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A relação existente entre Jesus e os discípulos retratada em Com a Graça de Deus merece um destaque especial. Junto deles, o Cristo de Sabino se demonstra ainda mais humano, principalmente em função de suas variações de humor, demonstrando-se espirituoso, compreensivo e

também colérico. Fato que é novamente ressaltado pelo narrador como sendo uma comprovação de sua humanidade.

Com relação ao milagre da multiplicação dos pães, constante nos quatro evangelhos canônicos – Marcos (6,30-44), João (6,1-14), Mateus (14,13-21), Lucas (9,10-17) - o narrador de Com a Graça de Deus identifica na ocasião uma brincadeira da parte de Jesus para com seus apóstolos. No episódio, um grande número de pessoas havia seguido Jesus até o deserto, local onde não havia como se conseguir alimento. Em função disso, os apóstolos pedem para Jesus mandar o povo embora. Este, por sua vez, não atende ao pedido e lhes encarrega de providenciar alimento para todos, o que, para o narrador sabiniano, trata-se de um lance espirituoso da parte de Jesus, tendo em vista que ele sabia que seus amigos não tinham meios nem poderes para conseguir tal proeza: “Jesus às vezes mal conseguia disfarçar o seu senso de humor.” (SABINO, 1995, p. 110). Vale lembrar que, no desfecho do episódio, os discípulos apresentam a Jesus um menino que trazia cinco pães e dois peixes, os quais Jesus transforma milagrosamente em alimento para todos os ali presentes.

Esse mesmo senso de humor é identificado pelo narrador na fala de Cristo a Pedro, inscrita no evangelho de Mateus (17, 24-27)44. Pedro havia sido abordado por coletores de impostos em Cafarnaum e, quando perguntado se Jesus pagava os tributos, respondeu positivamente. Sabendo do ocorrido, Jesus então o orientou para que retirasse o dinheiro da boca de um peixe: “...vá ao mar, e jogue o anzol. Na boca do primeiro peixe que pescar, vai encontrar o dinheiro para pagar o imposto.” (Mt 17,27) Para o narrador sabiniano, Jesus estava era troçando de Pedro, que respondeu aos coletores de impostos ao acaso, por ter se sentido pressionado por eles:

Com seus poderes milagrosos, não custaria a Jesus resolver com um milagrezinho menos complicado a alhada em que Pedro se metera, quando disse ao publicano que o Mestre pagava o tal imposto.

44 Quando chegaram a Cafarnaum, os fiscais do imposto do Templo foram a Pedro, e

perguntaram: “O mestre de vocês não paga o imposto do Templo?” Pedro respondeu: “Paga sim.” Ao entrar em casa, Jesus adiantou-se, e perguntou: “O que é que você acha, Simão? De quem os reis da terra recebem taxas e impostos: dos filhos ou dos estrangeiros?” Pedro respondeu: “Dos estrangeiros!” Então Jesus disse: “Isso quer dizer que os filhos não precisam pagar. Mas, para não provocar escândalo, vá ao mar, e jogue o anzol. Na boca do primeiro peixe que você pegar, vai encontrar o dinheiro para pagar o imposto. Pegue-o, e pague por mim e por você.” (Mt 17, 24-27)

Afinal, era ou não devido? O que parece claro, pelo menos desta vez, é que aquilo não passava de mais uma bem-humorada troça de Jesus com o seu um pouco desastrado mas querido apóstolo Pedro. Tanto assim, que não consta ter-se realizado o milagre do peixe. (SABINO, 1995, p. 122) Para finalizar essa série de episódios envolvendo Cristo e seus discípulos, vale citar a interpretação do narrador sabiniano para o episódio encontrado nos evangelhos de Marcos (8, 27-33)45, Mateus (16,13-23) e Lucas (9,18-22). Trata-se do momento em que Cristo revela aos seus discípulos que seria morto pelos homens. Na ocasião, Pedro se mostra contra a vontade divina, o que desperta uma retaliação enérgica da parte de Jesus: “Fique longe de mim, Satanás! Você é uma pedra de tropeço para mim, porque não pensa as coisas de Deus, mas as coisas dos homens!” (Mt 16, 23) No romance, o episódio bíblico é seguido do seguinte comentário:

