da cidade.

Os pobres foram retirados das áreas centrais e de valorização imobiliária, foram- lhes designadas as lonjuras da cidade274. “A higienização-e-modernização da área

central da cidade, de fato, inaugura uma era de contínuo ‘empurrar para adiante’ os problemas da miséria.” (TOMÁS, 1996, p. 64). Nos extremos urbanos a fiscalização sanitária não se fazia (tão) presente, ao contrário das áreas “embelezadas” do centro. Portanto, as práticas “anti-higiênicas” nunca foram abolidas da cidade. Além disso, segundo os códigos higienistas, matadouros, hospitais de isolamentos, entre outros tipos de usos do espaço deveriam ser “invisibilizados” e, necessariamente, estarem nas bordas da cidade.

A segregação socioespacial ganhava contornos na cidade de São Paulo. A possibilidade de extração de renda fundiária definia a hierarquização de suas áreas. As classes mais ricas ocupavam, normalmente, os topos de colinas, as “áreas secas” da região central em direção à zona sudoeste (áreas que receberam mais investimentos em infraestrutura), enquanto que as classes trabalhadoras tendiam a se alojar, notadamente, na parte leste da cidade e/ou em fundos de vale, ou ainda no cinturão suburbano, próximo às ferrovias e indústrias.

273 Uma das intervenções sanitaristas sobre o Tamanduateí será analisada no item final deste capítulo. 274 Isso foi feito de forma extraoficial, mas também oficialmente, com incentivo fiscal para quem

A expulsão dos pobres do centro foi também uma oportunidade de obtenção de ganhos imobiliários/fundiários em São Paulo e levou a extensão do tecido urbano:

A instalação das indústrias ao longo das ferrovias estimulava os operários a se estabelecerem em torno das estações ferroviárias fora da “cidade”, onde poderiam adquirir terrenos, ou alugar casas, a preços mais baixos. Surge, assim, extenso “cinturão de loteamentos residenciais suburbanos”, mais ainda escassamente edificados e ocupados. A enorme oferta de lotes baratos – pois distantes e desprovidos de benfeitorias urbanas –, podendo ser pagos à prestação, com a possibilidade de serem ocupados sem os custos e os aborrecimentos envolvidos na feitura e aprovação de uma planta e sem o risco de perturbação pela fiscalização, com acesso ao precário sistema de transporte público viabilizaram o mercado de loteamentos distantes e criaram uma alternativa habitacional de massa para os trabalhadores (BOTELHO, 2006, p. 241).

Chamamos a atenção para o fato de Botelho destacar que um dos motivos para os trabalhadores buscarem locais distantes do centro – como Perus, por exemplo – foi para se afastar do risco de perturbação pela fiscalização sanitária. Através dessa passagem se nota o descompasso entre os ideais higienistas (que se aplicavam às zonas centrais da cidade) e a realidade da maioria da cidade.

Nota-se que as medidas higienistas alavancaram dois produtos imobiliários distintos: as construções higiênicas do centro e os loteamentos para trabalhadores nos subúrbios. As ligações construídas para os novos bairros burgueses possibilitaram ganhos fundiários-imobiliários de grande monta. A produção de casas, quartos de aluguel e o loteamento de chácaras gerou ganhos para aqueles que detinham datas ou sesmarias, para aqueles que grilaram terras e para quem comprou terras ainda desvalorizadas, além é claro, de lucros para as empresas produtoras de imóveis. A demanda por moradia na cidade crescia exponencialmente, a população da cidade quadruplicou entre 1873 e 1893 (ROLNIK, 1997, p. 26), o que culminou em uma relativa raridade do espaço, que era disputado. Segundo Botelho (2006, p. 238), “entre 1887 e 1890 o preço médio dos terrenos em São Paulo teria triplicado”. As ações sanitaristas eram parte da disputa das classes pelo espaço urbano e, tiveram como efeito a valorização e a incorporação de novas terras ao mercado.

A expansão urbana logo levou as obras sanitaristas aos rios Tietê e Pinheiros. Essas intervenções evidenciaram a relação entre o higienismo e os negócios associados à criação de propriedades de terras. Segundo Seabra, o relatório da comissão de Melhoramentos do Tietê de 1926, já advertia sobre o fato de que “nas várzeas as cercas

já andavam” (2013, p. 19), indicando a existência de interesses ligados à propriedade

dos terrenos ribeirinhos, que envolvia entre outras práticas, a grilagem (Ibid.). A introdução no mercado das terras alagadiças das margens dos rios – realizada graças ao

sanitarismo – mostrava-se, no início do século XX, uma importante fonte de lucros, inclusive transnacionais, como mostrado por Seabra (1986), através da ação da Light. Os habitantes que extraiam argila, areia ou pedregulhos desses rios ou mesmo o utilizavam para lazer, pesca ou para lavar roupas acabaram sendo expropriados nesse processo de formação de propriedade.

É possível afirmar que a transformação de rios e várzeas em forças produtivas reproduz uma dinâmica cíclica: mobilização da força de trabalho, segregação, expansão territorial, intervenções sanitárias, mobilização da força de trabalho, segregação... processo que se repete ao longo da metropolização de São Paulo. É claro que esse ciclo não se dá de forma evidente na realidade, até porque ele é pleno de contradições.

