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1. Construindo a historicidade do dízimo

1.2 Aproximações e distanciamentos historiográficos

Como pudemos observar, o percurso historiográfico do dízimo levou os estudos dos últimos cinco anos a se afastarem cada vez mais das grandes sínteses. Percebe-se, no entanto, que a bibliografia disponível sobre o dízimo não é muito extensa, ainda que o número de obras recentes demonstre um crescente interesse de historiadores pelo tema. Há claramente

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ELDEVIK, J. Episcopal Power and Ecclesiastical Reform in the German Empire: Tithes, Lordship, and Community, 950–1150. Cambridge and NY: Cambridge University Press, 2012, p. 22-23.

135 Ibid., p. 256-261.

136 PÉCOUT, T. Dîme et institution épiscopale au XIIIe siècle en Provence. In: LAUWERS, M. (Ed). La

na recente historiografia sobre o dízimo uma proposta de novas conceituações, novas leituras historiográficas e abordagens repensadas.

A preocupação dos autores não está mais em descrever o dízimo ou traçar sua evolução, mas sim em inseri-lo cada vez mais em discussões mais amplas e interligadas, como o estabelecimento de autoridades, os processos de territorialização, a formação de identidades, as implicações econômicas, os usos políticos, os espaços de jurisdição etc. Assim, entre outras coisas, buscam-se as especificidades temporais e geográficas desse imposto e não mais a universalidade atemporal.

O objetivo dessa nova historiografia passou a ser compreender de que forma o dízimo contribui para o conhecimento de diversos aspectos da sociedade medieval. Dentro dessa compreensão, busca-se cada vez mais estudar não apenas as práticas da coleta/pagamento do imposto, mas também o discurso criado sobre o dízimo e, principalmente, os usos que se faziam desse discurso.

É dentro dessa perspectiva que nossa pesquisa se encontra. O diálogo que procuramos estabelecer é principalmente com essa historiografia mais recente. Nossa opção por trabalhar com fontes de cunho jurídico poderia ser caracterizada como conservadora, uma vez que essa é uma opção claramente tributária de uma historiografia mais tradicional, na linha das obras de Paul Viard. No entanto, como procuramos demonstrar já na introdução e esperamos clarificar ainda mais nos capítulos que se seguem, nossa intenção é utilizar as fontes de direito canônico de forma problematizada e historicizada, através de uma abordagem contextualizada da documentação e uma preocupação com a construção conceitual. Desse modo, a abordagem apresentada aqui se afasta da historiografia mais tradicional e procura se aproximar principalmente dos recentes trabalhos de Michel Lauwers, Cécile Caby, Elsa Marmursztejn e Emmanuel Bain. Portanto, a abordagem dos autores de La

Dîme, l’Église et la Société Médiévale é a mais interessante para nossos objetivos de pesquisa.

Também de grande importância para nossa tese é a questão do lugar da Igreja na compreensão do dízimo. Não negando obviamente os aspectos econômicos e a participação laica nos processos, nos parece, entretanto, impossível minimizar o papel da Igreja, como ocorre nos estudos da coletânea de Roland Viader. O dízimo é, antes de tudo, uma cobrança instituída pela Igreja, para sustento do clero, manutenção de seus edifícios e auxílio à comunidade cristã. Se os laicos participam – e até mesmo abusam – dessa cobrança é porque a separação entre Igreja e sociedade laica nos parece impossível nesse período. Ambas

compõem uma relação simbiótica que, em grande parte, garante a especificidade histórica do período medieval.

Outro ponto que merece ser destacado diz respeito ao uso do conceito “reforma

gregoriana” pelos autores, particularmente a partir da obra de Augustin Fliche. 137

De forma geral, a historiografia tendeu a compreender as mudanças eclesiásticas por causa e a partir do conceito “reforma”, utilizando-o como um sistema explicativo, mais ou menos estático. Essa

explicação resumiria todas as transformações do mundo clerical centrando-as na reforma. 138

Entre as idas e vindas dessa chave explicativa, seja ela representada por uma única reforma que poderia ser gregoriana, da Igreja, do século XI, papal ou uma série de reformas e

movimentos de renovações, 139 os autores que analisaram o dízimo medieval se ativeram

quase sempre a alguma concepção reformadora.

No caso da historiografia sobre o dízimo apresentada acima, a maioria dos autores incluíram o termo “reforma” em suas análises, à exceção de Paul Viard, cuja obra é anterior à tese de Fliche. No entanto, se Viard não formaliza o conceito de “reforma gregoriana”, a periodização que ele propõe e a chave de sua análise com base nas disputas entre clérigos e laicos está muito próxima da interpretação de Fliche. Catherine Boyd identificou o papel da reforma gregoriana na história dos dízimos como uma reação dos reformadores à usurpação laica das prerrogativas eclesiásticas. Giles Constable também associou a ascensão da

137 O termo “Reforma Gregoriana”, proposto pela primeira vez por FLICHE, A. La Réforme Grégorienne: la

formation des idées grégoriennes. Louvain: Spicilegium Sacrum Lovaniense, 1924, foi cristalizado pela historiografia, mas hoje há uma historiografia mais recente que problematiza a questão da chamada “reforma do século XII” ou “reforma gregoriana” ou “reforma papal”.

