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Se antes do ingresso na Frente Común, alguns acontecimentos em torno do Cristo de Leñero parecem pouco explicáveis sob uma ótica racional e, consequentemente, sugerem que ele seja o messias, durante o tempo em que a personagem se envolve na luta por justiça social, por sua vez, não ocorre praticamente nada que fuja da ordem lógica. Nesta época, o único acontecimento que pode sugerir a ocorrência de algum fenômeno sobrenatural é a singular habilidade de Jesucristo Gómez de prever o futuro, a qual pode ser associada a um dom profético, como se vê na releitura que se propõe para o episódio bíblico da santa ceia, o qual será discutido mais aprofundadamente no capítulo seguinte:

- Se não voltarmos a nos reunir, eu gostaria que não se esquecessem desta ceia. Para mim será a última, a melhor. (LEÑERO, 1993, p. 269, tradução nossa)64

- Vão me pegar – respondeu Jesucristo -. Um de vocês me traiu. (LEÑERO, 1993, p. 270, tradução nossa)65

Ao intensificar a sua investida contra os poderosos na luta por justiça social, Jesucristo Gómez poderia ter percebido que estes não o deixariam agir por muito tempo e que certamente encontrariam uma forma de prendê-lo ou, até mesmo, matá-lo. No entanto, é de causar estranhamento a precisão com a qual ele identifica o momento em que isso ocorreria. Assim como seu homônimo bíblico, ele prevê que não tornaria a jantar com seus companheiros, que seria capturado dali há algumas horas. Da mesma forma, é possível se pensar que Gómez tivesse encontrado alguma evidência lógica para identificar que um desses seus companheiros fosse entregá-lo aos seus inimigos. No entanto, nada ocorre nesse sentido e, mesmo assim, ele identifica a existência de um traidor entre eles.

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- Con suerte ya nunca volvemos a estar juntos y me gustaría que no olvidaran esta cena. Para mí será la última, a lo mejor. (LEÑERO, 1993, p. 269)

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- Van a agarrarme – respondió Jesucristo -. Uno de ustedes me traicionó. (LEÑERO, 1993, p. 270)

Com exceção do suposto dom profético, o Cristo de Leñero não demonstra possuir nenhum outro dom sobrenatural após o ingresso na Frente Común. Diferentemente do seu homônimo bíblico, ele não é um taumaturgo. Nessa altura da narrativa, o leitor vai se deparando com episódios que releem sob uma ótica racional os milagres realizados pelo Cristo bíblico.

Além da releitura para o episódio bíblico da cura da sogra de Pedro, discutida no subcapítulo anterior, vale se destacar outros dois episódios do romance em que é possível se observar essa racionalização, os quais se correspondem às releituras para o milagre da tempestade acalmada, inscrito no evangelho de Lucas (8, 22-25), e para a multiplicação dos pães e peixes, de Lucas (9,10-17).

No caso da tempestade, Gómez e seus discípulos haviam pegado carona no barco de um velho pescador. Justamente quando a chuva havia ganhado maior intensidade, este desmaia de febre, largando o timão e, consequentemente, deixando a embarcação à deriva. Eis que os discípulos chamam Jesucristo, que dormia no compartimento de carga, e ele corajosamente assume o controle do barco, evitando o naufrágio:

- Seus pentelhos! – gritou Jesucristo assustado e tentando parar o giro da embarcação para posicioná-la a favor do vento. Todo o seu corpo se arqueou com o esforço; esfolaram-se suas mãos, saltaram-lhe as veias dos braços e, por fim, em meio aos relâmpagos, a chuva, as ondas saltando e quebrando, Jesucristo se ergueu em frente a tormenta como um deus imponente. (LEÑERO, 1993, p. 115, tradução nossa)66

No caso dos alimentos, o protagonista estava diante de um aglomerado de pessoas, advindo da comunidade rural de Mixquiahuala. O grupo havia sido despojado de suas terras e ido ao encontro de Gómez para pedir-lhe algum tipo de ajuda. Chegada a noite, apenas algumas pessoas tinham do que se alimentar, então Jesucristo ordenou que estas

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- ¡Pendejos! – grito Jesucristo atenazando las aspas y tratando de frenar el giro de la embarcación para enfilarla en la direccíon del viento. Todo su cuerpo se cimbró por el esfuerzo; se desgarraban sus manos, le saltaban las venas de sus brazos y al fin, entre los relâmpagos, la lluvia, las olas saltando y azotándolo, Jesucristo se irguió frente a la tormenta como um dios imponente. (LEÑERO, 1993, p. 115)

dividissem o alimento de que tinham posse com as demais, e assim, todos se serviram:

- Não, assim não vale – disse. E pediu aos seus discípulos que juntassem o povo. Então falou: - Vamos ser iguais, não é justo que uns comam e outros fiquem somente olhando. Os que trazem algo, tortillas, pães, tlacoyos, um queijo, muito ou pouco, o que seja, vão colocar aqui em frente e logo repartiremos para que todos comam da mesma forma. Parecem-lhes certo? (LEÑERO, 1993, p. 131, tradução nossa)67

