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3 AMOR ESTRANHO AMOR: TEORIA QUEER

3.1 APRESENTAÇÃO: “WE’RE HERE! WE’RE QUEER! GET USED TO IT!”

Inicialmente, é importante esclarecer que o termo queer não possui uma tradução adequa- da e inteligível em outras línguas. Em inglês, pode significar esquisito, ridículo, estranho, anor- mal, abjeto, excêntrico.1 No entanto, os seus sentidos são bem mais complexos. Empregada por muito tempo para ofender e insultar gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros, a expressão queer foi reapropriada e ressignificada por esse grupo de forma radical, como estratégia de resistência e autoempoderamento. Queer é algo indefinível, inexplicável e instável, tal como descreve a teóri- ca norte-americana Eve Kosofsky Sedgwick, uma das pioneiras dos estudos queer, com a sua obra Epistemology of the closet (1990).2

Sedgwick (1994, p. viii) salienta que a palavra queer significa literalmente across (“cru- zado, transverso, oblíquo”), sendo procedente da raiz indo-europeia twerkw, da qual derivam o alemão quer (“transversal”), o latim torquere (“torcer”) e o inglês athwart (“transversalmente, através de”). O termo queer significando estranho, peculiar, exótico, etc. começa a ser usado na língua inglesa no início do século 16 e, curiosamente, no norte britânico era corrente a máxima “there’s nowt so queer as folk”, isto é, “não há nada tão estranho quanto as pessoas”.3

Além dis- so, também havia na Inglaterra a expressão coloquial “Queer Street” para se referir a alguém en- frentando dificuldades, normalmente financeiras ou ligadas à corrupção e desvio de dinheiro.4

No início do século 20, passa a ser difundida uma acepção pejorativa do termo queer, atribuído a homens “afeminados” ou que mantinham relações sexuais com outros homens. Um dos primeiros registros dessa nova definição pode ser observado em uma carta datada de 1894, escrita por John Sholto Douglas, o nono Marquês de Queensberry. Seu filho mais velho, Francis (o Visconde de Drumlanrig), mantinha um romance sigiloso com o Primeiro Ministro britânico, Lorde Rosebery. Após a súbita e misteriosa morte de Francis – supostamente, um suicídio –, John Douglas escreve a seu filho caçula, Alfred, culpando “queers esnobes como Rosebery” pela tra- gédia na família (Kaplan, 2005, p. 225). Ironicamente, anos depois, o jovem e rebelde Lorde Al-

1 Cf. Dicionário Michaelis Inglês & Português (Disponível em: http://bit.ly/2CafecY. Acesso em: 03/08/19). 2

Uma versão condensada do livro, escrita pela própria autora e traduzida para o português, está disponível em Sed- gwick (2007).

3 Esse ditado deu origem ao título da série televisiva Queer as Folk, mencionada adiante.

4 É o que lemos, por exemplo, em uma das histórias do detetive Sherlock Holmes, na fala do inspetor Lestrade ao

confrontar um suspeito: “It’s lucky for you, my man, that nothing is missing, or you would find yourself in Queer Street” (“Felizmente para você, meu caro, nada está faltando, do contrário você iria se ver na rua da amargura”, em tradução livre) (Doyle, 1904).

fred se tornaria o pivô do célebre litígio judicial entre John Douglas e o dramaturgo irlandês Os- car Wilde, amante de Alfred.

Ao longo do século 20, a palavra queer vai gradativamente assumindo um caráter depre- ciativo e difamatório. Masterson (2011) apresenta uma breve relação de citações de diferentes fontes, evidenciando a evolução semântica da expressão no decorrer dos anos (Quadro 2):

Quadro 2: Primeiras ocorrências da palavra queer no início do século 20

ANO CITAÇÃO FONTE

1914 “Ele disse que o Ninety-six Club era o melhor; ele era composto por pessoas „queer‟, que se encontram toda semana. [...] Ele disse que os membros às vezes gastam centenas de dólares com vestidos de seda, meias, etc. [...] Ele disse que nessas „monta- ções‟ [„drags‟], as pessoas „queer‟ se divertem.”

Los Angeles Times, 19/11/14.

1915 “Uma imensa reunião de estudantes de arte, pintores e pessoas „queer‟. Garotas em elegantes trajes masculinos, danças „queer‟, etc.”

M. Duberman et al., Hidden from Hist.

1922 “Um homem jovem, facilmente identificável por ser excepcio- nalmente delicado em outras características, é provavelmente „queer‟ na tendência sexual.”

Children‟s Bureau, U.S. Dept. of Labor, Pract. Value of Scientific of Juvenile Delinquents.

1931 “Queer: desonesto; criminoso. Também se aplica a homens ou garotos efeminados ou degenerados.”