138 A partir dos anos 1970, a historiografia passou a olhar para esses movimentos tidos como reformadores com

uma visão crítica sobre os agentes das transformações. Mudou-se o foco de um grupo de lideranças clericais e monásticas para demandas advindas da própria sociedade. Autores como Kathleen Cushing, chegaram ao ponto de proporem o fim completo do termo “reforma”, empregando em seu lugar a noção de “revolução”. Outros, como Colin Morris e I.S. Robinson, pelo contrário, acreditavam que a noção de reforma era o que diferenciava o período e o que deveria ser revisto era apenas o foco sobre Gregório VII, substituindo-se, assim, “reforma gregoriana” por “reforma papal” ou “reforma pontifícia”. Ver CUSHING, K. Papacy and Law in the Gregorian Revolution: the canonistic work of Anselm of Lucca. Oxford: Clarendon Press, 1998; ROBINSON, I.S. The papal reform in the eleventh century: lives of pope Leo IX and Gregory VII. Manchester: Manchester University Press, 2004; MORRIS, C. The papal monarchy: The Western Church from 1050 to 1250. Oxford: Clarendon Press, 2001; GILCHRIST, J. Was there a Gregorian Reform Movement in the Eleventh Century? In: Canon Law in the age of reforms. Variorum, 1993. Para uma análise detalhada sobre essa historiografia e uma crítica importante, ver os trabalhos de RUST, L. Colunas de São Pedro: a política papal na Idade Média central. São Paulo: Annablume, 2011, particularmente o capítulo 3, “O papado além de Roma e da reforma 1 (1046- 1073)”, pp. 143-188 e o capítulo 4, “O papado além de Roma e da reforma 2 (1073-1088)”, pp. 190-233.

139 Para alguns autores como Gerhart Ladner e Giles Constable, mais importante do que pensar na reforma como

um sistema explicativo e analisá-la a partir dos termos e conceitos que dão um sentido de renovação. Para Constable, a chave para entendermos os diversos momentos, ou as diferentes reformas (ele propõe uma periodização em quatro fases) está na ideia de uma renovação pessoal e eclesiástica num paralelo com a regeneração através do batismo. Ver: CONSTABLE, G. Renewal and reform in religious life: concepts and realities. In: BENSON & CONSTABLE (Eds). Renaissance and Renewal in the Twelfth Century. Toronto: University of Toronto Press, 1999, p. 37-67 e também LADNER, G. Terms and ideas of renewal. In: Ibid., p. 1- 36.

universalidade do dízimo à reforma, embora ele não use o termo “reforma gregoriana” e sim “reforma do século XII”. Os chamados “movimentos reformadores do século XI-XII” são o fio condutor de toda a obra de Constable e, portanto, os dízimos também fazem parte dessa chave explicativa. O historiador britânico, entretanto, não enfatiza o conflito entre laicos e clérigos como sendo o motivador das transformações, mas sim a disputa entre os negócios seculares e sagrados.

Os trabalhos reunidos por Michel Lauwers também têm em seu horizonte o impacto da reforma sobre a cobrança do dízimo. O que os autores trazem de novo, porém, é a noção de que a tentativa em retirar os dízimos das mãos de laicos representava um esforço completamente inovador para o período e não o desejo de um retorno a uma realidade passada pré-existente. A coletânea organizada por Roland Viader, por sua vez, ao dar maior foco às questões econômicas relativas ao dízimo, tende a não depender de uma análise baseada no conceito de “reforma gregoriana”.

Em um dos artigos mais recentes sobre o tema, Didier Panfili novamente coloca o dízimo no centro das disputas entre laicos e clérigos uma vez que: “Igrejas e dízimos tornam- se (…) pontos de cristalização de tensões no momento em que os reformadores os reclamam para si”. 140

Na recomposição dos senhorios entre 1050-1150, o conflito entre laicos e reformadores é o nó central e os dízimos fazem parte das disputas: “(…) reformadores

eclesiásticos e aristocratas laicos desenvolvem estratégias concorrentes” 141 na transferência

das igrejas e dos dízimos. Os ideais reformadores são colocados como motor das transformações.

O impacto desse tipo de abordagem é que os dízimos agem sempre no conflito entre laicos e eclesiásticos, sem que haja possibilidade para interpretações que abarquem outros usos do discurso sobre o dízimo. Diante da documentação que utilizamos, procuramos nos afastar da maior parte da historiografia ao deixar de lado as noções de reforma – “gregoriana”, “papal”, “do século XII” – para avançarmos em uma análise dos dízimos que não se vê necessariamente vinculada a um perpétuo conflito entre laicos e eclesiásticos. Isso se deve, em primeiro lugar, pela periodização que privilegiamos – entre os anos 1140 e 1270 –, o que coloca nossa pesquisa em um momento posterior ao que historiadores normalmente

140 PANFILI, D. Transferts d’églises, de dîmes et recomposition des seigneuries en Languedoc (vers 1050-1200).

In : MAZEL, F. (org.). La Réforme ‘Gregorienne’ dans le Midi, Milieu XIe-début XIIIe. Cahiers de Fanjeaux (48). Toulouse : Privat, 2013, v. 48, p. 583.