Satanás. Pedra no seu caminho. Aqui, obviamente não há como captar jovialidade ou mesmo ironia que abrandasse palavras tão brutais para com Pedro. Elas confirmam que, ao contrário da figura serena de Deus feito homem, pairando acima das paixões, que se procurou perpetuar, Jesus, como todos nós, era sujeito a rompantes de temperamento: chamou Pedro de Satanás poucos minutos depois de tê-lo sagrado Chefe da sua Igreja – fazendo até um trocadilho com o nome do apóstolo e a palavra “pedra”, e portanto certamente estando então de bom humor. Esta súbita mudança de comportamento só pode ser compreendida à luz da perturbação causada pela dolorosa consciência de sua Paixão, ao prever o martírio que iria sofrer. (SABINO, 1995, p. 180- 1)

45 Em seguida, Jesus começou a ensinar os discípulos, dizendo: “O Filho do Homem deve

sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos chefes dos sacerdotes e doutores da Lei, deve ser morto, e ressuscitar depois de três dias. E Jesus dizia isso abertamente. Então Pedro levou Jesus para um lado e começou a repreendê-lo. Jesus virou-se, olhou para os discípulos e repreendeu a Pedro, dizendo: “Fique longe de mim, satanás! Você não pensa as coisas de Deus, mas as coisas dos homens.” (Mc 8,31-33)

Como se observa acima, o narrador de Com a Graça de Deus entende que a ríspida resposta a Pedro trata-se de um rompante de fúria de Jesus por saber que o momento da paixão se aproximava. Esse descontrole emocional é tido como mais uma demonstração de humanidade por parte de Cristo: “Jesus, como todos nós, era sujeito a rompantes de temperamento”. Sendo assim, observa-se que o convívio do Cristo sabiniano com os discípulos durante a atividade messiânica traz à tona a face mais humana do protagonista, ao passo que os momentos de suas pregações públicas e realizações de prodígios ressaltam a sua divindade.

Por fim, a impressão que fica ao se analisar a fase da vida do protagonista de Com a Graça de Deus compreendida entre o batismo e sua condenação é que a condição de ser humano assumida por ele acaba por influenciar inclusive no seu comportamento enquanto Deus. A imagem que se faz da personagem nessa fase se contrapõe à do Deus cruel e arbitrário do Antigo Testamento, que condenou milhares de judeus só porque Davi havia contado o seu povo por meio de um senso, conforme consta no segundo livro de Samuel: “Então Javé enviou a peste sobre Israel, desde essa manhã até o dia marcado. De Dã até Bersabéia, morreram setenta mil homens do povo.” (2 Sam 24,15).

Além de humano na forma, o protagonista de Com a Graça de Deus se mostra extremamente humanitário e tolerante, demonstrando boa-vontade em cumprir com o papel de redentor. Por isso, ele ignora a lei do descanso nos sábados, permite que os discípulos se alimentem do pão do ofertório, e luta incansavelmente contra os escribas e fariseus, que escravizavam o povo através do discurso religioso:

Diga-se em louvor de Jesus que, embora em espírito ele fizesse questão de cumprir com o que anunciavam os profetas, não tinha a casmurrice de seguir ao pé da letra o que eles profetizavam em palavras de uma eloqüência não raro enigmática. Pode ser que não gritasse – mas, ao contrário do que prenunciava Isaías, tudo indica que ele volta e meia protestava, às vezes de forma bem gritante, contra a injustiça e a iniqüidade, principalmente dos fariseus e escribas. (SABINO, 1995, p. 80)