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Depois que se submete à tentação no deserto, o Cristo saramaguiano passa a viver em concubinato com Maria de Magdala, encontrando trabalho e moradia em diferentes aldeias de pescadores às margens do Mar da Galiléia. Isso até que ele, aos vinte e cinco anos de idade, pressente que havia chegado o momento de cumprir com a sua parte no pacto simbólico firmado com Deus naquele dia. Diante desse pressentimento, ele lança-se sozinho ao mar, onde se encontra com Deus e o Diabo em uma barca à deriva: “...ainda que com os pescadores seja o seu viver e trabalhar, assoma à porta da casa como para certificar-se de que é hoje o seu dia e, olhando o céu opaco, diz para dentro, Vou ao mar.” (SARAMAGO, 2008, p. 303)

Como se discutiu anteriormente, em O Evangelho Segundo Jesus Cristo, o episódio da barca marca o início efetivo da carreira messiânica do protagonista, uma vez que, a partir de então, ele passa a ter a sua vida associada às causas divinas. Além disso, o episódio se configura em um momento de grandes revelações para o Cristo saramaguiano. Durante a ocasião, ele faz vários questionamentos a Deus, os quais o levam a tomar conhecimento de toda a realidade que o cerca. Em outras palavras, ele finalmente descobre ser filho de Deus, compreende o sentido da missão que teria que cumprir na terra em nome de seu pai celestial e, consequentemente, tira a prova final de que este é o grande responsável por todas as desgraças ocorridas no mundo.

Para que se possa chegar a qualquer conclusão sobre a história do Cristo saramaguiano, antes de tudo, faz-se necessário atentar para dois pontos-chaves do enredo: primeiro, que Deus só tem poder sobre as pessoas que o reconhecem como tal; segundo, que existe um pacto entre os deuses que o impede de exercer influência direta na fé das pessoas, ou seja, que o impossibilita de tentar catequizar o povo pagão.

...a prova disso tem-la tu no facto, em que nunca se repara, de os demónios de uma religião não poderem ter qualquer acção noutra religião, como um deus, imaginando que tivesse entrado em confronto directo com outro deus, não o pode vencer nem por ele ser vencido... Mas com o poder que só tu tens, não seria muito mais fácil e eticamente mais limpo, ires tu próprio à conquista desses países e dessa gente, Não pode ser, impede-o o pacto que há entre os deuses, esse, sim, inamovível, nunca interferir diretamente nos conflitos, imaginas-me a mim numa praça pública, rodeado de gentios e pagãos, a tentar convencê-los de que o deus deles é uma fraude e que o verdadeiro deus sou eu, não são coisas que um deus faça a outro, além disso nenhum deus gosta que venham fazer na sua casa aquilo que seria incorrecto ir ele fazer à casa dos outros (SARAMAGO, 2005, p. 310)

Diante do quadro apresentado acima, a carreira messiânica do Cristo saramaguiano trata-se de um plano arquitetado por Deus para

ampliar a sua jurisdição na terra, e assim, utilizar-se dos homens para saciar a sua sede por sangue e sofrimento:

Desde há quatro mil e quatro anos que venho sendo deus dos judeus, gente de seu natural conflituosa e complicada, mas com quem, feito um balanço das nossas relações, não me tenho dado mal, uma vez que me tomam a sério e assim se irão manter até tão longe quanto minha visão do futuro pode alcançar, Estás, portanto, satisfeito, disse Jesus, Estou e não estou, ou melhor, estaria se não fosse este inquieto coração meu que todos os dias me diz Sim senhor, bonito destino arranjaste, depois de quatro mil anos de trabalho e preocupações, que os sacrifícios nos altares, por muito abundantes e variados que sejam, jamais pagarão, continuas a ser o deus de um povo pequeníssimo que vive numa parte diminuta do mundo que criaste com tudo o que tem em cima... (SARAMAGO, 2005, p. 308-9)

Serás a colher que eu mergulharei na humanidade para a retirar cheia de homens que acreditarão no deus novo em que me vou tornar, Cheia de homens, para os devorares, Não precisa que eu o devore, quem a si mesmo se devorará. (SARAMAGO, 2005, p. 311)

No plano divino, Jesus deveria realizar prodígios para se fazer reconhecido como messias e para chamar a atenção do povo, vendendo a falsa imagem de um Deus benevolente e misericordioso: “Que ideia, os milagres, tanto os pequenos como os grandes, quem os faz sempre sou eu, na tua presença, claro, para que estejas lá a receber os benefícios que me convêm” (SARAMAGO, 2005, p. 312). À medida que fosse ganhando fama, Jesus deveria proferir discursos para fazer com que os homens se sentissem pecadores incondicionais e para adverti-los de que esse mesmo Deus se torna colérico e intolerante diante daqueles que não correspondem aos seus anseios. Como se discutirá no subcapítulo seguinte, essas atividades o levariam a conquistar os seus primeiros adeptos:

E que deverei eu dizer mais a essa gente, além de injungi-los a um duvidoso arrependimento, se, fartos do teu recado, me virarem as costas, Sim, mandá-los arrependerem-se não creio que seja suficiente, vais ter de recorrer à imaginação, não digas que não a tens, ainda hoje admiro a maneira como conseguiste não me sacrificar o cordeiro, Foi fácil, o animal não tinha nada de que se arrepender, Graciosa resposta, porém sem sentido, mas até isso é bom, há que deixar as pessoas inquietas, duvidosas, levá-las a pensar que se não conseguem compreender, a culpa é só delas, Devo-lhes contar história, então, Sim, histórias, parábolas, exemplos morais, mesmo que tenhas de torcer um bocadinho a lei... (SARAMAGO, 2005, p. 314)