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denominam de período de reformas. 142 Mais do que isso, ainda que a exclusividade eclesiástica sobre os dízimos apareça no Decretum de Graciano, nos cânones do Liber Extra e na própria Summa de Henrique de Susa, ela surgia no contexto de definição das jurisdições eclesiásticas em termos relacionais, ou seja, das determinações da esfera de atuação dos diferentes níveis eclesiásticos (paróquia, diocese, papado), agindo dentro da sociedade e não se separando dela.

Dessa forma, longe de negar a importância da construção histórica sobre as reformas dos séculos X-XII pretendemos olhar para as mudanças ocorridas naquele período por outro viés explicativo. Não entendemos que todas as transformações ocorridas naquele momento histórico, e partir dali, se encaixam necessariamente na reforma ou são meramente consequências dela.

O surgimento das universidades a partir da última década do século XII teve um papel definitivo na elaboração do novo discurso sobre o dízimo. O estudo organizado abriu a porta para o surgimento de especialistas com treinamento específico nas diversas formas de direito. As universidades surgiram das escolas existentes em cidades como Bolonha e Paris, que funcionavam de forma bastante independente e, no geral, em torno de um mestre específico. Com o processo de organização corporativa dos mestres e estudantes surgiram as primeiras universitas, com uma personalidade jurídica própria e, embora vinculadas em maior ou menor grau à Igreja, mantinham uma autonomia na determinação de seus currículos,

contratação de mestres, seleção de alunos etc. 143

Em relação ao direito, o trabalho nas escolas e nas univerisdades levou ao surgimento de novas compilações, comentários e summae, representando o que chamamos de uma virada documental. As obras passaram a ser organizadas de maneira sistemática, as glosas exploravam de forma profunda as diversas interpretações possíveis de uma passagem, as abstrações jurídicas tornavam-se mais elaboradas. Isso modificou a natureza das discussões do dízimo, como veremos nas páginas seguintes.

142 Apesar dos debates historiográficos sobre as datações da reforma, com discordâncias sobre o início e fim,

podemos dizer que, de forma geral, concorda-se que o período se estende por cerca de pouco mais de um século entre os anos 1040-1160, sendo esses últimos anos a fase de consolidação das formas monásticas de vida. Ver a divisão temporal proposta por CONSTABLE, G. CONSTABLE, The Reformation of the twelfth century. Cambridge University Press: 1996, p. 4

143 O processo de formação das universidades ainda apresenta inúmeras lacunas para os historiadores, como

datações precisas. Algumas delas se desenvolveram com apoio papal, outras com apoio imperial e algumas ainda com apoio comunal, principalmente no norte da Itália. Para maiores detalhes sobre as univerisdades em geral e os cursos de direito em particular, ver VERGER, J. As universidades na Idade Média. São Paulo: Unesp, 1990; LE GOFF, J. Les intellectuels au Moyen Âge. Paris : Seuil, 1957 ; BRUNDAGE, J. The medieval origins of the legal profession: canonists, civilians, and courts. Chicago: University of Chicago Press, 2008.

Ao mesmo tempo, a prática das cortes e tribunais também influenciou a documentação que precisava fornecer as ferramentas adequadas ao trabalho dos juízes e legados. A documentação aponta que aquele contexto não apenas tentou resolver seus próprios desafios, mas criou novos conceitos e abstrações, o que indica que ao menos uma parte da sociedade apresentava novas necessidades e superações.

Portanto, o discurso jurídico era fruto de uma maior institucionalização tanto das universidades quanto da própria Igreja, que utilizava e influenciava o direito canônico para determinar suas jurisdições. Nesse sentido, nosso foco são os escritos que se ligam ao discurso eclesiástico sobre esse tema, de que forma ele foi construído, modificado e utilizado. Os medievalistas têm enxergado cada vez mais possibilidades no estudo do dízimo, restituindo sua historicidade. Os temas se multiplicam e as respostas levam a novas perguntas e conceituações. Espaços de autoridade; relações entre direito e costume; territorialidades; desenvolvimento da teologia e da escolástica; relações sociais e políticas; estabelecimento de identidades; relações econômicas e de trocas; institucionalização da Igreja. Essas são apenas algumas das problemáticas propostas pela historiografia atual. Nós nos propomos a entrar nessa discussão a partir da construção das jurisdições e dos espaços de autoridade. A história e seus objetos são fruto de seu tempo. Portanto, há ainda um amplo campo a ser explorado.