• Nenhum resultado encontrado

4 ASSIM CAMINHA A HUMANIDADE: MÚLTIPLOS OLHARES SOBRE

4.1 APRESENTAÇÃO: QUAIS SÃO AS RETÓRICAS ACERCA DO CONSUMO?

Tradicionalmente, as pesquisas realizadas no campo das ciências sociais e humanas foram sendo construídas ao longo dos anos sob o primado do processo produtivo. Em outras palavras, para compreender as sociedades, os esforços científicos se concentravam principalmente na aná- lise das forças produtivas (meios de produção e trabalho humano) e das relações de produção travadas entre os sujeitos – proprietários x não proprietários. Durante muito tempo, portanto, a esfera do consumo permaneceu subestimada ou mesmo ignorada pelos estudos acadêmicos que abordavam a vida social e econômica das civilizações.

Esse cenário começa a se reverter no final da década de 1970 e início da década de 1980. Paulatinamente, sociólogos, filósofos, antropólogos e historiadores europeus e norte-americanos foram se dando conta da relevância do consumo como fenômeno-chave para deslindar as socie- dades contemporâneas, cada vez mais complexas e heterogêneas. O consumo deixa de ser visto apenas como o estágio final da cadeia produtiva – tal como era concebido até então por econo- mistas e profissionais de marketing – e assume um papel crucial na interpretação das dimensões culturais e simbólicas de toda sociedade.

Vale ressaltar, contudo, que o reconhecimento e a legitimação do consumo como objeto de estudo científico ainda não foram capazes de dissipar inteiramente posicionamentos reducio- nistas e preconceituosos, que avaliam o fenômeno sob um viés moralizante e acusatório. Mesmo entre intelectuais renomados da atualidade, não faltam aqueles que percebem o consumo estrita- mente como efeito colateral indesejado do capitalismo. Nesses casos, ora são enfatizados estereó- tipos negativos como a futilidade e o descontrole de indivíduos consumistas, ora são atribuídas ao consumo implicações catastróficas e apocalípticas.

Neste capítulo, propõe-se assim apresentar e comentar algumas das principais ideias sobre o consumo. Dessa forma, a partir de uma revisão de literatura acerca do assunto, objetiva-se deli- near a trajetória e o mapeamento da produção acadêmica a respeito desse tópico. Mais especifi- camente, são examinadas nesse referencial teórico as redes de conceitos e pensamentos, os enun- ciados, as lógicas, os pontos de vista, os questionamentos, as apreciações valorativas, os discur- sos – enfim, todo um conjunto de argumentos aqui denominados de retóricas do consumo.

4.2 RETÓRICAS DE VILANIZAÇÃO DO CONSUMO E DA PUBLICIDADE

No primeiro grupo, é possível incluir uma série de pensadores que, em linhas gerais, pro- movem uma crítica mais radical ao capitalismo, à indústria cultural, à cultura de massas e, não raro, à civilização ocidental como um todo. Umberto Eco categorizou os argumentos dessa natu- reza como “apocalípticos” (Eco, 2015 [1964]). Nomeadamente, o alvo do filósofo e semiólogo italiano eram os teóricos críticos da Escola de Frankfurt – em especial, Theodor Adorno e Max Horkheimer –, salientando o posicionamento elitista e anacrônico desses estudiosos ao legitima- rem tão somente a cultura erudita, em detrimento da cultura popular.

Mas essa “retórica apocalíptica” também pode ser observada, em maior ou menor grau, nas reflexões de outros pensadores que rechaçam particularmente o consumo e a publicidade na contemporaneidade. Nesta seção, propõe-se, portanto, apresentar e comentar as principais ponde- rações tecidas por Zygmunt Bauman, Guy Debord e Sut Jhally a respeito do assunto.

Na obra Vida para consumo, Bauman (2008) trata do processo de transição de uma socie- dade de produtores – segundo o autor, fundada na segurança e na estabilidade – para uma socie- dade de consumidores, que essencialmente visa à satisfação cambiante de desejos individuais e ao imediatismo. A tese basilar aventada pelo sociólogo polonês é a de que estamos vivendo sob a égide de uma subjetividade objetificada pelo consumo, isto é, os consumidores estão se transfor- mando em mercadorias. Em outras palavras, na sociedade de consumidores, são as práticas soci- ais e simbólicas de compra e venda que moldam as construções de nossas identidades pessoais e coletivas. Tal como sustenta Bauman (2008, p. 24):

A “subjetividade” dos consumidores é feita de opções de compra – opções assumidas pelo su- jeito e seus potenciais compradores; sua descrição adquire a forma de uma lista de compras. O que supõe ser a materialização da verdade interior do self é uma idealização de traços materiais – “objetificados” – das escolhas do consumidor.

