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1. O BAIRRO DE PERUS E A REESTRUTURAÇÃO IMOBILIÁRIA

1.7. O material e o simbólico na reestruturação imobiliária

Do ponto de vista da reestruturação imobiliária, esses investimentos urbanos – pagos com o dinheiro dos créditos de carbono – fazem parte de um conjunto de fatos que buscam atrelar ao bairro de Perus uma imagem de local ambientalmente equilibrado. Outro fato que corrobora para essa imagem de sustentável, que se busca imputar à Perus, parte de uma mudança de interpretação recente sobre existência de áreas vegetadas da região. Os vários hectares rurais do entorno de Perus – oriundos da silvicultura e outros tipos de produção agropecuária – passaram a ser enxergados como áreas que colaboram com “sustentabilidade” em uma metrópole caracterizada pela escassez de áreas verdes. O que era área de produção de matéria-prima e de especulação imobiliária ganhou um novo valor de uso e passou a ser visto como “saudável para o meio ambiente”.

Além disso, a posição da região noroeste, em meio a diversas unidades de conservação, traz mais fundamentos à representação desse bairro como “sustentável”. A partir dos anos 1960, começaram a surgir as primeiras áreas de preservação ambiental na região noroeste da capital Paulista. Em 1961, foi criado o Parque Estadual do Jaraguá e, em 1963, o Parque Estadual da Serra da Cantareira. Ambos são vizinhos próximos de Perus, muito importantes para a conformação que a paisagem do entorno do bairro tem nos dias atuais. Em 1979, foi criado o Parque Anhanguera, maior parque municipal de São Paulo131, sobre parte da área de silvicultura da família Abdalla. Mais ao norte, nos municípios de Caieiras e Franco da Rocha, está outra grande unidade de conservação, o Parque Estadual do Juqueri, criado em 1993, em parte das terras do antigo Hospital Psiquiátrico do Juqueri.

Tanto na materialidade, mas ainda mais no nível das representações, a existência desses parques e das áreas rurais remanescentes traz maior aderência à ideia de que Perus é um lugar ambientalmente mais equilibrado e, portanto, “mais sustentável”.

O fim da poluição da fábrica e o fim do Aterro Sanitário (enquanto receptor de resíduos) – objetos de lutas históricas da população por melhores condições de saúde e habitabilidade – também são interpretados nos dias de hoje como conquistas ambientalistas e, também, são fatos utilizados para justificar a “marca de Perus sustentável”.

131 Com área superior a 9 500 000 metros quadrados, o equivalente a mais de oito vezes a área do Parque

A existência da Termoelétrica Bandeirantes, que colabora para o controle global das mudanças climáticas, também aparece no imaginário social como uma contribuição de Perus para a sustentabilidade.

A todos esses fatores, juntam-se os projetos urbanísticos sustentáveis, pagos pelos créditos de carbono, sendo esses mais um dos fatores que tornam possível colar a Perus a concepção de ambientalmente equilibrado. Nesse sentido, devemos observar que a reestruturação imobiliária não se dá somente como um processo material, haja visto que essa reprodução também se dá no nível simbólico.

Como já destacado, o movimento de passagem do fordismo à produção flexível redefine usos dos espaços. No espaço urbano, o capital busca áreas desvalorizadas que possam ser novas centralidades. Segundo Benach (2004), nessa transição de modalidades de uso, fazem-se necessários discursos que legitimem, frente à população, a adequação de seu espaço às novas modalidades de reprodução do capital. O discurso ambiental tem sido uma das justificativas desse processo, sendo desviado de sua origem contestadora e apropriado para a reprodução do espaço urbano.

Não se trata aqui de debater se Perus é mais ou menos sustentável. Buscar-se-á investigar como essa nova representação do espaço de Perus atinge o imaginário social e defender a hipótese de que ela é benéfica para o mercado imobiliário. Isso pode ser notado, por exemplo, nos anúncios de publicidade dos empreendimentos imobiliários do bairro, nos quais são comuns os destaques da “bela vista do local” como um diferencial, de onde se observa diferentes áreas verdes. Também o ar puro da região é tratado como atrativo publicitário132. O invólucro de “bairro sustentável” criado é uma ressignificação

desse espaço historicamente construído. Sem dúvida, esse rótulo é aproveitado pela indústria imobiliária, que busca afastar a percepção desse lugar como sendo periférico ou operário. Essa abrupta passagem é estratégica.

Ou seja, para transformar Perus em uma mercadoria imobiliária mais atrativa, aposta-se na persuasão de que a “marca” do bairro é o seu equilíbrio ambiental. Esse convencimento tem que se dar sobre a sociedade como um todo e, mais especificamente, sobre a própria população local. Para o andamento desse processo de

132 Nos anos setenta, George (1973) já observava a consolidação desse fenômeno publicitário

ambientalista: “Afirma-se que o citadino é um nostálgico da vida campestre (afirmação que comporta muitas nuanças), o que leva a criar em torno de sua residência um cenário capaz de lhe recordar o campo. A terminologia das agencias imobiliárias, neste setor, é bastante significativa, e traduz os desejos e condicionamentos do citadino. Garante-se a vista panorâmica, dando-se preferência à implantação sobre topografias acidentadas que descortinem perspectivas superpostas. A natureza é representada pelo sítio, à margem de um rio ou de uma floresta em escala reduzida, aproveitando acidentes naturais do terreno ou criados artificialmente graças ao plantio de árvores e gramados” (Ibid., p. 29).

transformação espacial do bairro – que tem como fim uma reinserção no circuito imobiliário de capitais – a difusão de uma série de discursos “oficiais” se faz necessária, para que a própria população local aceite essas transformações, identifique-se com elas, encampe-as no nível das representações, evitando, assim, conflitos e gerando uma “cidadania-bloco”: “um grau de consenso naquilo que é discutido de modo a não questionar o objetivo geral, que não é outro que o estímulo do econômico” (BENACH, 2004, p. 75).