Os milagres atribuídos à personagem cristã, muitas vezes, obscurecem a benevolência e o humanitarismo presente em sua doutrina e em suas atitudes. Ao conceber um Cristo que não é taumaturgo, Vicente Leñero consegue enfatizar justamente esses dois aspectos. O fato de Jesucristo Gómez não possuir a mesma habilidade do seu homônimo bíblico pode até servir para sustentar a tese de que ele não seja o filho que Deus enviou ao mundo, mas não é o suficiente para lhe retirar o status de divino. Esse parece ser o ponto-chave para que se possa compreender a proposta com a qual Leñero concebe sua releitura para a história dos evangelhos canônicos. Em El Evangelio de Lucas Gavilán, pouco importa o fato de Jesucristo Gómez ser ou não ser o messias – daí a intenção de se manter a identidade da personagem em sigilo - o que realmente importa é que ele dedicou a sua vida para cumprir e para fazer com que as pessoas cumprissem com as leis de Deus e é isso o que o torna divino. Em entrevista à Adela Salinas, Vicente Leñero confirma esta leitura:

- Então você não crê nos milagres?

- Em um romance, El Evangelio de Lucas Gavilán, trato de compreender esse assunto dos milagres, não como atos de magia, mas sim, como atos de serviço que podem ter uma explicação lógica e racional, um pouco à maneira de Renán.

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- No, así no se vale – dijo. Y pidió a sus discípulos que juntaran a la gente. Entonces habló: - Vamos siendo parejos, no es justo que unos coman y otros nomás se queden viendo. Los que traigan algo, tortillas, nopales, tlacoyos, um quesito, munho o poco, lo que sea, lo van a poner aquí delante y luego lo repartiremos para que a todos nos toque igual. ¿ Les parece bien? (LEÑERO, 1993, p. 131)

Na multiplicação dos pães, por exemplo, se poderia confundir a figura de Jesus com a de um mágico que, de uma cesta, retira pães e mais pães, como poderia fazer David Cooperfield. O que realmente trata de nos dizer o Evangelho é que aquele que trazia alguns distribuiu para todos quanto se podia a distribuição. Esse é o milagre do natural. No Evangelho nunca se conta que a um coxo lhe é dada uma prótese. Cristo fez esse tipo de milagres. Os seus são milagres de fazer ver e entender melhor; de conscientização, do descobrimento do amor ao próximo, de crer e de agir na possibilidade de um mundo mais justo. (SALINAS, 1997, p. 78-9, tradução nossa)68

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- ¿Entonces usted no cree en los milagros?

- En uma novela, El Evangelio de Lucas Gavilán, trato de comprender este asunto de los milagros: no como actos de magia, sino como actos de servicio que pueden tener uma explicación lógica y racional, un poco a la manera de Renán. En la multiplicación de los panes, por ejemplo, se podría confundir la figura de Jesús con la de un mago que, de uma cesta, saca panes y más y más panes, como podría hacerlo David Cooperfield. Lo que realmente trata de dicernos el Evangelio es que lo que traían unos cuantos, alcanzó para todos cuanto se produjo la distribución. Eso sería el milagro de lo natural. En el Evangelio nunca se cuenta que a un cojo le salga una prótesis. Cristo nunca hizo ese tipo de milagros. Los suyos son milagros de hacer ver y entender mejor; de toma de conciencia, del descubrimiento del amor al prójimo, de creer y de actuar en la posibilidad de un mundo más justo. (SALINAS, 1997, p. 78-9)

Quadro 3 – Comparativo referente à atividade messiânica

CGD OSF OSJC ELG

Início efetivo da missão divina marcado pelo batismo. Início efetivo da missão divina marcado pelo batismo. Início efetivo da missão divina marcado pelo encontro na barca (JC tem 25 anos). Início efetivo de sua missão marcado pelo ingresso na Frente Común. JC tem conhecimento nato de toda a sua realidade (herói pronto). JC só descobre ser filho de Deus e no que se constitui a sua missão divina após o batismo. Na barca, JC descobre ser filho de Deus e no que se constitui a sua missão divina (ele reconhece a verdadeira face de Deus). Tem consciência de sua missão ao ingressar na Frente. Missão divina igual a do Cristo bíblico. Missão divina igual a do Cristo bíblico. Missão divina: instaurar o caos no mundo. Missão: promover o paraíso na terra (luta por justiça social). Para tal, JG investe contra os poderosos. JC aparece realizando prodígios. JC adquire poderes sobre- humanos após o batismo. JC aparece realizando prodígios (já os realizava antes do encontro na barca). - JG não realiza prodígios (racionalização dos milagres bíblicos). - Sugere-se que JG possua dom profético. JC se envolve em atividades humanas: brinca, ri conversa descontraidamente, irrita-se. JC precisa aprender a ser messias (comete erros, é inseguro, tem dificuldade em entender os homens). JC se resigna ao seu destino. JC vivencia um conflito existencial. JC se rebela após os 30 anos de idade.