Para explicar como esse processo de auto-objetificação ocorre, Bauman (2008) retoma a ideia de “fetichismo da mercadoria” de Karl Marx. De acordo com Marx (1994 [1867]), no sis- tema capitalista, constata-se um estranhamento dos trabalhadores com o produto final do seu tra- balho – o que é chamado de alienação. Uma vez que o trabalhador não domina mais todas as etapas de fabricação, nem possui os meios de produção para tanto, ele passa a não se reconhecer mais no produto manufaturado. Dessa forma, o bem produzido acaba sendo magicamente perce- bido como independente do produtor/trabalhador:

A mercadoria é misteriosa simplesmente por encobrir as características sociais do próprio traba- lho dos homens, apresentando-as como características materiais e propriedades sociais inerentes aos produtos do trabalho; por ocultar, portanto, a relação social entre os trabalhos individuais dos produtores e o trabalho social total, ao refleti-la como relação social existente, à margem deles, entre os produtos do seu próprio trabalho (Marx, 1994, p. 81).

Ou seja, é como se a mercadoria, como que por “feitiço”, adquirisse vida própria. Daí a expressão cunhada por Marx (1994): fetichismo da mercadoria.1 Por seu turno, Bauman (2008, p. 26) apropria-se dessa concepção marxista, adaptando-a para a atual sociedade de consumidores a partir da noção de “fetichismo da subjetividade”. O estudioso entende que, nas relações humanas, a soberania do sujeito vem sendo ressignificada e representada como soberania do consumidor. Nesse contexto, não nos reconhecemos mais como sujeitos, mas sim como – e através das – mer- cadorias (commodities) que consumimos. Somos o que compramos, comemos, bebemos, vesti- mos, lemos, assistimos e assim por diante. Somos, enfim, sujeitos comoditizados.

Além disso, para Bauman (2008), a cultura consumista é responsável por modificar não apenas a maneira como nos autoidentificamos, mas também os modos como interagimos e nos relacionamos socialmente. Na modernidade líquida, conduzidos predominantemente por interes- ses econômicos individualistas, os consumidores experienciam uma cultura “agorista”, que esti- mula a ausência de vínculos afetivos e a eterna busca da felicidade pessoal via consumo:

O valor mais característico da sociedade de consumidores, na verdade seu valor supremo, em relação ao qual todos os outros são instados a justificar seu mérito, é uma vida feliz. A socieda- de de consumidores talvez seja a única na história humana a prometer felicidade na vida terre- na, aqui e agora e a cada “agora” sucessivo. Em suma, uma felicidade instantânea e perpétua (Bauman, 2008, p. 60).

A retórica apocalíptica do sociólogo polonês assume sua feição quando retira dos consu- midores qualquer possibilidade de agência desejante. O Homo consumens é concebido, pois, co- mo irracional, volúvel e assujeitado a essa “economia do engano”, sendo incapaz de desenvolver “estimativas sóbrias e bem informadas” (Bauman, 2008, p. 65). Ademais, consoante o estudioso, a cultura consumista não tem como propósito satisfazer as necessidades e desejos das pessoas; antes, ela se volta precipuamente para “a comodificação ou recomodificação do consumidor: ele-

var a condição dos consumidores à de mercadorias vendáveis” (Bauman, 2008, p. 76).

Outro crítico implacável ao modo capitalista de organização social é o intelectual francês Guy Debord. Em sua já clássica obra A sociedade do espetáculo, Debord (1997 [1967]) descreve

1

A palavra francesa fétiche advém etimologicamente do português arcaico feitisso (datado do séc. 15, significando “bruxaria, sortilégio”), o qual, por sua vez, origina-se do latim facticius (“postiço, artificial”), cf. Dicionário Houaiss (Disponível em: https://bit.ly/2HWZDBi. Acesso em: 17/05/19).

um funesto panorama acerca da sociedade moderna, compreendida a partir da convergência entre o processo de acúmulo de capital e o processo de acúmulo de imagens. Para o autor, vivemos em uma sociedade do espetáculo na medida em que todas as nossas relações são permeadas por ima- gens. E não só nossas relações interpessoais: as relações de produção e consumo de bens e servi- ços também são imageticamente mediadas pelos meios de comunicação de massa:

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação (Debord, 1997, p. 13).

Leitor abalizado de Karl Marx, Debord (1997) também retoma as noções de fetichismo da mercadoria e de alienação. Para o escritor parisiense, a alienação ultrapassa os limites do âmbito psicológico ou emocional individual. Intrinsecamente relacionada à lógica capitalista de objetifi- cação da vida humana, a alienação é concebida à luz da moderna luta de classes na sociedade. Aqui, o espetáculo assume um papel fundamental na dominação social da classe trabalhadora por meio da profusão de imagens ilusórias e ludibriantes da mídia e da publicidade. O poder espeta- cular encontra-se, assim, impregnado na teia social, obstaculizando a emancipação dos sujeitos:

O espetáculo, segundo o pensamento debordiano, tem sua estrutura baseada na aparência, mos- trando somente “o que é bom”, que carece ser contemplado e o que vai despertar desejos de consumo no espectador. Ele imprime a aceitação passiva por parte do público e transmite um efeito de circularidade, não deixando margens para réplicas. [...]

