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Para o protagonista de O Evangelho Segundo o Filho, a vida como filho de Deus se transforma em um grande desafio. Como até o momento do batismo ele só conhecia o mundo sob a ótica humana – estudando a Torah na pequena sinagoga de Nazaré, brincando com as demais crianças e trabalhando na carpintaria do pai – ele tem muita dificuldade em saber como proceder para o sucesso de sua missão messiânica, e ainda mais em como utilizar os seus poderes sobre- humanos. É justamente essa a realidade retratada nos capítulos da obra que dão conta de narrar a vida do protagonista após o batismo. Diante do quadro, surge a imagem de um Cristo que se demonstra humano por meio de seus sentimentos e atitudes errantes, mas que passa por um processo de divinização ao longo de sua jornada à medida que vai aprendendo a atuar como messias.

Igualmente ao que ocorre em Com a Graça de Deus, o primeiro episódio da série em O Evangelho Segundo o Filho é o do milagre da transformação da água em vinho durante a festa de casamento em Caná, episódio relido do evangelho de João (2,1-12). Em Mailer, não há nenhum sentido simbólico por detrás do milagre, nenhuma intenção em se representar, por exemplo, a prosperidade existente no Reino do Céu, como se pode interpretar no evangelho canônico. Visto que não havia mais vinho para se servir aos convidados, o protagonista do romance simplesmente viu uma oportunidade para testar sua habilidade de taumaturgo: “Assim, pensei em testar os poderes que imaginava ter recém-adquirido” (MAILER, 2007, p. 46). Diante da gratuidade do milagre realizado, o próprio Deus se manifesta em represália à atitude de seu filho: “Assim como um barril transbordante de mel pode ser esvaziado, o Filho tolo desperdiça seu estoque de milagres.” (MAILER, 2007, p. 47)

A atitude do protagonista de O Evangelho Segundo o Filho em Caná revela um Cristo humanizado, capaz de agir arbitrariamente e cometer falhas. Além disso, a falta de consciência de seus poderes e leviandade em relação ao uso dos mesmos demonstram que ele ainda não sabia atuar como messias. Isso também pode ser visualizado no seu primeiro discurso, o qual se trata de uma releitura para o episódio do evangelho de Lucas (4,22-30).

No episódio bíblico, Jesus fala aos nazarenos na pequena sinagoga local. O evangelista não dá detalhes sobre suas palavras, mas é certo que ele havia impressionado seus ouvintes: “Todos aprovavam Jesus, admirados com as palavras cheias de encanto que saíam da sua boca.” (Lc 4,22) Na sequência da cena, Jesus se compara aos profetas Elias e Eliseu, que, assim como aconteceria com ele, não foram aceitos por seus conterrâneos e, portanto, não realizaram milagres em seus locais de origem. Dito isso, ele é expulso da cidade e quase atirado de um precipício. Mesmo diante do ocorrido, o Cristo bíblico demonstra no episódio da sinagoga duas grandes virtudes: a extrema habilidade no uso das palavras e a consciência de seu futuro, características essas que, para a tradição cristã, são marcas de sua divindade.

O protagonista de O Evangelho Segundo o Filho, por sua vez, não demonstra nenhum atributo divino nesse momento. Primeiramente, vale destacar que não há nenhum propósito catequizador no seu discurso. Ele admite ter escolhido Nazaré como palco para a sua primeira pregação por não se sentir preparado para falar a um público estrangeiro: “Como minha língua não era nem de longe tão hábil quanto minhas mãos no trabalho com a madeira, pensei em começar onde pelo menos algumas pessoas me conheciam.” (MAILER, 2007, p. 47-8) A fala de Cristo, por si só, já demonstra o seu despreparo para atuar como messias. Fica claro que ele tem muito mais competência para o trabalho na carpintaria do que para a carreira messiânica. Além disso, ele não demonstra o mesmo poder no uso da palavra que seu homônimo bíblico, quanto menos vê na sua expulsão de Nazaré alguma relação com o que lhe ocorreria no futuro. Nesse sentido, as palavras de Cristo são vagas, desmedidas e espontâneas. A reação indignada do povo em resposta a elas não é esperada, mas sim, algo que foge ao seu controle: “Mas, inicialmente, não podia dizer à congregação mais do que “arrependei-vos, pois o Reino dos Céus está próximo.” Tais palavras não suscitaram nada além do silêncio. Como alguém podia desejar que o Dia do Juízo chegasse, e tão cedo?” (MAILER, 2007, p. 48)

Devido à sua segunda tentativa falha de representar Deus, Jesus sofre uma nova represália por parte de seu pai celestial, que o atira ao solo e o adverte de que as palavras dos profetas não correspondiam à palavra divina, exigindo um discurso diferente por parte de Cristo. Eis que se dá o primeiro passo para o amadurecimento de Jesus enquanto messias. Como ele não conseguia ser um representante das causas

divinas por si próprio, Deus o orienta sobre como proceder em seus discursos e como utilizar adequadamente os seus poderes. Além disso, o Todo Poderoso também dá a entender que iria intervir inclusive na reação das pessoas quando Jesus cometesse algum deslize:

- Podes ir bem em Cafarnaum. Trata de frisar um ponto, qualquer um. As pessoas são surdas como pedras, e é preciso repetir aquilo que se pretende que aprendam. Sublinha tua fala com um bordão “Assim diz o Senhor”, por exemplo. Não importa o que eles ouvem: as palavras também são criaturas Minhas e viajam por muitas estradas. (...)

