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Espaços de autoridade como conceito para compreender as jurisdições

4. Novas leituras, novos conceitos

4.3 Espaços de autoridade como conceito para compreender as jurisdições

Até aqui temos demonstrado como o discurso jurídico sobre o dízimo funciona dentro de uma lógica de criação e definição de jurisdições. No entanto, como podemos pensar essas jurisdições dentro de uma atuação mais direta dentro da sociedade? Em outras palavras, como se aplicava efetivamente o poder ou a autoridade dessas jurisdições? Para propormos uma análise interpretativa, vamos refletir a partir de uma noção que conceituaremos como “espaços de autoridade”.

Para compreendermos o que seriam esses espaços de autoridade duas referências são fundamentais. Primeiro, a afirmação de Koselleck que “A história sempre tem a ver com o tempo, com tempos que permanecem vinculados a uma condição espacial, não só metafórica,

mas empiricamente”. 421 Em segundo lugar, as pesquisas de Michel Lauwers, Dominique

Iogna-Prat, Florian Mazel, entre outros, sobre o processo de espacialização da Idade Média. Essa nova historiografia entende a espacialização como um processo que inclui a monumentalização da Igreja, a definição das dioceses, a criação dos cemitérios, a organização

das paróquias e a chamada “invenção” do dízimo. 422

O espaço é, portanto, uma construção

421

KOSELLECK, R. Estratos do Tempo. Estudos sobre História. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014, p. 9. O autor também desenvolve essa noção de impossibilidade de separar as categorias históricas das noções espaciais em The Practice of Conceptual History. Timing History, Spacing Contexts. Stanford: Stanford University Press, 2002: “(…) a história, na medida em que lida com o tempo, deve tomar emprestado seus conceitos do campo espacial como um princípio por natureza (…) Todas as categorias históricas, incluindo o progresso, que é a primeira categoria especificamente moderna de tempo histórico, são expressões espaciais na sua origem e nossa disciplina triunfa porque elas podem ser traduzidas.”, p. 7.

422 No capítulo 1 desenvolvemos a questão da espacialização em relação ao dízimo na discussão historiográfica.

física – ou geográfica –, mas é também uma construção conceitual e abstrata que tem implicações para a visão da História, como um todo, e para a Idade Média, em particular.

A partir dessas duas visões pareceu-nos importante associar o espaço ao conceito de jurisdição que tratamos, até o momento, como um exercício da autoridade. Assim, definimos que o “espaço de autoridade” é o local de manifestação concreta da jurisdição. O termo “espaço de autoridade” pretende englobar uma série de definições. Em um primeiro momento, ele inclui uma noção de espaço geográfico, no caso, visto na questão dos limites físicos territoriais das dioceses e paróquias. Além disso, o conceito pressupõe a construção da legislação canônica desenvolvida no período medieval, particularmente a partir do século XII. Essa legislação, tanto a criação de leis como sua aplicação, estava nas mãos de bispos e papas que precisavam criar, e fazer valer, normatizações sobre o mundo espiritual e temporal. Por fim, o conceito “espaço de autoridade” abarca, também, todas as formas de administração dos bens da Igreja, incluindo, nesse caso, o dízimo como um dos eixos centrais. O espaço de autoridade é, portanto, para além da abstração da tinta, o lado visível da jurisdição.

Como podemos, então, “enxergar” essa jurisdição, ou melhor, identificar os espaços de autoridade, a partir da documentação jurídica? No caso do dízimo, a chave explicativa encontra-se na forma como ele foi construído, bem como no seu papel definidor de práticas e limites como, por exemplo, na distribuição de riquezas no seio da própria Igreja e na sociedade como um todo.

O primeiro exemplo dessa função do dízimo é dado pela discussão da divisão dos proventos. O princípio para a divisão do dízimo era defendido pelos canonistas a partir de Graciano, C. 12, q. 2, c. 27 (quattuor), no qual ele indicava a correta divisão das oblações ofertadas pelos fiéis em quatro porções: uma para o bispo, outra para os clérigos, a terceira

para os pobres e a quarta para a fábrica. 423 Raimundo de Peñafort citou a causa do Decretum

e também a decretal Requisisti do Liber Extra (III. XXVI. XV) na Summa de Paenitentia, definindo que esta deveria ser a divisão canônica, “Divisionem canonicam habes: 12 q. 2