Na concepção de A Sociedade do Espetáculo, o caráter repetitivo e vago do espetáculo leva à dominação total dos homens, da mesma forma que eles foram dominados pelo capitalismo. A expansão do espetáculo significa, na concepção debordiana, perda do livre arbítrio por parte do espectador, o qual fica totalmente fascinado com a contemplação das imagens e seduzido pelos enredos que está acompanhando (Negrini e Augusti, 2013, p. 3-4).

Nos anos 1980, o estudioso revisa a sua obra clássica e publica Comentários sobre a soci-

edade do espetáculo (Debord, 1998 [1988]). Nessa releitura, o pesquisador reconhece que a soci-

edade do espetáculo não só perseverou, mas também se consolidou e intensificou após os movi- mentos sociais de Maio de 1968 (Ponge, 2009). Guy Debord (1998) demonstra um certo pesar ao constatar que a produção de espetáculos ocupa toda a nossa vida social e o poder espetacular atua hoje de forma onipresente e integrada no cotidiano dos indivíduos, abarcando suas relações inter- pessoais, profissionais, políticas, etc.

Articulada globalmente, a indústria cultural é agora constituída por grandes conglomera- dos empresariais comunicacionais, que se tornaram os porta-vozes da ideologia neoliberal. Nesse cenário, sob a perspectiva de Debord (1998), os movimentos sociais se enfraqueceram e não de- fendem mais a superação do capitalismo. Antes, buscam se assimilar às ideias hegemônicas, já

que as iniciativas de contestação passaram a ser vistas como ultrapassadas e contraproducentes. Diante do estabelecimento e da propagação contínua desse pensamento único através da publici- dade e dos mass media em geral, Debord (1998) parece não conseguir enxergar mais alternativa.

Analogamente à crítica realizada ao pensamento de Bauman, também é possível observar no raciocínio de Debord um total ceticismo quanto à viabilidade de agência dos sujeitos. O autor pressupõe que a propaganda e a mídia em geral possuem poderes supremos de determinação so- bre os indivíduos, presumidos como eminentemente passíveis de manipulação. Sem negarmos a força midiática na construção e naturalização de realidades, não podemos, em contrapartida, dei- xar de considerar a potência das ações humanas na transformação da sociedade. Além disso, me- rece reparo o tratamento maniqueísta de Debord (1997) acerca das imagens, tidas amiúde como algo negativo, desprezando todo um universo imagético multifário de sentidos e possibilidades.

Por fim, entre os autores dessa retórica apocalíptica, também cabe mencionar o pensamen- to mais vigoroso no que tange à vilanização do consumo e da publicidade. Trata-se de Sut Jhally, professor de Comunicação da University of Massachusetts e produtor de diversos documentários críticos sobre mídia, propaganda e consumo. Em trabalhos como Advertising & the end of the

world (Jhally, 1997) e Advertising at the edge of the apocalypse (Jhally, 2000), o acadêmico dei-

xa claro o seu posicionamento catastrófico a respeito desse tópico. Em suas palavras:

[...] a publicidade [...] será responsável pela destruição do mundo tal como o conhecemos. Ao conquistar seus objetivos, ela será responsável pela morte de centenas de milhares de pessoas não ocidentais e impedirá que os povos do mundo alcancem a verdadeira felicidade (Jhally, 2000, p. 27).

Ainda conforme o estudioso queniano, nossa cultura se tornou uma mera sucursal do sis- tema capitalista de produção e consumo. Isso porque a principal função do capitalismo neoliberal é nos vender continuamente bens através de anúncios publicitários, influenciando a maneira co- mo pensamos sobre nós mesmos e nossa realidade. Por essa razão, argui Jhally (1997, p. 6), “de- vemos tratar a publicidade como um sistema cultural; um sistema que produz impacto no modo como os seres humanos percebem o mundo e como compreendemos os seus significados”.

O grande problema, consoante o autor, é que a retórica publicitária vincula a felicidade necessariamente à compra de mercadorias. Mas os bens adquiridos não irão suprir as reais ânsias e carências dos indivíduos. E mais: como conseguiriam ser felizes as pessoas em estado de vulne- rabilidade ou exclusão social, sobretudo devido a fatores socioeconômicos? Elas não teriam direi- to à felicidade nesse modelo de “cultura do consumidor”? A solução proposta por Jhally (2000, p.

27) é um contundente ultimato: “nossa sobrevivência como espécie depende da minimização da

ameaça da publicidade e da cultura comercial que a gerou” (grifos acrescentados).

Opondo-se a esse tipo de visão fatalista, Eco (2015) argumenta, com um tom de ironia, que os “homens de cultura” deveriam se esquivar do julgamento fácil e superficial, fundado em preconceitos naturalizados a respeito da cultura de massa. A crítica é imprescindível, assegura o escritor italiano. Mas deve ser realizada assumindo-se uma atitude de indagação construtiva e não um comportamento alarmista e cataclísmico.