- Se acreditares em Mim, tuas mãos, teus olhos e tua voz produzirão milagres. (MAILER, 2007, p. 49)

Depois do episódio em Nazaré, Cristo se envolve em outras situações que demonstram certo grau de amadurecimento no que tange à sua atuação enquanto messias. Se antes ele havia transforma a água em vinho em Caná somente para testar seus poderes, a partir de então ele tenta associá-los às causas divinas. Na prática do seu primeiro exorcismo, por exemplo, ele mostra-se ciente de que a expulsão de demônios era algo de sua responsabilidade: “Sabia que um espírito mau tomara conta de seu coração, e que era preciso tirá-lo de lá, tal qual um animalzinho deve ser arrancado da toca, e também sabia que ele viera a mim para que esse demônio pudesse ser expelido.” (MAILER, 2007, p. 53).

Com o mesmo discernimento, ele realiza o primeiro milagre da cura, cujo beneficiado é o cervo de um centurião romano. Jesus entende que era sua responsabilidade levar a graça divina inclusive aos pagãos: “Assim, compreendi que estava em meu poder mandar o poder de Deus aos que dele necessitassem, mesmo que não fossem judeus. Senti-me sublime por isso e muito contente, dada a aclamação com que fui saudado pelo povo, nas ruas.” (MAILER, 2007, p. 57).

Por outro lado, há também momentos de recaída, em que ele novamente deixa transparecer certo despreparo para atuar na condição de messias. No episódio do exorcismo de Legião, por exemplo, releitura de Marcos (5,1-20), Jesus demonstra medo ao se deparar com o homem possesso e duvida da sua capacidade de expulsar tantos demônios de

uma só vez: “Realmente, eu estava com medo; aquele infame parecia um touro.” (MAILER, 2007, p. 69) Devido a isso, é Deus quem novamente tem que intervir para a consumação do ato.

Se não fosse pela intervenção divina, o medo e a falta de consciência de Jesus em relação aos seus próprios poderes possivelmente seriam entraves para o sucesso do exorcismo: “Então era isso! Tratava-se de um possesso. Mas eu daria conta de todos os demônios que haviam entrado nele? A mão do Senhor, pressionando minhas costas, impelia-me à frente.” (MAILER, 2007, p. 70) A insegurança demonstrada por Jesus na ocasião, assim como a intervenção de Deus para que ele tomasse uma atitude diante do possesso, comprova mais uma vez que Jesus ainda não estava totalmente preparado para cumprir com sua missão divina.

Há vários outros episódios nos quais Jesus demonstra esse mesmo despreparo. Na ressurreição da filha de Jairo – releitura para

Mateus (9,18-26), Marcos (5,21-43), e Lucas (8,40-56) – ele não sabe se é capaz de realizar um milagre de tamanha grandiosidade: “Não sabia se teria o poder de trazer de volta à vida aqueles que estavam realmente mortos.” (MAILER, 2007, p. 72). Quando os fariseus o contestam por estar na presença de pecadores durante uma festa na casa de Levi, ele se questiona se seria capaz de converter os pagãos: “Havia tão pouco tempo e tantos obstáculos...O pagão que buscasse o batismo estaria pronto para repudiar seus falsos ídolos? Sua família o acompanharia nesse gesto? (MAILER, 2007, p. 62-3). Até mesmo ao falar da sua ressurreição aos discípulos, ele demonstra incerteza sobre tal acontecimento: “Se eu morrer, voltarei após três dias – disse, mas sem convicção.” (MAILER, 2007, p. 91)

Sendo assim, a vida do protagonista de O Evangelho Segundo o Filho após o batismo trata-se de um momento de aprendizado em relação à sua própria divindade. Tendo incorporado atributos divinos, o grande desafio do Cristo de Mailer se constitui em compreender os seres humanos para que assim possa cumprir com seu papel de redentor. À medida que ele peregrina pela região, depara-se com doentes e possessos, observa o modo miserável como muitas pessoas vivem, é confrontado pelos escribas e fariseus, ele vai descobrindo como proceder no cumprimento da sua missão divina, sendo sempre acompanhado de perto pelo Espírito Santo. No entanto, a compreensão plena sobre o real sentido da sua vinda ao mundo é algo que ocorre

somente após a sua morte, quando ele “Reconcilia-se, enfim, com sua própria divindade.” (LARANJEIRA, 2006, p. 67)