Esses discursos são disparados por agentes hegemônicos e vão sendo encampados pela sociedade, de modo que se legitima socialmente o processo de reestruturação produtiva – que, no urbano, significa a capitalização do espaço. Um dos agentes que difunde essa mensagem é a própria PMSP, difusora de uma representação do que seria “Perus renovado”, através de projetos urbanísticos.

Desse modo, para um potente entendimento do processo de urbanização, faz-se necessário reconhecer o papel das representações. O material e o simbólico se fundem, tornam-se inseparáveis na produção do espaço. “Como distinguir o discurso, da estratégia, do objetivo e, do resultado obtido?” (Ibid.). Um dos discursos mais potentes para legitimar a reestruturação imobiliária é aquele que se apropria do ideário de catástrofe ambiental que povoa as representações dos indivíduos atualmente.

Alvarez relata uma entrevista em que um líder de uma ocupação antiga, localizada em frente à represa Guarapiranga, fala sobre a remoção de sua comunidade, justificada pela criação de um parque na orla da represa e sobre a impossibilidade de resistir nesse caso: “desta vez não, porque contra o meio ambiente ninguém ganha” (ALVAREZ, 2013, p. 121). O capital soube se apropriar do ambientalismo para realizar seus projetos, afinal, quem é capaz de se colocar contra o meio ambiente? Ainda segundo Alvarez (2013), o discurso da sustentabilidade ambiental como premissa de novos projetos urbanísticos é quase inquestionável.

A reestruturação imobiliária de noroeste nos coloca diante de um paradoxo. Dois de seus principais impulsos são o rodoanel e o planejamento urbano sustentável, que andam juntos e, simultaneamente, propõem preservação ambiental e expansão urbana, conservação de áreas vegetadas e aumento dos acessos rodoviários. Nossa hipótese é que essa contradição se resolve, pois a preservação ambiental não é o objetivo central da reestruturação. Os prejudicados nesse aparentemente contrassenso são as frações mais pobres da classe trabalhadora, que sofrem com a gentrificação e que têm o acesso à terra

controlado, enquanto outras formas de uso imobiliário são permitidas e estimuladas. Dentre elas, o condomínio “sustentável”, isto é, próximo a áreas verdes.

Esse paradoxo rodoanel-sustentabilidade, que mobiliza a reestruturação espacial, expressa-se na forma como alguns moradores representam esse processo material. Em depoimento, Márcia, moradora do Jardim do Russo e ex-militante da CEB, posicionou-se relutante em relação à possível chegada de empresas de logística ao bairro: “isso pode comprometer o nosso verde, porque dizem que aqui tem um clima muito bom”. Nessa fala, pode-se notar a importância simbólica das políticas que vêm concebidas de fora para dentro do bairro: foi um sujeito indeterminado que disse que o clima é bom, não necessariamente é algo sentido por ela. Também há nessa fala uma apropriação pessoal do discurso sobre mudanças climáticas globais.

Romero, em depoimento sobre a disponibilidade sobre a falta de empregos no bairro vai em sentido parecido:

Perus teria que receber algumas empresas e empregos (devido ao aumento populacional), mas não muitas não... umas duas ou três, nada mais que isso não, porque pela vocação do bairro não é legal 20 ou 30 empresas migrarem pra lá, porque vai impactar bastante o meio ambiente e a natureza, que é o que a gente tem de melhor ali. Como é o último bairro da capital, a gente fica ali meio que abandonado, mas curtindo aquela natureza. Daria uma força com os empregos, mas a gente sabe os impactos, principalmente para o meio ambiente.

Uma série de inferências pode ser feita a partir dessa resposta que demonstra uma forma de subjetivação da realidade socioespacial de Perus. Deixemos essas interpretações a cargo do leitor. O que queremos destacar aqui é que, aos poucos, pode- se observar uma cidadania-bloco se constituindo em torno da sustentabilidade nesse bairro periférico.

A narrativa ambientalista do processo social acaba por disputar espaço entre as representações sociais com a ideia de “direito à cidade”, ou, até, com a memória de mobilização do bairro de Perus133. Como dito, a cidadania-bloco cumpre um papel na

reprodução do espaço como negócio imobiliário. No capítulo três, será realizada uma análise mais detalhada do que são alguns dos projetos urbanísticos sustentáveis, em sua relação com o processo de reestruturação imobiliária, a fim de destrinchar que urbanismo é esse. Mas, antes disso, é necessário refletir sobre o ambientalismo e a ascensão de novos negócios verdes.

133 Esse tema será aprofundado no subcapítulo “Os interesses em torno da Fábrica de Cimento e da