l’Occident medieval. Paris: Aubier, 2005. Para a monumentalização da Igreja, IOGNA-PRAT, D. La Maison Dieu. Une histoire monumentale de l’Église au Moyen Âge (v. 800-v.1200). Paris: Seuil, 2006. Para o desenvolvimento das dioceses, MAZEL, F. De la Cité au Diocèse. Eglise pouvoir et territoire dans l’occident médiéval. Ve-XIIIe siècle. Rennes : HDR, 2009; MAZEL, F. (dir.). L’espace du diocèse: Genèse d’un territoire dans l’Occident médiévale (Ve-XIIIe siècle). Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2008. Para a formação das paróquias Paroisse, paroissiens et territoire. Remarques sur parochia dans les textes latins du Moyen Âge. in : IOGNA-PRAT, D. et ZADORA-RIO, E., (DIR.) Médiévales, n° 49, 2005, p. 11-32; IOGNA-PRAT, D. ; ZADORA-RIO, I. Formation et transformations des territoires paroissiaux. In: Médiévales. N. 49, p. 5-10, 2005.

423 “(…) conuenit fieri portiones: quarum sit una pontificus, altera clericorum, tertia pauperum, quarta fabricis

Quattuor; Extra de testamentis, ‘Requisisti’”. 424 Henrique de Susa – como já indicamos –

seguiu, também, a mesma divisão, adicionando apenas a possibilidade dessa divisão ser modificada pelo costume, desde que se mantivesse a parte do bispo. Uma das decretais que Hostiensis utilizou para justificar a divisão foi Quoniam a nobis, que recomendava ao bispo de Brescia que ele deveria reter a sua parte do dízimo antes de distribuir as demais (tu

decimas earum, tua parte retenta). 425

Em todos esses canonistas a ênfase da divisão está na porção do bispo, primeiro pela afirmação explícita de Hostiensis sobre a necessidade de se manter a porção do bispo em todos os casos sem exceção. Além disso, podemos depreender a preeminência do bispo pela maneira como Graciano ordenou as partes e escolheu o vocabulário quando tratou do tema. O autor do Decretum enumerou cada parte iniciando com o bispo e, posteriormente, indicou as demais porções como altera, tertia, quarta.

Como já indicamos, o dízimo foi um elemento importante da composição da jurisdição episcopal. Mas ele também estava ligado à questão da posse de bens, da imagem do bispo e de sua utilidade na sociedade. A questão foi amplamente debatida no século XIII e pode ser vista num exemplo que sai do âmbito jurídico e entra na discussão teológica, com Tomás de Aquino (1225-1274).

Na Summa Theologica, Aquino tratou dos estados e formas de vida e, nas questões 179 a 189, discutiu especificamente “as características das formas de vida religiosa e

considera que o bispo ocuparia o principal e mais perfeito posto dentre os cristãos”. 426 Nessa

discussão, ele associou a posse de bens temporais ao ministério episcopal implicando que essa posse era uma condição necessária para o episcopado, pois era através dela que o bispo poderia exercer sua função de utilidade ao próximo e se colocar acima dos demais, merecendo

a honra e abundância dos bens temporais. 427

Tomás de Aquino seguiu afirmando que, em relação aos bens pessoais, os bispos não tinham obrigação de distribuí-los. Os bens eclesiásticos, por sua vez, “são destinados não só ao socorro dos pobres, mas também ao culto divino e a prover às necessidades dos ministros”. 428

424 RAIMUNDO DE PEÑAFORT, Summa de Paenitentia. OCHOA; DIEZ (Eds), Roma: Universia Bibliotheca

Iuris, 1976, item 5, col. 415.

425 RAIMUNDO DE PEÑAFORT. Liber Extra. Livro III, título XXX, capítulo XIII. 426

TEIXEIRA, I. S. Como se constrói um santo. A canonização de Tomás de Aquino. Curitiba: Prismas, 2014, p. 183.

427 Ibid., p. 184.

428 TOMÁS DE AQUINO. Summa Teológica. GALACHE, G. C.; RODRIGUEZ, F. G. (dir.). São Paulo:

Observamos, assim, que a posse de bens materiais foi interpretada, tanto na teologia, quanto no direito, como um dos elementos visíveis da autoridade do bispo, uma vez que ela lhe conferia a dignidade da posição que ocupava, assim como tinha uma consequência material no que dizia respeito ao sustento do bispo. Tomás de Aquino ressaltou que a manutenção dos bens pelos bispos não era pecado, “(…) contanto que o fizessem com

moderação, isto é, para socorrer às suas necessidades e não para enriquecê-los”. 429 Essa foi a

mesma argumentação utilizada para justificar o direito do bispo a uma parte do dízimo, a prerrogativa da portio canonica.

