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Apropriação da Filosofia a partir do carecimento

3.2 A RECEPÇÃO FILOSÓFICA

3.2.2 Apropriação da Filosofia a partir do carecimento

Ao pensar no processo de apropriação da Filosofia com o estudante Surdo, devemos considerar os argumentos de Heller, “toda filosofia oferece uma forma de vida; toda filosofia é a crítica de uma forma de vida e, ao mesmo tempo, sugestão de uma outra forma de vida” (1983, p. 31). E que como seres mediados pela cotidianidade, temos carecimentos e a busca para superá-los nos apresenta alternativas e nesses lócus podemos abordar a polifuncionalidade da Filosofia.

O filosofar propõe entender que fazemos opção por uma Filosofia dentre as possíveis, ao compartilhar a proposta de Heller (1983) sobre a recepção da Filosofia. Partimos da tese de “as objetivações filosóficas incitam o receptor a refletir sobre o modo como deve pensar, como deve agir, como deve viver”. (HELLER, 1983, p. 33). A experiência do filosofar considera a realidade do sujeito e não é produto simplesmente da apropriação de textos, conceitos, problemas, filosofemas, sem considerar o problema vivenciado pelo sujeito no mundo. É assumir a tarefa autêntica de pensar a comunicação das implicações cognitivas históricas do seu ser e agir. O aprendizado filosófico não é somente cognitivo, mas também mudança na forma de agir, e ser. A recepção filosófica ocorre quando as perguntas mais simples são compreendidas como um pensar de maneira crítica, assumindo que não se sabe, buscando investigar as consequências da aplicação de um conceito na maneira de se viver. A Filosofia, segundo Heller (1983), é um questionar constante, portanto, toda forma de dogmatismo, incomoda. Por isso que o estudante do Ensino Médio, na medida em que se encontra no processo de constituição de si e dos saberes, pode ser compreendido como propício à aprendizagem filosófica.

Por isso, o Surdo no espaço escolar como diferente pode ser entendido como uma abertura ao questionamento sobre a maneira de pensar, de ensino e aprender. Uma recepção filosófica valoriza a Filosofia como atividade racional, que entende essa característica como imanente ao ato de filosofar, sendo, portanto, um questionar constante da realidade.

A recepção filosófica revela um carecimento do sujeito diante do mundo, de si e das relações diversas. O sujeito como fruto da vida cotidiana contempla as capacidades “intelectuais, suas habilidades manipulativas, seus sentimentos, paixões, ideias, ideologias. “O homem da cotidianidade é atuante e fruidor, ativo e receptivo, mas não tem nem tempo nem possibilidade de se absorver inteiramente em nenhum desses aspectos; por isso, não pode aguçá-los em toda sua intensidade”. (HELLER, 2004, p. 31).

A reflexão realizada a partir dessas indagações sobre a postura que vai se adotar diante da vida ocorre com os sujeitos na sua totalidade, e não somente com uma parte denominada de filósofos. Segundo a autora do livro A filosofia radical, há três maneiras de receber a Filosofia, representada pela completude ou parcialidade, sendo denominadas de: receptor estético; receptor entendedor; receptor filosófico. O trabalho do educador de Filosofia para com os estudantes, segundo Heller, deve partir de um convite, pois a atividade de parar e pensar sobre um aspecto da vida e aplicar o resultado à generalidade dos seres humanos, na mesma circunstância é individual, pois, a solução a um problema, na Filosofia, prioriza a atividade racional. Portanto, encontramos a validade da proposição: “o exercício da filosofia significa: vem pensar comigo, vamos conhecer a verdade juntos”. (HELLER, 1983, p. 16). Neste aspecto é preciso considerarmos “a vida cotidiana é a vida de todo homem. Todos a vivem, sem nenhuma exceção, qualquer que seja seu posto na divisão do trabalho intelectual e físico. Ninguém consegue identificar-se com sua atividade humana genérica, a ponto de poder desligar-se inteiramente da cotidianidade.” (HELLER, 2004, p. 31).

A recepção ocorre considerando o sujeito em sua concretude, totalidade (razão, sentimentos, desejos, necessidades e ideologias) e carecimentos. Diante desse aspecto, podemos afirmar, segundo Heller (1983, p. 38) que a compreensão seja um mau entendimento pode ser uma recepção filosófica. Isto não significa dizer que todas as vezes que ocorre um mal entendimento seja uma recepção filosófica.

O receptor estético parece entender a atividade filosófica a partir de sua realidade do mundo, não considerado a totalidade de problemas e reflexões imbricados na existência. As ideias obtidas através do uso da razão, não despertam para novas reflexões, mas parecem responder os problemas de sua vida.