Por fim, Jesus deveria se submeter à morte na cruz, o que desencadearia um processo de catequização em massa, tendo em vista que ele se transformaria em um mártir e sua história se tornaria mundialmente conhecida. Nesse sentido, ele seria interpretado como a possibilidade de redenção que Deus ofereceu à humanidade e que foi negada pela mesma. Desse modo, povos de diferentes partes do mundo passariam a conviver com o medo de serem punidos pela entidade divina em função de terem lhe crucificado o filho, e assim, dariam início a uma nova religião para consagrar essas duas entidades, na expectativa de se redimirem desse grande pecado, e consequentemente, livrarem-se da punição divina. Religião essa que, em nome do fanatismo, daria origem a uma série de conflitos religiosos, os quais ocasionariam a morte de milhares de pessoas ao longo dos séculos.

Se cumprires bem o teu papel, isto é, o papel que te reservei no meu plano, estou certíssimo de que em pouco mais de meia dúzia de séculos, embora tendo de lutar, eu e tu, com muitas contrariedades, passarei de Deus dos hebreus a deus dos que chamaremos católicos, à grega. E qual foi o papel que me destinaste no teu plano, O de mártir, meu filho, o de vítima, que é o que de melhor há para fazer espalhar uma crença e afervorar uma fé. As duas palavras, mártir, vítima, saíram da boca de Deus como se a língua que dentro tinha fosse de

leite e mel, mas um súbito gelo arrepiou os membros de Jesus, tal qual se o nevoeiro se tivesse fechado sobre ele, ao mesmo tempo que o Diabo o olhava com uma expressão enigmática, misto de interesse científico e involuntária piedade. (SARAMAGO, 2005, p. 309)

Vale destacar que a missão divina do Cristo saramaguiano trata- se da visão do autor implícito em relação à doutrina cristã que, para ele, tem como base uma tríade: o pecado, o medo e a falsa promessa de redenção. O enredo da obra como um todo é uma referência direta à doutrina e à história do cristianismo. Isso fica ainda mais nítido quando Jesus pergunta a Deus sobre como seria o futuro da humanidade após a sua passagem pela terra. Em resposta, o Todo Poderoso faz uma exposição das páginas funestas da religião, citando o tempo da Santa Inquisição Católica e das Cruzadas, e destacando o nome de vários mártires do cristianismo, os quais são tidos como vítimas do fanatismo religioso:

Joana d´Arc, queimada viva, João de Brito, degolado, João Fisher, decapitado, João Nepomuceno, afogado, Juan de Prado, apunhalado na cabeça, Júlia de Córsega, cortaram-lhe os seios e depois crucificaram-na... (SARAMAGO, 2005, p. 321)

Ora bem, a estas bandas por aqui darão os vindouros o nome de Santos Lugares, pela razão de cá teres nascido, vivido e morrido, então não ficava nada bem, à religião que vais ser, estar o berço dela nas mãos indignas de infiéis, motivo, como vês, mais do que suficiente para justificar que, durante uns duzentos anos, grandes exércitos vindos do ocidente tentem conquistar e conservar na nossa religião a cova onde nasceste e o monte onde irás morrer, para só falar dos principais lugares, Esses exércitos são as cruzadas, Assim, é, E conquistaram o que queriam, Não, mas mataram muita gente, E os das cruzadas, Morreram outros tantos, se não mais... (SARAMAGO, 2005, p. 325)

A Inquisição, também chamada Tribunal do Santo Ofício, é o mal necessário, o instrumento crudelíssimo com que debelaremos a infecção que um dia, e por longo tempo, se instalará no corpo da tua Igreja por via das nefandas heresias em geral e seus derivados e conseqüentes menores, a que se somam umas quantas perversões do físico e do moral, o que, tudo reunido e posto no mesmo saco de horrores, sem preocupações de prioridade e ordem, incluirá luterano e calvinistas, molinistas e judaizantes, sodomitas e feiticeiros, mazelas algumas que serão do futuro, outras de todos os tempos... A Inquisição é uma polícia e é um tribunal, por isso haverá de prender, julgar e condenar como fazem os tribunais e as polícias, Condenará a quê, Ao cárcere, ao degredo, à fogueira, À fogueira, dizes, Sim, vão morrer queimados, no futuro, milhares e milhares e milhares de homens e mulheres... (SARAMAGO, 2008, p. 326-7)

Após o encontro na barca, o Cristo saramaguiano é obrigado a se submeter ao destino que lhe fora imposto por Deus, tendo em vista que este tem pleno controle sobre todas as suas palavras e atitudes:

Logo, não tenho saída, Nenhuma, e não faças como o cordeiro irrequieto que não quer ir ao sacrifício, ele agita-se, ele geme que corta o coração, mas o seu destino está escrito, o sacrificador espera-o com o cutelo, Eu sou esse cordeiro, O que tu és, meu filho, é o cordeiro de Deus, aquele que o próprio Deus leva ao seu altar, que é o que estamos preparando aqui. (SARAMAGO, 2005, p. 313)

Ainda assim, diferentemente do que prega o conceito da santíssima trindade, o Cristo saramaguiano não assume a personalidade divina, ou seja, não passa a se interessar por sangue e sofrimento. Pelo contrário, à medida que dá sequência à sua irrevogável carreira messiânica e observa as desgraças as quais Deus submete as pessoas, ele vai se tornando cada vez mais humanitário.