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A hipertensão e a dor lombar impactam de forma distinta o cotidiano dos adoecidos. Entre os entrevistados com “pressão alta”, o adoecimento não é reportado como fator que interfere em suas atividades diárias. Algumas situações são lembradas como causas prováveis da “subida da pressão”, nem sempre denunciada por sinais corporais, como as situações estressantes ou que os deixam nervosos, ou, ainda, quando em algum evento festivo exageram no consumo de alimentação gordurosa, salgada e de bebida alcoólica. Entretanto, a causa primeira é atribuída ao uso irregular da medicação, como indicado no relato seguinte:

É, eu sou meio nervoso (...) Não sou de brigar, sabe, mas, por dentro, tem hora que pra não falar nada a gente fica meio, a gente guarda (...) Não chegava a me sentir mal não, mas tinha vez que eu ia no posto e a minha pressão estava 19 por 10, 19 por 9, mas eu nem percebia. Naquela época, também, acho que eu nem tomava o remédio direito, né? Às vezes tomava cedo e não tomava à tarde, agora é que eu tomo cedo e a tarde (Vitorino).

O uso regular da medicação é visto como fator principal da estabilização da pressão arterial, podendo a vida ser “levada normalmente”, nas palavras de Vitor: “Não afetou a minha rotina. Tomando o medicamento é normal”.

Em contrapartida, para os entrevistados sofredores de dor lombar, a dor é “companhia” diária, interferindo nas atividades cotidianas e de lazer, sobretudo, quando se apresenta em sua forma mais aguda, quando se fica “travado”:

Quando eu estou travado, isto me impossibilita de fazer as tarefas, não dá nem pra sair da cama, caso contrário, não! (...) Dessa vez ficou feia a coisa, travou, eu tive que procurar tudo o que é canto, porque eu não conseguia nem sair da cama. Pra colocar uma bermuda tinha que colocar o

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pé, assim, lá embaixo, e depois por o outro. É feia a coisa, nossa! Uma dor terrível! Nunca tive aquilo! Problema desse jeito, nunca! (Antonio).

Uma vez no forró travou a minha coluna. Sabe o que é cair pro lado? Caiu pro lado e não sai (...) Você parece um boneco que trava (...) Ainda bem que tinha o meu colega, que me segurou assim, e me levou no colo, e falou: “vou levar você pro médico, pro pronto socorro que tem aí, agora!” (Paulo)

Estudando os significados, enfrentamentos e cuidados com as lombalgias, em mulheres catarinenes trabalhadoras do setor têxtil, a partir do referencial teórico da experiência da enfermidade, Polizelli e Leite135 verificaram que a dor nas costas sentida por

aquelas trabalhadoras assume dois significados distintos: primeiramente, o de “experiência comum”, que envolve os aspectos da dor pública, nos termos de Helman132; e o da “dor vivida”, em que ganha sentido as especificidades atribuídas a dor, segundo os contextos biográficos e sociais de cada uma delas.

No primeiro caso, a dor nas costas é entendida como “ normal”, pertencente ao cotidiano da vida, não requerendo cuidados específicos e, acima de tudo, devendo ser tolerada por aqueles que a sofrem. As autoras localizam a influência do ethos germânico na formação cultural dos habitantes daquela localidade, cuja ascendência alemã é proeminente, sendo a disposição ao trabalho um valor significativo compartilhado e incentivado pelas autoridades, bem como pela população, em geral, e pelas mulheres pesquisadas, em particular. Neste contexto, a reclamação recorrente de dor nas costas com idas frequentes ao médico pode assumir contornos morais socialmente desaprovados, revelando defeito de caráter como a preguiça.

No entanto, em seu segundo aspecto, a dor nas costas vivida evidencia as dificuldades que aquelas mulheres têm no seu cotidiano, como administram as dores e as limitações na execução das tarefas diárias, o grau do seu sofrimento, que, muitas vezes, as faz chorar solitariamente, afetando-as social e psicologicamente135.

A dor lombar traz limitações ao seu sofredor, tanto das atividades físicas de lazer quanto dos hábitos simples, restringindo-os ou modelando-os conforme a experiência de se sentir aliviado dos seus sofrimentos :

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Alguns anos atrás eu gostava muito de jogar bola, quando eu comecei a ter dor nas costas eu comecei a riscar a bola das minhas preferências. Não jogo nem quando estou bom, porque se dá um tranco, cai lá e aí? Eu tenho o pressentimento que deve ser muito ruim cair de mau jeito (Alexandre).

Percebi uma coisa, fiquei mais ou menos um mês sem poder dormir do meu lado direito, não aguentava de dor. O que eu percebi? O travesseiro, comecei a dormir com dois travesseiros, tirando a carga do ombro direito para dormir, Daí melhorei, ajudou! (...) Porque é assim, meus braços adormecem e é muta dor nas costas. Isso, de vez em quando, começa assim, começa no braço de manhã cedo, como há um mês eu levantei assim, se eu pegasse alguma coisa caía da mão, depois vai passando, vai melhorando, entendeu? (Perseu)

Os relatos mostram a convivência com a dor lombar no cotidiano, e o seu reflexo tanto social quanto psicologicamente, como no caso de Alexandre, que restringiu sua atividade de lazer - jogava bola com os amigos - por conta da dor e do temor de sofrer alguma queda e, assim, agravar os seus problemas na coluna. Já no segundo depoimento, o ato de dormir se transforma em momento a ser administrado, sendo escolhida a posição que possibilite o alívio da dor, além de revelar o impacto da dor nas tarefas diárias.