Também se pode reconhecer que a apesar de a modernização espacial ter gerado benefícios sociais (como a energia elétrica ou o parcial controle de enchentes, por exemplo) estes vieram acompanhados por um movimento de despossessão:

E, naturalmente os expropriados, proscritos nesse processo experimentaram nos seus corpos, o que de fato é o desenvolvimento desigual. Mas é assim que ocorre a socialização da natureza. Sim, porque, a subtração dos elementos do mundo natural (rios para navegação e alimento; várzeas com as argilas para tijolos e cultivos) ocorre em relação a indivíduos concretos, que não encontram os meios para experimentar alguma positividade nessas transformações. (SEABRA, 2013, p. 8)

Os negros, lançados à “liberdade” e, também os caipiras, foram alvos principais das práticas higienistas, notadamente da ação da polícia sanitarista, que reprimia seus costumes, sua não inserção na produção, sua pobreza etc. É possível afirmar que esses integravam a população supérflua brasileira275, frações mais pobres da classe

trabalhadora que passaram, no imaginário social, a serem associadas à “vagabundagem” sendo muitas vezes responsabilizados por problemas sociais e ambientais. Vale ressaltar que parte da prática higienista firmou-se a partir da ideia de formação da “consciência sanitária”, de modo que, não cabia apenas ao Estado fiscalizar a população, mas também aos próprios cidadãos vigiar uns aos outros, fato que estimulou estigmatização a social de negros e caipiras276.

Higienismo, branqueamento da população e embelezamento das cidades eram ideias associadas à modernização do Estado-nação brasileiro277. Sob a influência de

275 Sendo que milhares deles foram enviados para reclusão no Hospital Psiquiátrico do Juqueri.

276 Com a ascensão do higienismo suas ideias se popularizaram e se tornaram decisivas para a formatação

da representação de cidade e cidadão “ideal” do senso comum. Por isso, afirmarmos que higienismo cumpriu um importante papel simbólico na reprodução das relações sociais.

277 Em 1918 se institucionalizou a “Sociedade Eugênica de São Paulo”, uma associação de intelectuais e

políticos que buscava colocar o Brasil no “rumo do progresso”. Dentre outras ideias absurdas esse grupo acreditava que para o Brasil se modernizar teria que passar por um branqueamento da população. Essa

ideias higienistas e eugênicas, o espaço paulistano começou a ser tomado por chaminés, bulevares, hospitais de isolamento, casas higienizadas. Paisagem que se consolidava enquanto se combatia os focos de pobreza, os “maus hábitos” e se incentivava a imigração de não-negros. Esse era projeto para um “desenvolvimento saudável”. Assim, a São Paulo colonial foi destruída e reestruturada sob a lógica do urbanismo sanitarista.

Com o desenvolvimento das forças produtivas, ao ideal higienista somou-se outro paradigma modernizador e decisivo na forma como se apropriaram os rios na cidade de São Paulo: o rodoviarismo assentado sobre fundos de vale. Esse modelo de inserção dos rios no espaço produtivo começou a se estabelecer nos anos 1930, tornando-se hegemônico da metade até o final do século XX. Apesar de que parte das ideias higienistas foi perdendo crédito científico e social, ao longo desse século, elas não foram completamente superadas. Por isso, é possível classificar a solução de engenharia rodoviária de lidar com os corpos d´água urbanos como tributária das antigas práticas higienistas.

A opção por uma urbanização rodoviarista, assentada sobre a rede hídrica, levou a uma readequação espacial da cidade. A escolha do espaço das várzeas para receber as avenidas foi uma solução política e, também, econômica. Por serem pouco úteis à produção, se não domesticados, o Estado associou a intervenção sanitarista nesses espaços à produção de infraestruturas de circulação, garantindo assim, um aproveitamento produtivo para cada “palmo de chão” urbano. Essa foi uma solução mais barata, pois envolvia menos desapropriações ou desapropriações menos custosas, já que os terrenos não saneados eram menos valorizados. As avenidas de fundo de vale amplificaram a expansão da malha urbana e foram decisivas para a consumação do processo de metropolização. Isto posto, uma nova rodada de expropriação se configurou em distintos pontos da cidade onde as várzeas se transformaram em avenidas.

Nos anos 1980 e 1990, “o poder público municipal de São Paulo estabeleceu como estratégia conjugar as obras de canalizações de córregos à construção de avenidas, aproveitando a disponibilidade de recursos federais para obras de saneamento básico”278. (BIDERMAN et al., 2004, p.87) Isto é, a PMSP se aproveitou dos recursos

do Planasa (Plano Nacional de Saneamento) para produzir parte das avenidas de fundo

noção, que já existia desde o século XIX, foi amplamente propagada por parte da elite e, inclusive, culminou em políticas oficiais de branqueamento. É possível especular que o estado de São Paulo foi o local da política de branqueamento mais efetiva.

278 As estruturas de saneamento tendem a acompanhar o percurso da rede hídrica, pois o esgoto se move

de vale, fato que atesta a lógica de maximização de produtividade do espaço urbano, o que levou a “domesticação” e transformação em força produtiva de grande parte dos rios do centro expandido da cidade e adjacências279.

Tendo por base esse histórico de como a filosofia higienista embasou a forma de o Estado lidar com a população e com os rios na cidade de São Paulo, prosseguiremos nossa análise através da entrada de um novo paradigma na maneira como o urbanismo encara essas contradições, a “sustentabilidade”.

4.3. As moradias em fundo de vale e os parques lineares como política pública