G. Irwin, American Tramp & Un- derworld Slang.

1936 “Ele não é queer ou algo assim, é? Oh não, meu Deus! Pior que isso. Ele é um convertido.”

J. G. Cozzens, Men & Brethren.

1937 “„Queer‟, em um sentido especificamente sexual – uma palavra importada da América”.

Listener, 10/03/37.

Fonte: Masterson (2011, p. 12-13).

Crescendo nos anos 1940 e 1950, a historiadora norte-americana Lillian Faderman (2003) lembra que “queer” era uma ofensa comum entre seus amigos, que também usavam outros insul- tos homofóbicos como fairy e bulldyke (“veado” e “sapatão”, respectivamente, em tradução li- vre). E em 1970, a linguista e filósofa norte-americana Julia Penelope Stanley publica um artigo seminal na revista American Speech, intitulado Homosexual slang. O trabalho discute um tema até então inédito acerca do léxico concernente ao universo LGBT. Todos os informantes heteros- sexuais da pesquisa reconhecem que queer, fairy e faggot (“fresco”, em tradução livre) possuem “conotações desagradáveis”. Entre esses termos, “queer foi citado entre os homossexuais como o que possui maior conotação de repúdio e aversão” (Stanley, 1970, p. 51).

No final dos anos 1980 e início dos 1990, a palavra queer começa a ter seu uso reclamado e ressignificado pelos próprios gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros, especialmente por quem, num primeiro momento, possuía um engajamento mais ativista ou uma postura radical. Um exemplo desse novo sentido positivo do termo na comunidade LGBT pode ser constatado na cri- ação em Nova York da Queer Nation, em março de 1990, uma organização visando à eliminação da homofobia e promovendo a visibilidade dos seus membros. Foram eles os responsáveis pela disseminação, em manifestações e passeatas públicas, do grito de guerra “We’re here! We’re

queer! Get used to it!” (“Estamos aqui! Somos bichas! Acostume-se!”).5

Durante a Parada do Orgulho Gay em Nova York realizada em junho de 1990 (Figura 4), a Queer Nation distribuiu entre os participantes o panfleto-manifesto Queers Read This, expli- cando o motivo da adoção do termo queer:

Ah, e realmente precisamos usar essa palavra? Isso é um problema. Toda pessoa gay tem a sua própria opinião sobre isso. Para alguns, ela significa estranho, excêntrico e um pouco misterio- so. [...] E para outros, “queer” evoca aquelas horríveis lembranças de sofrimento adolescente. [...] Bem, sim, “gay” está ótimo. Tem seu lugar. Mas quando muitas lésbicas e gays acordam de manhã, nos sentimos revoltados e descontentes, não alegres [gay]. Então, escolhemos nos cha- mar de queer. Usar “queer” é uma maneira de nos lembrar de como somos percebidos pelo res- to do mundo.6

Figura 4: Parada do Orgulho Gay em Nova York (junho/1990)

Fonte: Queer Nation (Disponível em: http://bit.ly/2H4pW8r. Acesso em: 03/08/19).

Ao longo dos anos 1990, sobretudo devido ao bem-sucedido movimento da Queer Nation de reapropriação e renovação dos sentidos do vocábulo queer, o termo passou a ser amplamente usado pela militância LGBT ao redor do globo, pela academia e pelo mundo das artes. Atualmen- te, queer funciona como um termo guarda-chuva, abrigando todas as diversidades sexuais e gen-

5

Disponível em: http://bit.ly/2skrpEr. Acesso em: 03/08/19. Optou-se por traduzir queer como “bicha” por ser, em português, o termo que mais se aproxima do efeito impactante do grito de guerra original.

déricas, isto é, todos os que não são heterossexuais e/ou cisgêneros. Mas visa principalmente abarcar e visibilizar os marginalizados e os desviantes, os que não se adequam nem à heteronor- matividade, nem à homonormatividade. São os intersexuais, assexuais, agêneros, pansexuais, polissexuais, não binários, gêneros fluidos, drag queens, drag kings, andróginos, crossdressers, entre tantas outras pessoas e vivências que repudiam rótulos e categorizações estanques.

No campo acadêmico, em particular, a noção de queer foi responsável por revolucionar as pesquisas sobre gênero, bem como os estudos gays e lésbicos. Mas ultrapassou esses territórios e vem ocupando espaços na Teoria Literária, na Linguística, na Sociologia, na Filosofia, na Psico- logia, nas Ciências Políticas e nas diversas áreas do conhecimento dispostas a questionar e des- construir seus cânones e tradições. Vejamos mais detalhadamente, então, o contexto histórico que marcou a guinada do empoderamento queer e que é considerado o evento mais significativo para o movimento LGBT e sua luta pelos direitos da comunidade sexodiversa.