Outra perspectiva, segundo Heller, (1983, p.37), é o receptor entendedor que compreende os elementos da cultura, consegue apreender os sistemas da Filosofia,

possui gosto filosófico, reconhecendo a diferença entre as elaborações. “Os entendedores formam um círculo dos que compreendem, julgam e leem Filosofia.” E o receptor filosófico “é o verdadeiro receptor da Filosofia: ele se apropria filosoficamente da filosofia, escolhe uma e sempre uma filosofia” (HELLER, 1983, p. 37). Na recepção filosófica se encontra a busca por responder as questões de como se deve pensar, agir e viver, considerar a coerência entre o ser cognitivo e histórico. O pensamento como elemento que vai para além da capacidade de epistemologia, o aprendizado que produz uma maneira de viver.

O receptor filosófico adota posicionamentos que são frutos da sua vida cotidiana e da sua racionalidade, trabalhando para analisar de maneira ampla os problemas que a vida lhe apresenta. A argumentação supera a aparência do agora e insere a possibilidade de pensar a generalidade dos seres humanos e as implicações de determinadas posturas frente à vida.

A recepção filosófica de uma filosofia funda-se na compreensão (verstehen). É verdade que o receptor só pode compreender a filosofia, sempre, com base nos problemas e nas experiências vividas que decorrem de seu próprio mundo e têm uma relação com ele. (HELLER, 1983, p. 38).

Mas a recepção parcial se encontra dividida em outras formas de recepção, segundo Heller, buscando responder uma das três indagações: como se deve pensar? Como se deve agir? Como se deve viver?

Quando à questão posta de como se deve agir, temos o receptor político, o que corresponde à classificação realizada das obras do Aristóteles, onde encontramos a ciência prática, visto que a política visa o agir do homem na sociedade, sua transformação ou manutenção. Segundo Heller, (1983, p. 43), “na recepção política, o ‘refletes sobre como deves agir’ é isolado dos dois outros momentos. Por isso, esse tipo de recepção não pode ser descrito como ‘compreensão’ do sistema filosófico”. Constatamos que a compreensão do sistema filosófico, segundo a autora, é perpassada pelo mal-entendido, quando diante de uma compreensão que encontra na sua estrutura as respostas às indagações, e capturado pelo sujeito, esse a vivencia. É importante, porém, recordar, ao alertar, de que nem todo mal-entendido será uma apropriação completa da Filosofia.

A recepção dita iluminadora é fruto da indagação de como se deve viver? Quando diante de um dado filosófico parece que tudo se esclarece por si, como se as

conclusões oriundas do filosofar fossem particulares, deixando de contemplar as perguntas: como se deve pensar?, e Como se deve agir? Para alguns parece que o modo de viver é essencial do processo. Neste sentido, “a recepção iluminadora satisfaz uma espécie de carecimento religioso”. (HELLER, 1983, p. 45).

A recepção parcial pode se concentrar em responder a uma das três perguntas descritas como radicais: como se deve pensar? Como se deve agir? Como se deve viver? Analisar a indagação sobre como pensar, possibilita o entendimento da pessoa no seu aspecto histórico. Segundo Heller (1983, p. 46) a resposta a esse ‘como se deve pensar’, ocorre pela recepção que guia o conhecimento. Trata as questões científicas numa busca de apreensão neutra da realidade, como se o objeto pudesse revelar-se naquele que busca compreendê-lo. Parcial essa compreensão por não considerar as respostas para as questões: como se deve agir? Como se deve viver? E a última forma de “a recepção avaliativo-cognoscitiva é uma recepção parcial, na medida em que põe em relevo o momento de refletir sobre como se deve pensar”. (HELLER, 1983, p. 51). Essa recepção, a autora descreve como presente nas Ciências Sociais, quando ao tentar compreender a vida cotidiana deixa-se de analisar os preconceitos presentes nela.

Com isso posto, consideramos que toda forma de recepção é uma tentativa de responder a um ou mais carecimentos que polifuncional e encontra no homem genérico. Todavia, depende de como tentamos solucionar esses carecimentos e de que forma podemos entender o processo do filosofar, como uma recepção parcial ou completa, quando respondemos uma das indagações: como se deve pensar? Como se deve agir? Como se deve viver? Se respondermos uma das questões estamos na recepção parcial; todavia, quando as questões cognitiva e histórica são enfrentadas, segundo Heller (1983), estaremos desenvolvendo a recepção completa.

Na perspectiva de transformação da maneira de pensar e agir, que se pretende ao trabalhar com a Filosofia no Ensino Médio, e mais quando o Surdo é inserido neste processo, temos que, produzir, como propõe Heller, (1983, p. 138): “o dever da filosofia deve transformar-se em querer dos homens a fim de poder dizer um dia: ‘pois bem, aconteceu’. A filosofia radical deve tornar-se filosofia de movimentos radicais, deve ‘penetrar nas massas’, ‘tornar-se força material’, para poder dizer um dia: pois, bem aconteceu”. Neste viés a abordagem dessa forma de recebimento vai ser usada para trabalhar a questão do Surdo na aula de Filosofia.