O Quarto Concílio de Latrão (1215), sob a autoridade do papa Inocêncio III, deixou bastante clara a associação entre a necessidade material dos clérigos e bispos e o pagamento correto dos dízimos ao demonstrar preocupação com casos em que os presbíteros recebiam apenas a décima sexta parte do dízimo. O cânone 32 afirmava:

Em algumas localidades cresceu um vício que deve ser erradicado, no qual os patronos de igrejas paroquiais e algumas outras pessoas arrogam-se os proventos daquelas igrejas, deixando para os clérigos uma porção tão exígua por seus serviços que eles não conseguem viver adequadamente. Pois ouvimos de uma fonte, cuja autoridade é inquestionável, que em alguns locais o clero paroquial recebe para seu sustento apenas um quarto de um quarto, ou seja, a décima sexta parte dos dízimos. Ocorre que nessas regiões é raro encontrar um padre que tenha conhecimento de letras. Como a boca do boi não deve ser amordaçada quando ele debulha o trigo 430 e aquele que serve o altar deveria viver do altar, 431 instituímos que, mesmo que haja algum costume do bispo ou do patrono ou qualquer outra pessoa, que seja diferente, uma porção suficiente deverá ser designada aos presbíteros. 432

Mas não era apenas o sustento e a dignidade do bispo e dos clérigos que estavam em jogo. Como Tomás de Aquino deixou claro, parte da prerrogativa do bispo estava na distribuição dessa riqueza. Era através dela que o bispo atuava diretamente na sociedade e confirmava a sua utilitas para além do plano espiritual.

O dízimo sempre esteve ligado a uma noção de caritas e de assistência. Os primeiros concílios (como Tours e Mâcon) determinavam a obrigatoriedade do pagamento do dízimo. Faziam-no diante da ameaça de uma catástrofe e como garantia de sustento da população: o dízimo pago à Igreja seria armazenado e redistribuído conforme a necessidade.

433

Uma parte dos dízimos deveria ser destinada aos pobres, já deixara claro Graciano na sua

429 II-II, Q. 185, a. 7, resp. 2, Ibid., p. 670.

430 Essa passagem bíblica é utilizada para se referir ao direito de quem trabalha/serve de receber seu devido

pagamento. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002, Dt 25,4, 1Cor 9,9, 1Tm 5,18.

431 Ibid., 1Cor 9, 13.

432 Cânone 32, Latrão IV, TANNER, N. T. (ed). Decrees of the Ecumenical Councils. Nicea I to Lateran V.

Washington D.C.: Sheed and Ward/Georgetown University Press, 1990, p. 249-250.

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divisão canônica. Todos os canonistas estavam de acordo com essa determinação. Quem controlava o dízimo era o bispo; logo, era sua função redistribuí-lo de forma a auxiliar aqueles que necessitavam.

Assim, Raimundo de Peñafort afirmou que os dízimos deveriam ser pagos às igrejas e aos clérigos da paróquia onde se encontravam as terras, “salvo no caso dos clérigos

levarem uma vida ruim e dispensarem erradamente de seus dízimos”. 434

Henrique de Susa perguntou se era lícito que clérigos que tinham patrimônio suficiente recebessem dízimos. A questão se colocava, obviamente, pois esses clérigos não teriam necessidade de se manter através dos dízimos.

Henrique de Susa citou a passagem de Raimundo de Peñafort sobre os maus usos do dízimo por clérigos, como exemplo de argumento que alguns canonistas utilizavam para justificar o não pagamento do dízimo a esses clérigos ricos. No entanto, ele refutou esse argumento, afirmando que a questão dizia respeito apenas ao uso. O dízimo era devido a e instituído por Deus, portanto nada isentava o seu pagamento. O recebimento do dízimo por parte desses bispos ricos só seria ilícito se eles não o distribuíssem aos pobres. A solução proposta por Hostiensis foi que o pagamento do dízimo deveria ser feito ao superior desses clérigos na escala hierárquica que, por sua vez, o repassaria adequadamente para a utilidade da igreja. 435

A associação entre coleta do dízimo e distribuição de riqueza foi levada ao limite por Henrique de Susa quando ele elaborou a resposta para a pergunta “por que pagar o dízimo?”. Ele respondeu, em primeiro lugar, que pagava-se o dízimo porque ele era retido em sinal do domínio universal do Senhor, que assim o desejou para que os clérigos recebessem pelo serviço que faziam em nome de Deus (ou como intermediários da ação divina). Nesse ponto, ele mais uma vez ligava o pagamento do dízimo ao sustento material dos clérigos. Em seguida, Hostiensis enumerou as nove ofensas que cometiam aqueles que subtraiam o dízimo de seu verdadeiro receptor:

