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Aproximações e distanciamentos entre as experiências de ser cardíaco e hipertenso, e de ser sofredor de lombalgia crônica

Tanto no estudo de caso de Jair quanto no de Alexandre, veem-se as singularidades que envolvem aspectos das experiências da enfermidade e das representações. Entretanto, a despeito de as diferenças específicas que revestem suas doenças e experiências biográficas, há elementos comuns entre ambos: a) os aspectos causais compartilhados das enfermidades excedem às explicações estritamente biológicas dadas pela biomedicina, ligando-se às experiências vividas aflitivamente e aos comportamentos tidos por inadequados à saúde; b) os tratamentos utilizados para se conviver com a cronicidade da doença se baseiam, em

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larga medida, na medicina científica; c) a busca pelos serviços de saúde para solucionar ou minimizar os problemas de saúde significativamente referidos circunscreve-se ao sistema de saúde público.

Verifica-se que o entendimento da causalidade que cada um tem de suas enfermidades traduz essas aproximações e distanciamentos. Tanto para Jair quanto para Alexandre as explicações da origem de suas enfermidades dialogam com a medicina científica, no entanto, deixam-se penetrar pelas interpretações do senso comum, como por exemplo, as considerações sobre o nervoso. A frequência e maior acesso aos serviços públicos de saúde, as informações dos profissionais de saúde e da mídia em geral os auxiliam a modelar as explicações sobre as causas das enfermidades.

Para Jair é, sobretudo, a ideia de hereditariedade que promove esse contato, ainda que mediada por suas convicções religiosas. Para Alexandre é o envelhecimento e as condições de trabalho que ocupam este lugar, não sem expressar o entendimento leigo de que certas doenças são comuns e até normais em determinados períodos da vida. Ambos compartilham do mesmo significado da noção do nervoso, isto é, acreditam que as aflições emocionais vividas possam se refletir fisicamente e vice versa, gerando doenças, entendimento comum verificado entre as classes populares como visto, embora para Alexandre assuma caráter periférico à concepção que tem da causalidade da sua enfermidade, sendo mais um agravante da sua condição de saúde.

A crença religiosa de Jair faz com que tenha uma representação peculiar da pessoa, que não envolve apenas a materialidade imediata do corpo, mas a transcende na medida em que este ocupa lugar de destaque em sua visão escatológica da existência humana. A doença é, simultaneamente, mal físico e moral, pois traz em si o significado da queda original dos primeiros humanos criados por Deus, repercutindo em sua descendência como pecado, sofrimento, adoecimento e morte.

A concepção da corporeidade de Alexandre aproxima-se do entendimento secularizado da biomedicina, a doença explicitando o comprometimento físico dos órgãos e de suas funções.

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Com relação aos tratamentos, Alexandre cumpre regularmente as recomendações médicas, fazendo as caminhadas diariamente, tomando os medicamentos receitados quando a dor lombar apresenta-se mais aguda e realizando as sessões de fisioterapia. Mantém consultas médicas de rotina, caracterizando um comportamento virtuoso voltado à saúde segundo a moralidade leiga e as expectativas de cuidados com a saúde, sugeridas pelos médicos e profissionais de saúde, dentre elas as atividades físicas, as dietas alimentares, a evitação do tabagismo, a ingestão de medicamentos e acompanhamento médico contínuo, invariavelmente prescritas para o controle da hipertensão e de outros acometimentos crônicos.

Jair cumpre religiosamente as recomendações divinas contidas na Bíblia, a ascese voltada ao trabalho reveste-se de virtude redentora e juntamente à observação do uso correto do sangue são meios, conforme o mandado divino, para a salvação da alma mortal, expressando desde esta vida que se é um eleito de Deus pela saúde do corpo e a consequente disposição para o trabalho. Isso não significa que não siga as orientações médicas, até porque as entende como complementares ao seu tratamento, tomando regularmente os medicamentos necessários para os seus problemas de saúde, contudo, é à ordem religiosa que se reportam, primeiramente, suas condutas de saúde modeladas segundo a moralidade cristã da fé reformada.

A repercussão da enfermidade na rotina cotidiana da vida dos entrevistados também é diferente. Jair não vê mudanças significativas em sua vida após a cirurgia cardíaca e a descoberta da hipertensão, ainda que não possa mais jogar bola e correr como antes, continua a trabalhar como, anteriormente, o fazia. O pertencimento ao grupo religioso das testemunhas de Jeová auxilia a conformar uma identidade não restrita ao ambiente religioso, excede-o à medida que é reiterada em outros ambientes sociais, sobretudo quanto à questão sanguínea, reafirmando socialmente o seu modo de vida e a sua crença.

A rotina cotidiana de Alexandre se regula pela intensidade das dores lombares vividas. Quando estão mais acentuadas impedem-no de fazer atividades simples, como caminhar, comprometendo, assim, a execução das tarefas que realiza diariamente. As incertezas geradas pela variabilidade da dor refletem-se emocional e socialmente em sua vida. Devido ao medo de quedas deixou de jogar bola com os amigos e o peso que a dor

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assume em sua vida fê-lo abdicar da pesca, ambas as atividades lhe davam prazer. Nota-se que a dor traz acanhamento aos aspectos da sociabilidade do informante, privando-o, muitas vezes, da interação social, refletindo, também, o sofrimento físico e moral.

Os informantes mantêm posturas distintas diante do enfrentamento de suas enfermidades. Devido às dificuldades para a cura da sua lombalgia, das dores intermitentes e dos reflexos destas em sua vida, as formas de enfrentar a doença, sua concepção e terapêuticas são representadas por Alexandre de modo cético, por vezes pessimista, não vendo nem acreditando que outras formas de terapias poderiam ajudá-lo neste processo, terapias essas que possuem lógica distinta daquela partilhada por ele.

De forma oposta, baseado em sua crença religiosa, Jair acredita que seus problemas de saúde são antes provações impostas ao crente, uma vez que a saúde perfeita somente será possível com o advento da salvação. De um lado, manter uma postura positiva diante das adversidades, neste caso, significa passar pela provação da doença obedecendo às ordenações divinas, pois apenas a Deus pertence à cura. De outro, a submissão ao divino coloca o fiel em posição favorável, segundo esta concepção, trazendo-lhe a esperança, e até mesmo a certeza da cura, pois caso contrário prova-se a insuficiência da fé.

As considerações obtidas da análise dos dois casos apresentados permitem observar as singularidades de se conviver com a enfermidade, bem como as orientações socioculturais contidas nas representações que as informam. Neste sentido, as experiências da enfermidade são sempre peculiares e biográficas, no entanto, trazem consigo referências sociais e culturais mais amplas, não podendo ambas as dimensões ser desprezadas sob o risco de se cobrir de opacidade, tanto as experiências quanto as representações, as pessoas que as vivem e os modos de interpretá-las e significá-las.

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