Em todos esses casos, observa-se que a dor adentra a rotina da vida dos sofredores, modificando um cotidiano marcado por incertezas, para as quais são desenvolvidas estratégias visando amenizar as aflições vividas.

Tanto nas lombalgias quanto na hipertensão, os adoecidos buscam conviver com a dor e a enfermidade respectivamente, reiterpretando os significados que elas assumem em suas vidas.

Conforme os achados da revisão da literatura nacional que faz interlocução com as ciências sociais e humans sobre a hipertensão, aponta Canesqui117, as classes trabalhadoras

urbanas brasileiras reinterpretam o conceito definido pelo saber médico erudito sobre a hipertensão. Na concepção leiga desta enfermidade, diferencia-se “ter problema de pressão” e “ter pressão alta”.

Nesse sentido, assinala Canesqui117, o significado da expressão “ter problema de pressão” é reconhecer a existência da doença, sem, no entanto, tê-la manifestado. Já em “ter pressão alta” implica perceber um conjunto de sintomas e sinais corporais. No cerne destas

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representações está a concepção popular de saúde-doença. O relato de Armando destaca esta diferenciação:

Isso que nós temos de “ter pressão alta”, isso aí não é doença, não! Graças a Deus a gente é normal! Doença é ficar lá em cima de uma cama, lá, sendo cuidado por uma pessoa, então, isso é doença! (...) Acho que dela eu não vou morrer não! (risos)

O relato revela o significado atribuído à doença como algo que incapacita a pessoa, que a faz depender dos outros, que a impede de trabalhar e, no limite, levando-a à morte. Segundo essa concepção, a “pressão alta” não é, em sentido estrito, doença, uma vez que convive-se com ela sem limitações físicas, apesar de ser apresentada socialmente como enfermidade grave pela biomedicina, pelos seus efeitos adversos e riscos a outras enfermidades, gerando sentidos contraditórios comuns em sua representação popular. Ressalta-se, no relato acima, o aspecto informado de ser uma pessoa “normal” apesar de se “ter pressão alta”.

Segundo Bury85, a “normalização” é um processo vivido pelos adoecidos crônicos na

experiência e enfrentamento da enfermidade. Ele pode se dar tanto pela incorporação da doença a um novo estilo de vida, compondo, assim, uma identidade nova para o sofredor, quanto pela conservação da identidade e manutenção das atividades executadas anteriormente à descoberta da enfermidade, a despeito de todas as limitações que dela possam advir.

De forma geral, para os entrevistados adoecidos da “pressão alta”, observa-se que o processo de “normalização” explicita-se pela manutenção de suas identidades e rotinas de vida anteriores, visto que o impacto da enfermidade sobre suas atividades cotidianas é mínimo, o uso regular da medicação propiciando “vida normal”, como apontado anteriormente.

No caso dos sofredores de dor lombar, a dor vivida cotidianamente é incorporada às suas identidades, de forma silenciosa, como experiência “normal” e inevitável da vida, apenas tornando-se visível quando irrompe com toda a sua agudez, revelando os limites da suportabilidade, ou nos momentos em que os impedem severamente de executar as tarefas e hábitos diários.

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Contribuem para esse silenciamento as várias vozes distintas que se fazem ouvir nos relatos dos entrevistados, assimiladas e reinterpretadas por eles, expressas exemplarmente no depoimento de Paulo:

O médico falou pra mim assim, que é normal isso daí, que todo mundo tem problema na coluna (...) A dor na coluna é coisa diária (...) Doze anos eu tenho esse problema, de lá pra cá sempre fazendo coisa com força demais, não tem como você não fazer, é inevitável, é do trabalho, é no que você trabalha. Mas, isso daí não é, assim, eu sou um cara forte, nós somos fortes, nós não temos nada.

Menéndez50 destaca que vivendo em condições que geram enfermidades as pessoas podem “normalizar” a situação, incorporando-a como experiência comum às suas formas de vida. O trabalho pesado exposto no relato aparece como condição inevitável da vida, como única ocupação e meio de subsistência possíveis, a dor se confundindo com as característica da própria atividade laboral.

Há, também, a deslegitimação da dor presente na informação médica, atribuindo-lhe universalidade e, por conseguinte, torrnando-a uniforme e “normal”..

Por fim, é a voz de um sujeito coletivo que se faz ouvir, expressando os valores sociais atrelados à configuração de uma masculinidade tradicional, em que força física e disposição tanto moral quanto física para o trabalho são atributos masculinos valorizados entre as classes trabalhadoras. A dor cotidiana é despersonalizada, sendo omitida e desconsiderada, já que queixas frequentes podem ser interpretadas, socialmente, como defeitos morais, como preguiça, indolência para o trabalho, não condizentes com a masculinidade idealizada socialmente. A identidade de homem trabalhador produtivo e provedor familiar é assim preservada, e a dor vivida diariamente concebida como experiência comum inerente à própria vida.

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CAPÍTULO VI

Representações e experiências com a enfermidade: dois estudos de casos

No presente capítulo, analisam-se dois estudos de casos sobre a experiência da enfermidade e suas representações, buscando deslindar os elos estabelecidos entre ambos os conceitos, a partir do olhar que os próprios adoecidos têm da sua doença.

As questões contempladas foram pontuais: considerações sobre o perfil socioeconômico, demográfico e ocupacional dos entrevistados; o significado e convívio com a doença; a descoberta da doença, explicações de suas causas; a relação e significação dos tratamentos utilizados e o modo como o adoecimento repercute em suas rotinas de vida. Entendemos, como Canesqui48, que a análise do estudo de caso permite transcender a experiência pessoal e subjetiva informada, possibilitando o diálogo com o contexto social mais amplo, uma vez que nele se insere.