Primeiro, prevaricação contra um legado de Deus -; (…) segundo, ofensa a quem o dízimo deveria retornar (…); terceiro, rapina (…); quarto, homicídio, pois os pobres que não receberem o dízimo podem morrer de fome (…); quinto, sacrilégio, pois é fraudar a Igreja ou furtar (…); sexto, Deus não afastará os gafanhotos nem evitará as pragas (…); sétimo, o que não é recebido por Cristo é retirado de seu fisco/tesouro

434 “(…) etiam si clericus sint malae vitae, et male dispensantes ipsas decimas.” RAIMUNDO DE PEÑAFORT,

Summa de Paenitentia. OCHOA, X.; DIEZ, A. (Eds), Roma: Universia Bibliotheca Iuris, 1976, item 1, col. 412.

435

(…); oitavo, incorre em infâmia (…); nono, pois ele faz parte do poder de bannum do papa. 436

O papel do dízimo na distribuição de riqueza ficava evidente na associação ao furto, rapina, recompensa pelos serviços do clero – que era responsável pelo retorno espiritual a quem pagava o dízimo – e na dilapidação do fisco da Igreja. Ele era retoricamente enfatizado pela acusação de homicídio. Aquele que não pagava o dízimo corretamente poderia ser acusado de contribuir com a morte de pobres que dependiam da distribuição para não morrerem de fome. As referências eram bíblicas devido ao caráter divino do dízimo. Mas elas eram também um recurso retórico de força e eram facilmente reconhecíveis, não necessitando um conhecimento jurídico específico para compreensão da gravidade do delito.

O papa também atuava nesse espaço de autoridade através de sua prerrogativa de dar privilégios e benefícios. Ele detinha o poder de isentar do pagamento ou autorizar a coleta do dízimo. Isso trazia um impacto que era também material. Um grupo considerado muito pobre poderia receber o benefício de não pagar o dízimo. No entanto, Henrique de Susa deixava claro que esse benefício seria imediatamente revogado, caso esse grupo deixasse de

ter a condição de miserável. 437 Ter o direito de coletar o dízimo ou o benefício de não pagá-

lo podia garantir a sobrevivência de uma casa monástica, e esse poder estava todo colocado na autoridade papal.

Por essa autoridade, também era possível designar usos diferentes aos dízimos, como, por exemplo, na manutenção das universidades. O historiador francês Alain Boureau discute a importância dos dízimos para a garantia da autonomia e independência das universidades ao longo do século XIII, “As universidade sobrevivem de prebendas (…). É,

portanto, a Igreja, os dízimos e a coletividade que financiam esses estudos”. 438

Fica claro, portanto, que o dízimo, sendo um dos principais meios de obtenção de bens, agia diretamente sobre a realidade social na sua materialidade. Ora, como já deixamos claro, a responsabilidade pela coleta e distribuição do dízimo é do bispo. Cabe a ele determinar como e de que forma distribuir os proventos decidindo, inclusive, pela retenção

desses dízimos, como indica a decretal Quoniam a nobis. 439 Assim, é através do dízimo, na

sua função de distribuidor de riquezas, que se encontram os espaços de autoridade, ou seja, a

436 Ibid. Livro III, col. 1092.

437“Cessat etiam privilegium concessum de non dandis decimis in casibus.” Ibid., Livro III, cols. 1088.

438 BOUREAU, A. En somme: Pour une usage analytique de la scolastique médiévale. Lagrasse : Verdier, 2011,

p. 69.

439 “(…) tu decimas earum, tua parte retenta, eidem ecclesiae facias assignari; alioquin ipsas secundum

discretionem a Deo tibi datam alii ecclesiae deputare, vel ad opus tuum poteris retinere, ita quidem, quod, si quis in his contraire praesumpserit, tu eum ecclesiastica censura usque ad dignam satisfactionem percellas.” Liber Extra. III.XXX.XIII.

ação concreta dos bispos e do papa na sua espacialidade, em sua legislação e na administração dos bens eclesiásticos.

Por esse poder que lhes é garantido pela jurisdição, o bispo e o papa também se fazem visíveis. Através do dízimo, o bispo garante a boa administração da fábrica, com a manutenção material das igrejas. Através do dízimo, o bispo se distingue dos outros clérigos em dignidade e em riqueza. Através do dízimo, o papa pode garantir ou condenar a sobrevivência de um grupo. Através do dízimo, os pobres e necessitados são atendidos. Portanto, é através do controle da distribuição da riqueza criada pelo dízimo e garantido pela jurisdição episcopal e papal que a Igreja age nos espaços, administra, legisla e, assim, cria seus espaços de autoridade.

5. Da pluralidade medieval: relações entre direitos, costumes e